Quando li pela primeira vez
o Romance da Pedra do Reino, de
Ariano Suassuna, por volta de 1972, um parágrafo me chamou a atenção. Um dos
mistérios mais intrigantes do livro é o assassinato do tio de Quaderna, o narrador
da história. Dom Pedro Sebastião é morto numa pequena torre sem acesso externo
e com a única porta de acesso interno trancada por dentro, além de pessoas
permanentemente ali, na base da torre e em volta dela. O fidalgo aparece
apunhalado. Quem o apunhalou? Como entrou, e como conseguiu sair?
Esse é o enigma clássico de
quarto fechado, ou crime impossível. É o subgênero que inaugurou o moderno
romance detetivesco, porque “Os Assassinatos da Rua Morgue”, com que Edgar
Allan Poe de certo modo criou o gênero em 1841, é o enigma de duas mulheres
mortas num apartamento todo trancado por dentro. Como se evadiu o criminoso?
John Dickson Carr e Clayton
Rawson são dois grandes prestidigitadores literários, especialistas nesse
número. O locked-room mystery vai de
uma precisão enxadrística até uma mirabolância barroca na invenção de métodos
cada vez mais requintados de cometer um crime fisicamente impossível. E no
entanto não há limite para a engenhosidade de discípulos de Doyle, Christie,
Queen, Freeman, Van Dine, Edgar Wallace.
Comentando a morte brutal do
seu padrinho sertanejo, no interrogatório a que é submetido pelo Juiz
Corregedor que investiga o caso, diz Quaderna:
- O fato foi verificado no processo, Excelência: não havia indício nenhum! Eu não já lhe disse que isto aqui é um enigma sério, um enigma de gênio, um enigma brasileiro, sertanejo e epopéico? Ora, indício! Com indício é canja, qualquer decifrador estrangeiro decifra! No caso, não havia nada: nem vela dobrada, nem disco mortífero, nem botões de camisa, nem abotoaduras de ouro, nem fios de cabelo, nem alfinete novo, nem nada dessas outras coisas que costumam fornecer pistas aos decifradores dos ridículos enigmas estrangeiros!
Em momentos assim, Quaderna
é uma espécie de Policarpo Quaresma com recursos de João Grilo para não se
levar demasiado a sério. Nessa lista de Quaderna há pelo menos dois enigmas
clássicos do crime de quarto fechado; é o autor pedindo a bênção a suas
leituras de meninice e juventude.
Ariano se refere a dois
romances do inglês Edgar Wallace, um dos maiores produtores e vendedores de
romance policial da História: A Pista do
Alfinete Novo (ou Na Pista...) e A Pista da Vela Dobrada. Em cada um
deles, o objeto citado no título é encontrado na cena do crime e cabe ao
detetive demonstrar como, por meio desse objeto, o criminoso conseguiu sair e,
do lado de fora, trancar a porta por dentro, mediante cordões, mecanismos, etc.
Wallace foi fartamente traduzido
em edições populares no Brasil. Uma busca superficial na web mostra livros seus
pelas editoras Globo, Cultrix, Ediouro, Francisco Alves, Civilização Brasileira
e Itatiaia.
Uma série importante de
romances seus saiu pela antiga Coleção Amarela, da Editora Globo (de Porto
Alegre). Publicada entre 1931 e 1956, a coleção publicou um total de 35 livros
de Wallace, entre os quais esses dois romances. O Na Pista do Alfinete Novo saiu em 1936, e foi relançado (como A Pista do Alfinete Novo) em 1956; e A Pista
da Vela Dobrada saiu em 1939. Ariano,
morando no Recife a partir de 1934, pegando livros e revistas dos irmãos mais
velhos, teve acesso à coleção, que coincide com um dos bons momentos da
editora.
Sergio Karam fez uma
pesquisa detalhada sobre a Coleção Amarela, que pode ser acessada aqui, no blog
organizado por Denise Bottmann: http://colecaoamarela.blogspot.com.br/2016/07/apresentacao_10.html.
Dá para pesquisar ou apenas para banhar os olhos nas reproduções das capas.
Ariano Suassuna gostava de romances
policiais, e ao ser perguntado sobre Wallace confirmou lembrar desses dois
livros. Além de outro: Os Olhos Velados
de Londres, “a história de um criminoso cego”, dizia ele.
De fato: se a Vela Dobrada é o número 83 da coleção,
os Olhos Velados é o 84, logo a
seguir. Os dois são de 1939. Este terceiro romance eu não li na época, mas dos
cerca de 150 livros da Coleção Amarela eu tive e li pelo menos um terço, antes
dos 18 anos. Todo mundo leu Edgar Wallace. Até Virgolino Lampião tem uma foto
famosa, feita por Benjamin Abrahão, lendo um romance dele.
Havia influência de Wallace
no livro de Ariano? Não diretamente; o quarto fechado entra ali como entra João
Melchíades ou como entra Castro Alves ou como entra um romance ibérico. É o
caldeirão da memória fabulatória, a lembrança das histórias fantásticas, das
viagens extraordinárias, dos indecifráveis mistérios.
Dom Pedro Dinis Quaderna, o
herói narrador, não é um detetive convencional no Romance da Pedra do Reino. (Na minha opinião, ele é um dos
principais suspeitos do tal crime.) Ele tem, no entanto, no seu jeito mercurial
de ser, algo de matador de charadas, de enfrentador de grifos e de logogrifos, de
xereta da vida alheia, de maquinador, e de poeta meio alucinado prontinho para
ser trespassado por uma epifania. Ele quer decifrar o mistério do mundo, esta
Onça Parda e Piolhenta.
Ele pode não ter muito
cacoete de detetive clássico, mas se diz, orgulhosamente: “Quaderna, o
Decifrador”. Talvez essa fórmula seja até um eco do “Quaresma, Decifrador”
mencionado a certa altura dos Contos de
Raciocínio, as incursões de Fernando Pessoa neste nobre gênero literário.
5 comentários:
que texto sensacional, Braulio. Obrigada.
Baita texto, Braulio! Abraço!
Sérgio Karam, parabéns pela pesquisa. E obrigado pela enxurrada de lembranças felizes que me trouxe!
Valeu, Renata. Depois vou incrementar mais esse assunto!
Mais um belo artigo, Braulio! :-)
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