Em 1980, Julio Cortázar fez na Universidade de Berkeley (Califórnia) uma série de palestras sobre literatura, que foram agora reunidas em livro: Aulas de Literatura – Berkeley, 1980 (Rio: Civilização Brasileira, 2015, trad. Fabiana Camargo).
Com uma platéia que misturava latino-americanos e
norte-americanos estudantes de língua e literatura hispânica, e certamente
algumas dezenas de cronópios infiltrados, mestre Júlio discorre sobre sua obra,
a política latino-americana, os gêneros literários; lê trechos dos livros (ele
lê e comenta trechos de “O Perseguidor”, “A Auto-Estrada do Sul”, Histórias de Cronópios e de Famas, etc.),
debate, responde perguntas.
Em sala de aula, Cortázar não é um teórico tão fluente
quanto escrevendo. Seus artigos críticos sobre literatura são, em geral,
brilhantes, mas indicam uma longa elaboração. Falando de improviso, ele meio
que glosa os temas que o leitor habitual já conhece. Sempre cortês e respeitoso
com os alunos, sempre cerimonioso; quando defende suas posições políticas o faz
com a cautela de quem sabe estar pisando território estrangeiro.
Nos capítulos-aulas sobre realismo e o Fantástico, ele
reitera posições que sempre defendeu, sempre com comentários oportunos.
A passagem do fantástico ao realismo não é tão fácil quanto parece, já
que ninguém sabe exatamente o que é a realidade. (p. 129)
O que lembra a conhecida “boutade” de Jorge Luís Borges:
“Ainda não sabemos se o Universo pertence ao gênero realista ou ao gênero
fantástico.”
Temos todos uma idéia pragmática da realidade, claro, mas por acaso a
filosofia não continua a se questionar sobre o problema da realidade? Neste
exato momento, os filósofos continuam propondo a questão por não haver solução
ou haver apenas soluções ingênuas. Aceitamos o que os nossos sentidos nos
mostram, apesar de qualquer pequeno teste demonstrar que nossos sentidos nos
enganam facilmente. (p. 129)
Nem sempre os críticos lembram de Kafka como uma das
influências maiores na obra de Cortázar, talvez porque o mundo soturno,
preto-e-branco e nublado do escritor tcheco pareça ter uma textura diferente
das histórias do argentino, que nos parecem mais cheias de vivacidade, cor, vida
cotidiana, mesmo quando seus personagens se envolvem em circunstâncias
terríveis.
Cortázar faz o elogio do tcheco e lê para seus estudantes
o conto (transcrito na íntegra) “Com legítimo orgulho” (de A Volta ao Dia em 80 Mundos, 1967). O conto transcorre num país
imaginário e serve como uma redução-ao-absurdo bem kafkeana, ao descrever um
insólito ritual envolvendo folhas secas, mangustos, serpentes venenosas,
sepulturas e outros ingredientes.
Um capítulo importante no livro é o da Quinta Aula, que
trata de “Musicalidade e humor na literatura”. Cortázar defende esses dois
aspectos tão importantes em tudo que escreve.
[A] prosa literária (...) pode se dar como pura comunicação e com um
estilo perfeito mas também com certa estrutura, certa arquitetura sintática,
certa articulação das palavras, certo ritmo no uso das pontuações ou das
separações, certa cadência que infunde algo que o ouvido interno do leitor vai
reconhecer de maneira mais ou menos clara como elementos de caráter musical. (p.
159)
Esta talvez tenha sido uma influência que Cortázar
exerceu sobre Garcia Márquez, que via no argentino uma espécie de mestre. Já vi
Márquez afirmar na TV: em tudo que escrevia devia haver uma espécie de voz
encantatória, uma litania de frases obedecendo variados ritmos e variadas
entonações, uma espécie de melodia permanente. “Às vezes,” dizia ele, “meu texto
tem palavras que nem significam grande coisa, mas estão ali para manter essa
cadência encantatória, porque se houver uma única quebra ou desafinação o texto
inteiro cai por terra e o leitor acorda.”
(Estou citando de memória.)
Isso leva Cortázar a eventuais atritos com as pessoas que
manuseiam seus textos, tais como revisores e tradutores:
[H]á sempre na editora esse senhor que se chama “o corretor de estilo”
[ou copidesque], e a primeira coisa que faz é pôr-me vírgulas por todos os
lados. (...) Me lembro que no último livro de contos (...) em uma das páginas
tinham me acrescentado trinta e sete vírgulas, em uma só página! (p. 160)
Meu problema é quando me traduzem: quando se traduzem contos meus a um
idioma que conheço, muitas vezes deparo com que a tradução é impecável, tudo
está dito e não falta nada, mas não é o conto tal como eu o vivi e o escrevi em
espanhol, porque falta essa pulsação, essa palpitação à qual o leitor é
sensível(.) (p. 162)
Cortázar e Borges pagaram um preço um tanto alto por suas
posições políticas, por ser um de direita e o outro de esquerda. (O “direita”
de Borges é meramente aproximativo: Borges vivia num limbo político, elogiava
os generais-ditadores por uma agastada concessão à prudência, e em termos partidários
era anti-peronista e mais nada.)
Cortázar nunca escondeu suas simpatias por Cuba, pela
Nicarágua, etc.; isto lhe valeu tomar paulada da crítica anti-esquerdista, e
também tomar paulada dos cubanos e venezuelanos que esperavam dele o tal “apoio
irrestrito” que a política espera de quem se aproxima dos seus portões.
Julio Cortázar fazia críticas políticas específicas aos
regimes que apoiava, e fazia uma crítica mais ampla, que vale para todo mundo:
[É] um fato evidente que as sociedades atuais, que tentam atitudes
revolucionárias e mudanças nas estruturas sociais, muito poucas vezes têm
consciência precisa desse nível da linguagem, e então as mensagens e as
palavras de ordem revolucionárias são ditas, elaboradas – e infelizmente também
pensadas – com uma linguagem que não tem absolutamente nada de revolucionária:
é uma linguagem profundamente convencional, a mesma que utilizam os adversários
ideológicos. Muitas vezes entre um discurso de um líder da direita e o de um
líder da esquerda no plano da linguagem não há qualquer diferença: os mesmos
lugares-comuns, as mesmas repetições incansáveis de frases estereotipadas(.) (p. 236-237)
Fã de jazz durante a vida toda (e trumpetista “muito mau”,
segundo ele próprio), Cortázar nunca perdeu de vista a música da prosa, nem a
importância da música para a intuição literária da realidade.
Quantas vezes, quando me coube enfrentar um personagem provinciano,
pensei longamente na música de sua província, nas bagualas, nas chacareras, nas
zambas ou nos malambos, porque é através disso que chegam as pulsões profundas
da raça: uma espécie de linguagem que tem um valor tão rico como podem ter um
poema, um conto ou um romance nesse âmbito. (pag. 281-282)
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