sexta-feira, 4 de março de 2016

4067) Os ilustradores (5.3.2016)



Meu pai colecionava dicionários, mantendo aliás uma competição ferrenha com Átila Almeida, professor de matemática da UFPb e pesquisador de cordel. Dois dos seus pais-dos-burros preferidos eram o Lello Universal (que ele tinha na edição pequena, e eu décadas depois consegui na grandona) e o Dicionário Prático Ilustrado de Jayme de Séguier, que era como um amigo íntimo da família. Depois de muito manuseio ele resolveu encadernar o Séguier, separando-o em dois volumes. O que me parece até hoje um sacrilégio, mas ele gostava por isso mesmo, porque era prático.

Havia neles pranchas de página inteira mostrando só peixes, ou só armas de fogo, ou só bandeiras, ou só esportes, ou só flagelos da natureza. Outras mostravam um ambiente vasto, uma paisagem repleta de pessoas, animais, plantas, utensílios, veículos... A legenda: “Austrália” ou “Floresta Tropical”.  O ilustrador compactava num único quadro a óleo o DNA simbólico daquele país ou paisagem.

Walter Benjamin (“Livros Infantis Antigos e Esquecidos”, 1924) diz: “No final do século XVIII, aparecem livros ilustrados com a seguinte característica: uma grande variedade de coisas, que não têm entre si qualquer afinidade figural, são impressas numa única página. São objetos que começam com a mesma letra: amora, âncora, agricultor, atlas. Os vocábulos correspondentes são traduzidos em uma ou várias línguas estrangeiras. A tarefa do artista era semelhante à do desenhista barroco quando combinava objetos alegóricos numa escrita visual (...)”.

Eram aqueles retratos pintados por Arcimboldo: homens e mulheres feitos de frutas, de pássaros, de flores. Lembra também o delírio do “pirado” Ceferino de Cortázar (Rayuela), uma classificação das coisas do mundo pelas suas cores, o que faz o narrador comentar: “Que realidade deslumbrante (ou não) lhe mostrava cenas onde os ursos polares se moviam, em imensos cenários de mármore, entre jasmins do Cabo? Ou corvos em ninhos sobre um monte de carvão, com uma tulipa negra por cima...”

Regras tão belas como rimas, que são regras tão arbitrárias quanto qualquer outra. Um único conceito, arrebanhando elementos até então nunca aglomerados juntos sob um mesmo critério. Algo como os monovocalismos de Georges Perec ou de Christian Bok. Seres de uma só cor, de uma só vogal, de uma só inicial, de um só país, de uma só religião... (Não sei por que, estes últimos têm um peso específico realista demais, movedor-de-engrenagens demais.) Borges chamou a ordem alfabética de desordem alfabética. “Nesta imagem, tudo está ordenado por um só critério, um máximo divisor comum, pode ser uma letra, pode ser uma mesma história, pode ser uma cor.”





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