Já não se fazem músicas de duplo sentido como antigamente. Uma das coisas mais difíceis na vida é ser fiel a um princípio e criticar os erros de sua aplicação. No momento em que fazemos uma dessas críticas, salta logo um inconformado; “Mas você não é a favor? Tá reclamando de quê?” Eu gosto, por exemplo, destes forrós nordestinos com letras de duplo sentido, que parecem estar dizendo uma coisa bem inocente mas que têm um subtexto, um trocadilho ou uma alusão de natureza sexual. Gosto porque faz parte de nossa linguagem, de nossa cultura, de nossa molecagem, de nossa maneira maliciosa de provocar as garotas dizendo uma coisa mas mostrando que estamos pensando em outra. Faz parte do jogo de sedução, da provocação bem humorada e não-ofensiva. Quando parte para o palavrão agressivo, o termo escatológico usado para escandalizar, perde a graça. Deixa de ser duplo sentido. Fica repetindo uma coisa só, sem sutileza, sem malícia, sem sedução que faça a menina avermelhar o rosto.
Quando Luiz Gonzaga diz “Eu tava na peneira, eu tava peneirando, eu tava no namoro, eu tava namorando”, o balanço da peneira de farinha é usado para sugerir o balanço erótico dos quadris, o que é reforçado quando ele diz que “de madrugada nós fiquemo ali sozinho...” Existe a malícia sadia do sertanejo jovem que não pode ver uma caboca dando sopa. Existe erotismo, um erotismo que se cobre com a folha-de-parreira da linguagem inocente: o que é isso, papai, a gente tava só peneirando a farinha...
Não sei até que ponto Rosil Cavalcanti tinha intenção de malícia quando inventou uma das cenas mais surrealistas de nossa música: a comadre Sebastiana pulando feito uma guariba, e gritando: “A, E, I, O, U, ipsilone!” Temos em primeiro lugar a rima em “U”, que é sempre uma das mais maliciosas. E em segundo lugar, sabemos todos que “picilone” é gíria popular para “palavrão”: “Fulano ficou danado da vida, gritou meia-dúzia de picilones e foi-se embora”. E existe também (aqui entramos num plano mais icônico-simbólico, mas tudo bem) o fato de que a própria letra Y sugere, em seu grafismo, a visão, a curta distância, do púbis feminino.
Rosil reincide noutra gravação, esta claramente maliciosa: “Quadro Negro”. Todos lembram, na voz de Jackson do Pandeiro, a história dos alunos da vaidosa D. Filomena, professora na vila de Acauã. Sempre muito vaidosa, mas seu modo de sentar proporcionava “cinema sem despesa” para os alunos sentados na fila da frente. Ela pergunta por que é que os alunos estão tão calados, e o narrador, num rasgo de audácia infantil, diz: “Eu então respondi à Filomena que eu estudo é olhando o ‘quadro-negro’!” E o refrão diz: “Um B com A, bêabá... Um B com E, bêebé... Um B com I, bêibí... Um B com O, bêobó... Ora vão estudar que é melhor!” É a própria professora quem exclama, ao se aproximar da perigosa região das palavras começadas por “bêubú”, fonte perpétua de atração para garotos que nunca leram Freud.
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