Um dos exemplos clássicos de plágio inconsciente é o
episódio narrado pelo filósofo Nietzsche, incluído no seu Assim Falou Zaratustra (1883-1891). Ele diz:
Nesta época em que Zaratustra
residia nas Ilhas Happy, aconteceu de um navio ancorar na ilha onde fica o
vulcão fumegante e a tripulação descer à terra para caçar coelhos. Ao meio-dia,
no entanto, quando o capitão e seus homens se haviam reunido novamente, viram,
de repente, um homem que vinha pelo ar em sua direção e uma voz que dizia
nitidamente: “É tempo, é mais que tempo!”. Mas quando a figura aproximou-se
deles, passando rápido como uma sombra em direção ao vulcão, reconheceram com
grande espanto que era Zaratustra... “Vejam!”, disse o velho timoneiro, “vejam
Zaratustra que vai para o inferno!” (capítulo XL, “Grandes Acontecimentos”).
Em O Homem e Seus
Símbolos (Ed. Nova Fronteira, trad. Maria Lúcia Pinho), Carl Jung mostra
que esse trecho corresponde quase exatamente a um trecho de um livro publicado
meio século antes da obra de Nietzsche; e depois verificou-se que uma irmã de
Nietzsche lembrava de terem lido o livro com essa cena. (Na qual são dois os
homens que passam voando por cima dos marinheiros; sem dizer nada, eles
mergulham na cratera do vulcão e ali desaparecem.)
Jung questiona os processos que levam uma imagem assim a
ficar guardada na memória e depois ser evocada no ato da escrita,
apresentando-se com tal força e tal poder de convencimento que nem por um
segundo o escritor duvida ser ela de sua autoria.
Ou talvez duvide, como Paul MacCartney, que passou mais de
um ano tocando “Yesterday” para Deus e o mundo e perguntando se conheciam
aquilo. Todos diziam que não, e ele acabou gravando a música – e correndo o
risco de pegar um processo bilionário. Processo não houve, mas alguns anos
atrás descobriram uma canção antiga do repertório de Nat King Cole (que Paul
provavelmene ouviu na época de garoto), com uma modulação parecida, e com algumas
das frases e rimas contidas na letra.
Não é um plágio. Até porque são canções diferentes, que
durante alguns trechos breves coincidem exatamente e logo voltam a se separar
por linhas melódicas distintas. Pode haver aí o plágio inconsciente, ou o que
Jung chama de criptomnésia, memória
oculta. Oculta até do dono, que não sabe que a possui.
Freud mostrou, em seus estudos sobre os sonhos, como nossa
mente adormecida cria seus filminhos oníricos através de processos de fusão,
substituição, transposição, etc. Nossa
memória-desperta parece recorrer também a esses artifícios, quando o que tenta
evocar não se apresenta instantaneamente. Quando não acha, ela inventa alguma
coisa lançando mão do que efetivamente achou em suas buscas randômicas.
Howard Schneider, professor de jornalismo na StonyBrook
University (Nova York), lembra aos seus alunos que nossa mente gosta de
misturar coisas que estavam separadas. Diz ele que acontece muito, por exemplo,
do indivíduo ouvir um programa do horário eleitoral intercalado a um
telejornal, e depois referir-se a algo que viu na propaganda política, pensando
ter visto no noticiário da imprensa. (Deve ser por isto que existe a tradição
de intercalar aos telejornais os drops de propaganda partidária. Para que na
memória do eleitor tudo pareça ter sido escutado através de uma “fonte
imparcial e objetiva”, criatura mitológica na qual muita gente acredita.)
Algumas pessoas me consideram um cara de memória
excepcional, porque tenho certa facilidade para nomes, datas, versos, etc. O
problema é que “boa memória” não é uma
qualidade que se aplica a tudo. Sou capaz de conversar durante duas ou três
horas com alguém que acabei de conhecer, olhando no rosto, e não reconhecer a
pessoa um mês depois, se ela não disser quem é. O que já me valeu ser
considerado grosseiro, metido a besta, arrogante, etc. Não é isso. É um
“branco” mesmo. Para usar uma metáfora contemporânea: era algo que estava na
memória-RAM mas por um motivo ou outro deixei de “salvar no HD” e se perdeu.
Ainda não cheguei ao ponto de um amigo meu, que certa vez
saiu com uma garota, e quando estavam na cama comentou: “Dias atrás saí com uma
garota que tinha uma tatuagem igual essa tua.”
Ela disse: “Era eu, idiota.”
Já cometi lapsos absurdos de memória. Uma vez fiz um show em
São Paulo juntamente com Lenine e com Gereba (ex-banda Bendengó). Lá pelo meio,
eu e Lenine improvisávamos um “mourão voltado”, gênero de repente em que um cantador
faz um verso perguntando, e o outro faz um verso respondendo. Eu e ele
improvisávamos assim, e Gereba nos acompanhava ao violão. A certa altura,
fechando a estrofe, Lenine perguntou: “ E pra que serve um violão?” Eu apontei Gereba e disse: “Pra quem é
predestinado...” E fechamos com o refrão
em uníssono: “Isso é que é mourão voltado / isso é que é voltar mourão”.
Aplausos mil.
Dez anos depois, encontro Gereba novamente em São Paulo e
ele me dá um CD com a gravação do show. Quando chegou nesse trecho, constatei
que os versos estavam lá, mas fui eu quem fez a pergunta, e foi Lenine quem
respondeu.
Por isso, dou sempre a todos o conselho antigo que me foi dado pela minha mãe: “Des –
con – fi – e!”.