(pátio do ICBA)
Eu me lembro de um dia, no Corredor da Vitória, em que
dois carros se cruzaram, indo em direções opostas, e os motoristas pararam para
conversar durante um minuto, enquanto as duas filas de carros esperavam atrás
deles, sem dar uma buzinada sequer.
Eu me lembro das batidas de fruta do Diolino, no Rio
Vermelho.
Eu me lembro de um histórico comício pela
redemocratização com Ulysses Guimarães, no Terreiro de Jesus, com a PM dando
prensa.
Eu me lembro de uma noite estar tomando cerveja com uma
turma e alguém vir nos chamar para assistir “o enterro da cabeça de Corisco”.
Eu me lembro de ir ver um show de Moraes Moreira e a
abertura do show era com um tal de Djavan, que eu nunca tinha ouvido falar, mas
quando começou eu reconheci umas dez canções que eu não sabia de quem eram.
Eu me lembro de estar várias vezes no Canela ao
anoitecer, com sacolas de supermercado, e o ônibus do Engenho Velho de
Federação passar com gente pendurada na porta e mesmo assim eu conseguir
entrar.
Eu me lembro do angu
incubado que eu ia comer toda semana na Cantina da Lua.
Eu me lembro de quando começou pela primeira vez a tocar
reggae com-força nas festas do Restaurante Universitário e da Escola de Teatro.
Eu me lembro de um campinho de pelada que tinha no
caminho da Rodoviária e que tinha um enorme toco de árvore bem no meio.
Eu me lembro da feijoada na casa de Maria Edna, feita com
feijão mulatinho e uns temperos preternaturais, e que eu já comia chorando de
saudade.
Eu me lembro das temporadas do “Oxente gente, cordel” no
Vila Velha, quando a gente ficava se aprontando no camarim e perguntando o
tempo todo à bilheteria se já tinha vendido mais ingressos do que o número de
atores da peça (éramos uns quinze).
Eu me lembro de um show certa vez no jardim do ICBA,
quando de repente um cara branco, de meia idade, saltou lá para a frente e
dançou como se o mundo fosse se acabar, e no fim do show descobrimos que ele
era grego.
Eu me lembro de pedir um suco no balcão de uma lanchonete
num domingo de tarde e um dos balconistas, encostados num rádio ligado, dizer:
“Espera terminar o primeiro tempo”, e eu esperei.
Eu me lembro do Congresso da UNE, onde a multidão votava
erguendo na mão a credencial vermelha, e uns espertos erguiam um maço de
Hollywood.
Eu me lembro dos atentados do Homem do Canivete, atacando
as mulheres de calças justas em plena rua, e eu acabei fazendo um samba.
Eu me lembro da primeira vez em que entrei numa padaria,
pedi cinco pães, e o cara perguntou: “Vara ou cacetinho?”.
Eu me lembro do Beco, ao lado do Teatro Castro Alves,
onde tinha um bar cujas mesas eram máquinas de costura.
Eu me lembro de passar tardes inteiras estudando cinema
na biblioteca Walter da Silveira, perto da Praça da Sé.
Eu me lembro das empresas de Ônibus Vibemsa e Vidusa (“a
Duran”).
Eu me lembro de ir com Homero de Carvalho filmar as
catadoras de lixo no lixão, e aquele cheiro ficou nas minhas narinas por uma
semana.
Eu me lembro das famosas “coletivas musicais” do final dos
anos 1970, quando a regra era “duas músicas pra cada um”, e reclamavam que
minhas letras eram quilométricas.
Eu me lembro de uma vez estar cantando com violão na
calçada do elevador Lacerda, para divulgar uma peça, e João Paulo,
ex-artilheiro do Treze, ia passando e parou pra me dar um abraço.
Eu me lembro das doses de cachaça com açúcar e canela na
borda do copo, no Quintal do Raso da Catarina, o bar do Franco.
Eu me lembro do caixa de um banco onde fui descontar um
cheque nominal e ele observou que estava faltando o “Neto”no meu nome
(“Tecnicamente, este cheque é para seu avô”), mas me pagou assim mesmo. Valeu!
Um comentário:
Lembrei-me de um monte de coisas dessas, embora tenha começado a viver Salvador uns anos depois.
Lembro de Dom Marcos, um ancião que vivia nos casarões abandonados do Pelourinho e dizia com sotaque ter vindo num "porta-naves" (que eu corrigia para "porta-aviões" e ele, mal prestando atenção, concordava: "Isso mesmo, você tá certo, "porta-naves").
Lembro de um mágico, já quase sem rapidez de movimentos, que saia pelos bares da orla para ganhar uns trocados, e que por duas vezes eu chorei ao vê-lo tentando convencer um pobre pombo a se manter oculto dentro do lenço.
Lembro da vigília pelas Diretas-Já, com alguns políticos de esquerda, Caetano, Gonzaguinha e outros, na horrível "pracinha" cimentada que chamávamos então de "Cemitério de Sucupira".
Lembro das tardes inteiras na Literarte, rodeado de camisetas de Che Guevara e tentando escolher livros baratos com umas merrecas que sobravam da mesada.
Lembro da frase, que Dante dizia estar escrita na entrada do Inferno, grafitada na entrada da cantida da faculdade de Arquitetura da UFBa: "Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate!".
Lembro das boas apresentações do Projeto Pixinguinha.
Lembro das aulas hilariantes de Roberto Albergaria ou de Ricardo Líper na faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, em São Lázaro.
Lembro da boa música que ouvíamos de madrugada na barraca do Merrá, perto de Pituaçu, antes de a Prefeitua proibir que os barraqueiros usassem as barracas para fins semi-residenciais.
Lembro do quebra-quebra de ônibus, e até das passeatas do PT que ACM indiretamente estimulava para enfraquecer o peso eleitoral do PMDB em Salvador.
Realmente, é difícil alguém passar alguns anos em Salvador e não depositar na memória tantas coisas lindas, bonitas, feias ou horríveis. E lembro que dizíamos na época que a cidade tinha uma magia, e citávamos Caetano, que nunca falou sobre isso.
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