sábado, 7 de janeiro de 2017

4197) "Fogo Pálido" de Vladimir Nabokov (7.1.2017)



Acabei ontem a leitura de Fogo Pálido de Vladimir Nabokov (“Pale Fire”, 1962). É um daqueles romances policiais de “crime anunciado” onde nas primeiras páginas tomamos conhecimento de que foi cometido um crime mas nos é dito apenas o básico: quem matou, quem morreu. Todo o resto do livro é a reconstituição implacável dos fatos que conduziram àquele desfecho.

Meu livro preferido nesse subgênero é A Judgement in Stone (1977) de Ruth Rendell (“Um Assassino Entre Nós”, Editora L&PM), que começa com a frase famosa: “Eunice Parchman matou a família Coverdale porque não sabia ler nem escrever”.

Dizer isso de Fogo Pálido, na verdade, nem raspa o verniz desse romance complexo e divertidíssimo, daqueles que mal a gente termina de ler tem vontade de voltar ao começo para reler tudo à luz das muitas revelações que são feitas ao longo de todas as páginas.

São várias histórias por trás do enredo básico, e a edição que li (Penguin, 2000) tem um ensaio introdutório de Mary McCarthy tão cheio de alusões surpreendentes que a releitura parece obrigatória.

Não garanto que todo mundo ache o livro tão divertido quanto eu achei. Talvez o excesso de referências literárias e de digressões fantasiosas desconcerte algum leitor. Mas é inevitável. Fogo Pálido é formado por dois textos sucessivos: um poema em quatro Cantos e 999 versos, escrito pelo fictício poeta John Shade, e um ensaio explicativo escrito pelo também fictício Prof. Charles Kinbote, um dos mais formidáveis exemplos de narrador não-confiável em toda a literatura moderna.

Shade e Kinbote são professores de literatura na universidade fictícia de New Wye, nos montes Apalaches, e residem no campus. Ou seja: o livro é ambientado no universo onde Nabokov, também professor, passou a maior parte de sua vida adulta. É cheio de rivalidades e maledicências acadêmicas, aquelas briguinhas-de-departamento que consomem a maior parte do fosfato dos cérebros mais privilegiados de nossa pirâmide intelectual.

A tradução brasileira que tenho é uma edição do Círculo do Livro, traduzida por Jório Dauster, que também já traduziu o Lolita do mesmo autor. Dauster é um tradutor ambicioso, que também já encarou livros de Thomas Pynchon, Virginia Woolf e Philip Roth, ossos saborosos e duros de roer.



Gostei do modo tran-chan como ele corta um nó górdio bastante embranquecedor de cabelos, ao anunciar que certos comentários do Prof. Kinbote, sobre detalhes técnicos de metrificação e prosódia na língua inglesa, não têm equivalente em português e não podem (ou não precisam) ser traduzidos. Nenhum problema, pelo que me toca. O livro é tão pontilhado de pequenos achados verbais invariavelmente brilhantes que ninguém vai sentir falta.

Claro que nem todo mundo aprecia as piruetas verbais de Nabokov: somente os que curtem trocadilhos, anagramas, jogos de palavras, acrônimos, mutações verbais, neologismos... Nem todo mundo gosta disso. Somos poucos, mas somos felizes.

O ensaio de Mary McCarthy registra, entre outras coisas, as incontáveis referências shakespearianas no livro de Nabokov. Elas começam pelo titulo: o fogo pálido a que ele se refere é a luz do sol, roubada pela lua para poder brilhar também.

A citação é da peça Timon de Atenas, ato IV, cena 3, quando Timon se dirige a um grupo de ladrões:

(...) Eu vos darei exemplos de ladroagem:
o Sol é um ladrão, que com sua atração poderosa
rouba o mar para si; a Lua é ladra contumaz
e seu fogo pálido é roubado ao próprio Sol;
o Mar é ladrão também...  (trad. minha)

Mary McCarthy parte desta citação para glosar temas associados ao “roubo”, principalmente o tema do reflexo, da imagem roubada a alguém. Esse jogo de duplicidades é mantido durante o livro inteiro com o uso de duplas personalidades, identidades falsas, passagens secretas, espionagem, duplicidade sexual etc.  Há sempre alguém furtando e usando algo que não lhe pertence, seja uma identidade, uma imagem, um papel social.

Pale Fire é também o livro em que Nabokov introduziu uma de suas criações mais memoráveis, o país imaginário de Zembla, situado ao norte da Rússia. É de lá que vem o Prof. Kinbote, daquela espécie de Ruritânia cheia de príncipes, palácios, arquiduques, jardins de inverno, paradas militares e golpes de Estado.

Exilado nos EUA, Kinbote torna-se amigo e tiete do poeta John Shade, e de certo modo o influencia a escrever um poema sobre o reino fantástico de Zembla. Um dos grandes efeitos cômicos do livro é o fato de que o poema acaba sendo escrito, mas o poeta só fala de si mesmo, e o comentarista sempre dá um jeito de dizer que ele está se referindo a Zembla.

As quilométricas notas do Prof. Kinbote criam uma fascinante realidade paralela e têm muito pouco a ver com o texto sendo analisado. Mas, como Kinbote afirma em sua Introdução, “para o bem ou para o mal, é sempre o comentarista que tem a última palavra”.









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