A ficção científica é como o xadrez, a música sinfônica ou a química orgânica. Para quem não domina seus conceitos, é um caos sem sentido. Para quem os aprendeu, é uma fonte inesgotável de beleza, conhecimento e evolução mental.
O uso inesperado de palavras comuns e a invenção de novas palavras é um dos recursos mais fascinantes desse tipo de literatura. Há um exemplo clássico, muito citado pelos críticos, de uma história de Robert Heinlein ambientada no futuro onde a certa altura o autor diz, assim como quem não quer nada: “The door dilated”. A porta se dilatou. A porta se expandiu, se alargou.
O autor implica que no futuro as portas serão aberturas que se dilatarão, como pupilas, para que as pessoas passem por elas, em vez de consistirem em abertura vedadas por painéis que giram em ângulo sobre dobradiças. As portas poderão ser (e os cenógrafos dos filmes de FC adotaram isto rapidamente) como diafragmas de máquinas fotográficas.
Uma frase discutida há pouco na New York Review of SF é bem típica das circunvoluções barrocas a que a FC pode chegar, para deleite dos aficionados e perplexidade dos leigos. Críticos ficaram debatendo os méritos ou os excessos de uma frase de Charles Stross num livro recente:
“An unoptimized instance of H. Sapiens maintains state coherence for only two to three gigaseconds before it succumbs to necrosis”. Mais ou menos: “Um exemplar não-otimizado de Homo Sapiens mantém coerência de estado por apenas dois ou três gigassegundos antes de sucumbir à necrose”.
Um gigassegundo (um bilhão de segundos) dá aproximadamente 31,7 anos. Duas ou três vezes isto é uma média de tempo de vida bem razoável para um corpo humano não-otimizado, ou seja, sem receber os implementos, próteses, aditivos bio-moleculares ou outros fatores com que a civilização futura possa aumentar nossa longevidade. Sem isso, é claro que entre os 62 e os 93 anos um ser humano sucumbe à necrose.
O que há de interessante nesta frase é que nela o jargão científico – que infelizmente provoca tanta rejeição na maioria dos leitores – tem uma dupla função: informativa e poética. “Poética” com o sentido bem específico de “intensificação de efeito”.
Este resumo do destino biológico do ser humano é como aqueles documentários em que, por meio da câmara acelerada, vemos a terra se abrir, uma folhinha verde brotar, em alguns segundos uma arvorezinha tenra esticar-se para o alto, com um caule que vai aos poucos engrossando e se escurecendo, abrindo galhos fortes e ramos mais finos em todas as direções, cobrindo-se de folhas que rapidamente caem e são substituídas por outras, até que os galhos secam, o tronco mirra, apodrece e se desfaz.
Um século inteiro de vida em poucos segundos. Essa capacidade de sintetizar o tempo cósmico e a existência humana em poucas frases, que foi uma especialidade de Augusto dos Anjos, é um dos muitos e raros prazeres que encontramos na ficção científica.
2 comentários:
Oi Braúlio,
Muito bons seus artigos.
Pretendo usar o termo "gigassegundo" de agora em diante. Toda vez que meu chefe pedir um trabalho ou minha mulher me mandar lavar a louça e botar o lixo pra fora, responderei:
"Já vou já... É pra este gigassegundo!"
Obrigado e parabéns.
Boa tarde
Ótimo esse artigo, sim! Aliás, gosto dos artigos que o amigo Tavares atualiza o blog.
E essa do termo "gigassegundo", heim?
Não fosse esse artigo, 'poucos' passariam a conhecê-lo.
Até mais ver
Leonardo Nunes Nunes
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