É o único trajeto que ele percorre, às vezes diariamente, às vezes dia sim dia não.
Nunca deixa de ser, para quem mora sozinho, uma aventura e um pesadelo. Sair do apartamento, descer dois lances de escada, chegar à rua, fazer compras rápidas, voltar para casa.
Tudo não dura uma hora, mas para Seu Tomás equivale a caminhar num fio esticado entre dois arranha-céus. Oito décadas de ferrugem nas juntas não lhe ajudam os movimentos, e seis décadas de cigarro lhe empedraram os pulmões; mas não é o desgaste físico do trajeto que o faz estremecer. É o que ele se habituou a chamar, consigo mesmo, de Os Altos e Baixos.
Por exemplo: sair de casa. Ao fechar atrás de si a porta, troca um olhar de passagem, no corredor, com a vizinha do 603. D. Lucíola: seu azedume, suas reclamações, suas fofocas.
Profundamente infeliz, Seu Tomás se arrasta para o elevador, desce. À sua volta tudo poreja pessimismo e hostilidade. Pensa que se o prédio se incendiasse morreria feliz, vendo-o arder.
Na portaria, Gilson, magrinho, de óculos, atencioso, lhe estende um envelope que acabou de chegar. O mundo se transforma. É o contracheque da aposentadoria, com seis dias de atraso. Seu Tomás o guarda como se fosse a chave do Paraíso, e é o Paraíso que encontra ao chegar à calçada e se misturar aos transeuntes. Bom dia, calçada. Bom dia, banca de revistas. Bom dia, ônibus lotados, carros, barulho, bom dia buzinas, bom dia vitrines e anúncios em néon.
O Paraíso avança ao seu redor enquanto ele caminha, mas se fende com brutalidade quando ele se aproxima da banca, vê os jornais dependurados lado a lado como lençóis para secar, e vê o caderno de esportes lembrando a derrota da véspera. E ainda mais com uma manchete sarcástica. E o retrato do artilheiro, que passou em branco, com as mãos no rosto. E a notinha apocalíptica sobre a proximidade da zona de rebaixamento. E o rebaixamento do Paraíso a Purgatório, onde nas almas punge a dor da incerteza, uma dor talvez maior, porque em movimento incessante, que a dor da condenação, que pelo menos é a Paz do Nada.
Uma noite moral se abate sobre o quarteirão. Seu Tomás desiste de ir à padaria, desiste com tal desânimo que se esquece de impedir que as pernas continuem a conduzi-lo. Não quer ir à padaria. Quer voltar para casa. Agora. Não. Quer deitar na calçada, agora. Quer enrodilhar-se como um cão friorento, como uma minhoca atingida, quer fazer como a serpente mitológica que engole a própria cauda até sumir por completo.
Mas, ai! – as pernas o trouxeram à padaria, e quem está hoje no caixa senão Donana, a negrinha catita? Quando o vê ela abre um sorriso de dentes alvos e batom rubro. “Seu Tomás! Quem é vivo sempre aparece!” Os peitinhos estão ali, sob a blusa branca e engomada, prontos, quem dera, para qualquer eventualidade. Seu Tomás abre um sorriso, abre a carteira, abre um par de asas, faz a parte publicável do seu pedido, volta pra casa sem tocar o chão.
4 comentários:
Belo conto, Braulio! É a primeira vez que venho ao seu blog. De cara gostei! Você escreve bem. O que é raro na chamada blogosfera. Mas você é um puta artista, eu sei disso. Inclusive lembro ter assistido na TV um documentário sobre repentistas no qual você e o Astier Basílio participam. Enfim... Vou linkar seu blog no meu. Abraço!
ô coisa lindaaaaaa :)
Cara, quantos indícios e símbolos, quantos ditos pero non dito! Putz! Que iluminação! Rasgada a seda; mas como não fazê-lo, se pelo prazer que me causa, na manhã de trabalho dessa sexta pré-véspera da ante-véspera à véspera de segunda, em que faço prova para mestrado em literatura... Vamos ao trabalho!
Abraço, BT.
Kdu.
Valeu, galera. A gente escreve para receber respostas assim. Por isso quando as editoras vêm me oferecer dinheiro eu recuso e direciono para as obras do PAC. A arte é a única recompensa da arte!
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