Na gravação de “Bob Dylan’s 115th Dream”, do álbum Bringing it all back home (1965), a
música começa com Dylan rasqueando o violão e começando a cantar o primeiro
verso da letra: “I was riding on the
Mayflower, when I thought I spied some land...”
Então ele se interrompe e dá uma gargalhada, porque tinha
começado a cantar sem fazer a contagem prévia e os músicos ainda não estavam
prontos. Dylan dá várias risadas, e depois avisa: “Oh, yeah, take two!”. E desta vez, no segundo take, entram todos juntos.
Aqui:
Depois, certamente ele e o produtor acharam divertido o
detalhe e resolveram deixá-lo aparecer no disco. Na época, isso deu um certo
susto nos ouvintes, o fato de um “erro” ser mantido na versão final.
Acho que na verdade a gente nem imaginava que pudesse
haver um erro ao se gravar uma música. Eu pensava que os músicos se
posicionavam no estúdio, a fita começava a rodar e eles tocavam a música
inteira até o fim, do jeito que a gente iria escutar depois.
É ingênuo, pensar assim? Talvez seja, mas não é mais
ingênuo do que o cara que pegou um ovo de galinha e disse: “Olha que design impressionante, deve dar um trabalho enorme fazer uma
coisa tão perfeita”.
Uma música só fica pronta mesmo depois de gravada, ou
melhor, depois do disco estar sendo vendido na loja. E mesmo assim há muitos casos de canções que
por mil motivos acabam sendo remixadas ou interferidas, e aparecem diferentes
nas prensagens seguintes do disco, semanas ou até meses após o lançamento.
Muitas decisões cruciais sobre a forma final de uma
canção são tomadas após a gravação, exigindo que ela seja refeita ou emendada
de alguma forma. Reza a lenda que isso ocorreu uma das gravações mais belas e
mais famosas de Clara Nunes, o Canto das
Três Raças, de Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte:
Ninguém ouviu
um soluçar de dor no canto do Brasil...
Um lamento triste sempre ecoou
desde que o índio guerreiro foi pro cativeiro
e de lá cantou...
A versão de Clara Nunes:
Ao fim de cada estrofe, vem um coro de vozes masculinas:
“ô-ô-ô, ôôô...” Esse coro, ao que se
diz, não fazia parte da composição original, mas foi incluído pelo maestro
arranjador, que, como convém a um bom arranjador, sentiu que “faltava alguma
coisa ali”.
Interferências assim, não previstas na forma original da
canção, acabam se transformando em algo que é “a cara dela”.
Meu parceiro-ilustrador Mário Bag conta, numa postagem
recente no Facebook, este episódio sobre uma das canções mais famosas de
Paulinho da Viola, “Foi um rio que passou em minha via”. Todo mundo lembra o
trecho que abre a segunda parte, e diz:
Porém
há um caso diferente
que marcou num breve tempo
meu coração para sempre...
Diz Mario Bag:
Em 1970, enquanto o Paulinho da Viola gravava o samba "Foi um rio que passou em minha vida", um dos membros dos "vocais de apoio" se empolgou depois que o autor cantou o 'porém' ANTES do verso que seguiria: "que marcou num breve tempo", e mandou um contraponto: "Ai, porém!..."
Se tirarmos o "ai, porém" que o cara enfiou no meio da
letra, fica um intervalo meio incômodo entre os versos tanto que o "ai,
porém!" já faz parte da letra - já está transcrito na letra OFICIAL da
canção. E o criador da "chamada" ficou conhecido como "Jorge
Porém".
Ou seja, o merecidamente imortalizado Jorge Porém sentiu,
como um bom arranjador, mesmo não-oficial, que “faltava alguma coisa ali”.
Havia um buraco. Buraco, em música, é muitas vezes um tempo de espera até que
se complete um compasso e a melodia + letra possa ser retomada no ponto mais
conveniente.
É mais ou menos como você querer subir num carrossel, mas
tem que ser no cavalo “X”, aí você precisa esperar terminar a volta e o cavalo
passar de novo.
É o que contam Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano em
seu precioso livro A Canção no Tempo
(Editora 34, vol. 1, págs. 188-189), a respeito da canção “Ó Seu Oscar”, de
Wilson Batista e Ataulfo Alves, gravada por Ciro Monteiro:
“Se pertence a Ataulfo o título e a segunda parte, é de Wilson Batista
a idéia e o estribilho original da composição:
Cheguei cansado do trabalho
logo a vizinha me falou:
(ó seu Oscar,)
tá fazendo meia hora
que a sua mulher foi embora
e um bilhete deixou...
O bilhete assim dizia:
“Não posso mais, eu quero é viver na orgia!”
Aqui, a gravação de Ciro Monteiro:
“Foi com esses versos, já musicados, que Wilson convidou Ataulfo para
fazer a segunda parte. Conta Bruno Ferreira Gomes (no livro Wilson Batista e
sua época) que Ataulfo, notando um “buraco” entre o segundo e o terceiro
verso, sugeriu a inclusão desse “Ó Seu Oscar” que, além de preencher o claro,
acabou substituindo o título, que deveria ser “Está Fazendo Meia Hora”.
Os autores lembram também que na época (1940) o nome
“Oscar” era atribuído a qualquer indivíduo bobalhão, mais ou menos como hoje se
usa “Mané”.
Tempos de espera como esse são geralmente preenchidos por
um tralalá instrumental qualquer. Outras vezes, o compositor, ou o maestro, ou
o próprio intérprete, encaixa ali um pedacinho e a música fica completa, sem
parecer uma dentadura onde falta um dente no meio.
3 comentários:
Parabéns pela crônica!
Excelente, como sempre
Parabéns!
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