Os dez primeiros minutos deste filme são de tirar da sala qualquer espectador que tenha entrado ali apenas em busca de uma poltrona enquanto come pipoca e fala ao celular. Reconstituindo a sujeira e a violência das ruas de Paris no século 18, ele nos oferece uma antologia impecável de imagens de sujeira e violência, e nos faz mergulhar de cabeça no ambiente onde nasce Jean-Baptiste Grenouille, o homem que tem o olfato perfeito.
O livro de Patrick Susskind foi grande best-seller há 20 anos. Muita gente deve lembrar dele. A adaptação é cuidadosa, fiel, visualmente impressionante. Descrever cheiros, seja com palavras ou com imagens, só é possível através de associações de idéias, e o filme o faz tão bem quanto o livro. (Se não leu o livro, caro leitor, vá dar uma olhada; seu olfato sairá muitíssimo enriquecido). Em alguns momentos me veio à memória aquele filme recente (Entre Umas e Outras, ou Sideways) em que um cara degusta vinho e faz descrições mirabolantes dos sabores que está sentindo.
O Perfume não é só isso. É também a história de um serial-killer, e talvez isto tenha ajudado na realização deste filme caríssimo, porque o cinema elegeu o serial-killer como símbolo de nossa época (Freud explica). É uma história de ficção científica, pois mostra como é possível, através de manipulações químicas, controlar e manobrar as emoções das pessoas. É também um conto fantástico, ao postular um indivíduo com uma percepção sensorial impossivelmente aguda e sem nenhum odor em seu próprio corpo. Vi algumas críticas onde se comentava que Grenouille, o Homem Que Não Tem Cheiro, seria por causa disto o próprio Diabo, o que me trouxe à mente a lenda que comentei nesta coluna em “O Diabo: o homem que não sua” (5.4.2006).
Grenouille mata mulheres para extrair a essência de seus corpos e fabricar o perfume perfeito, capaz de produzir em quem o sente a ilusão de estar no Paraíso. Seu mestre Baldini (Dustin Hoffman) tem, para explicar a beleza dos perfumes, uma teoria musical baseada em notas, acordes dominantes e sub-dominantes. Grenouille me lembrou o filme Amadeus de Milos Forman: é um Mozart maligno. Diante de uma linda mulher, ele, nascido na sarjeta e criado no submundo, não sabe o que fazer com ela, a não ser roubar e guardar, com a obsessão de um vampiro avarento, o precioso líquido em que aquela beleza foi destilada em essência.
O diretor é o mesmo de Corra, Lola, Corra (que comentei aqui em 9.12.2005). Dois filmes de tema, técnica, estilo e espírito completamente diversos – o que, para mim, é uma excelente recomendação para um diretor de cinema. O Perfume é uma dessas raras adaptações cinematográficas tão densas quanto o livro original. Não é para todos os gostos, mas, ao contrário dos filmes de Hannibal Lecter, não glorifica o sadismo ou a crueldade. O assassino é desumano o bastante para que não queiramos nos identificar com ele, e possamos acompanhar de fora a limpidez de sua obsessão.
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