domingo, 28 de fevereiro de 2010

1725) Machado: “O Anel de Polícrates” (21.9.2008)





(Machado, por Sergio Leo)

Este conto de Machado (em Papéis Avulsos, 1882) inspira-se na lenda de Polícrates, tirano da ilha grega de Samos. Cumulado de favores pela sorte, Polícrates temeu que o Destino lhe reservasse algum castigo. Um assessor o aconselhou a fazer um sacrifício, desfazendo-se de um bem precioso. Ele atirou ao mar um anel que prezava muito; no dia seguinte, o cozinheiro do palácio abriu o ventre de um peixe, encontrou o anel, e o devolveu ao rei. 

É a versão benigna da tragédia grega. Não se pode fugir ao destino, e mesmo a sorte, quando insistente, parece uma maldição.

Isak Dinesen retoma a lenda (em “O Peixe”, no livro Contos de Inverno) para romancear a história do rei Erik da Dinamarca, que acha no ventre de um peixe um anel de pedra azul. Alguém reconhece nele o anel de uma dama da corte, Ingeborg, cujos olhos eram da mesma cor. O rei diz: 

– Quando as mulheres formosas usam jóias, procuram harmonizá-las com alguma parte do seu rosto ou do seu corpo. Pérolas exprimem a beleza do seu colo ou dos seus seios; rubis e granadas evocam seus lábios, suas unhas, seus mamilos. Você me diz, então, que esta pedra é igual aos olhos dessa dama?... 

A crônica se encerra dizendo: “Srig Andersen matou o rei Erik por vingança, depois que este seduziu sua esposa, Ingeborg”.

Freud comenta Polícrates no ensaio O Estranho (Das Unheimlich), observando que uma sorte excessiva, ou a sistemática realização de todos os desejos, não são algo para se desejar. Diz que o rei do Egito afastou-se de Polícrates horrorizado, ao ver que todos os desejos do amigo eram imediatamente satisfeitos, afirmando que “também o homem feliz tem que temer a inveja dos deuses”. 

Freud vê nessa crença uma manifestação da crença na onipotência dos pensamentos, como se cada desejo intenso que experimentamos fosse imediatamente convertido em realidade.

Machado usa o anel para ilustrar com ironia sua teoria pessoal dos memes, para mim uma visão satírica da vida cultural do Rio, com todo mundo copiando, plagiando, imitando e apropriando-se de idéias alheias. Desenvolve o mesmo tema em “Evolução” (Relíquias de Casa Velha, 1906): o narrador diz uma frase a um conhecido, e no correr dos anos vê o outro repeti-la com pequenas variantes, assenhoreando-se dela pouco a pouco.  

O protagonista de “O Anel de Polícrates", Xavier, é um típico personagem machadiano: o Sonhador Pródigo, o indivíduo com talento mas sem foco, que vive espalhando idéias, iniciando projetos que não leva a cabo, concebendo planos mirabolantes que nunca dão em nada. Machado reverte a alegoria da sorte, contida na lenda grega, usando o anel (a frase) como símbolo do caiporismo de Xavier. Inventor da frase, ele a ouve nos lábios deste e daquele mas não consegue memorizá-la de novo, apossar-se dela. 

A frase é anel e ao mesmo tempo um peixe escorregadio ou ave arisca que sempre lhe foge: “Quando ele supunha pôr a mão em cima da idéia, ela batia as asas, plás, plás, plás, e perdia-se no ar, como as figuras de um sonho”.





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