A pesquisa sobre a história da literatura de cordel no Brasil tem dois caminhos.
O primeiro, mais importante para nós, nordestinos, parte
de Leandro Gomes de Barros e os folhetos que ele começou a imprimir em meados
da década de 1890, no Recife. É a raiz da nossa literatura popular impressa,
porque versos recitados e copiados à mão já circulavam desde muito antes, usando
os mesmos temas e as mesmas características formais (estrofes, rimas, etc.) que
os folhetos iriam usar. Muitos destes versos estão em obras como Cantadores e Poetas Populares, de F. das
Chagas Batista (1929, reeditado em 1997 pela UFPB, João Pessoa), que transcreve
versos dos mestres do Teixeira na segunda metade do século 19.
O segundo caminho está plantado no Rio de Janeiro, e diz
respeito aos folhetos impressos em Portugal e trazidos para cá ao longo de todo
o século 19, como consequência da vinda da corte imperial para o Rio em 1808. São
muitas as referências à venda de livretos populares de meados de 1850 em
diante. O termo “cordel”, tão debatido pelos estudiosos do assunto, denota o
uso de expor dessa forma não somente os folhetinhos em versos, mas (penso eu)
todo tipo de livro.
Em seu Como e Por
Que Sou Romancista (1873), capítulo VII, José de Alencar usa esta expressão
ao contar os percalços de publicação do seu O
Guarani (1857), e diz:
A edição avulsa que se tirou d’O Guarani, logo depois de concluída a
publicação em folhetim, foi comprada pela livraria do Brandão, pôr um conto e
quatrocentos mil réis que cedi à empresa. Era essa edição de mil exemplares,
porém trezentos estavam truncados, com as vendas de volumes que se faziam à
formiga na tipografia. Restavam pois setecentos, saindo o exemplar a 2$000.
Foi
isso em 1857. Dois anos depois comprava-se o exemplar a 5$000 e mais nos belchiores
que o tinham a cavalo do cordel, embaixo dos arcos do Paço, donde o tirou o
Xavier Pinto para a sua livraria da Rua dos Ciganos. A indiferença pública,
senão o pretensioso desdém da roda literária, o tinha deixado cair nas pocilgas
dos alfarrabistas.
A expressão “a
cavalo no cordel” descreve bem o uso dos vendedores: um cordão esticado
horizontalmente e os livretos, abertos ao meio, “montados” em cima do cordão.
O termo “belchior” usado por Alencar refere-se aos
comerciantes de coisas usadas, que tanto podem ser roupas (vamos lembrar Noel
Rosa: “O meu chapéu vai de mal a pior, e meu terno pertenceu a um defunto bem
maior – dez tostões no belchior!”, O
Orvalho Vem Caindo) como também livros – o Dicionário Houaiss registra o termo como “proprietário de sebo” e
“alfarrabista”. Daí a queixa de Alencar.
Os “arcos do Paço” a que o escritor cearense se refere
são provavelmente os arredores do Paço Imperial, na praça XV de hoje, como o
Arco do Teles, por onde ainda passo eu de vez em quando.
Aquele largo servia como foco de um comércio popular
dessa natureza, como confirma Machado de Assis no conto “Uns braços” (1885), recolhido
em livro em Várias Histórias (1896),
e cuja ação é devidamente datada:
Passava-se isto na Rua da Lapa, em 1870. (...)
É a história de um rapaz do interior que vai estudar no
Rio, morando de favor com um casal mais velho, o que gera uma atração entre ele
e a dona da casa, situação parecida com a do conto clássico Missa do Galo (em Páginas Recolhidas, 1899).
Um
domingo, - nunca ele esqueceu esse domingo, - estava só no quarto, à janela,
virado para o mar, que lhe falava a mesma linguagem obscura e nova de D.
Severina. Divertia-se em olhar para as gaivotas, que faziam grandes giros no
ar, ou pairavam em cima d'água, ou avoaçavam somente. O dia estava lindíssimo.
Não era só um domingo cristão; era um imenso domingo universal.
Inácio
passava-os todos ali no quarto ou à janela, ou relendo um dos três folhetos que
trouxera consigo, contos de outros tempos, comprados a tostão, debaixo do
passadiço do Largo do Paço. Eram duas horas da tarde. Estava cansado, dormira
mal a noite, depois de haver andado muito na véspera; estirou-se na rede, pegou
em um dos folhetos, a Princesa Magalona, e começou a ler.
Nunca pôde
entender por que é que todas as heroínas dessas velhas histórias tinham a mesma
cara e talhe de D. Severina, mas a verdade é que os tinham. Ao cabo de meia
hora, deixou cair o folheto e pôs os olhos na parede, donde, cinco minutos
depois, viu sair a dama dos seus cuidados. O natural era que se espantasse; mas
não se espantou. Embora com as pálpebras cerradas viu-a desprender-se de todo,
parar, sorrir e andar para a rede.
Machado confirma vários detalhes de Alencar, e é bom que
“Uns braços” seja explicitamente situado por ele em 1870, o que permite
imaginar que a ação descrita por ele era comum nessa época. Machado usa por
duas vezes o termo “folheto”. Indica que foram comprados no Largo do Paço. Lembra
que eram “contos de outros tempos” e que eram “comprados a tostão”, ou seja,
estavam ao alcance da bolsa de um estudante pobre.
E o título lembrado por ele é justamente um dos clássicos,
a História da Princesa Magalona,
conto de origem francesa minuciosamente estudado por Câmara Cascudo em seus Cinco Livros do Povo (Ed. José Olympio,
1953), e que Cervantes também menciona de passagem no capítulo XL da segunda
parte do Dom Quixote, no episódio do
cavalo voador de madeira.
Cascudo refere a existência de edições portuguesas do
romance em 1625 e 1783, além de numerosas outras em datas posteriores, até o
surgimento das versões brasileiras da mão de vários autores, entre eles o
inevitável João Martins de Athayde. E observa também que as versões portuguesas
eram em quadras (ABCB) e as brasileiras em sextilhas (ABCBDB).
(continua)
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