quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

4551) Algumas notas sobre "O Irlandês" (19.2.2020)





O Irlandês (“The Irishman”, 2019), de Martin Scorsese, é como se fosse o líquido de um mesmo barril servindo para encher uma garrafa nova. Quem já viu filmes de gangster envolvendo os nomes de Scorsese, De Niro, Pesci, Pascino, Keitel e mais alguns outros pode ter certeza de que vai ver “um pouco mais daquilo mesmo”.

É o cinemão de Hollywood naquilo que tem de mais eficaz, e eu vi de uma assentada só, com pequenas paradas para pesquisar na Wikipedia nomes e fatos. É um resumo de décadas da vida política e da crônica policial dos EUA. Não senti o tempo passar. O filme não é longo. Poderia ser reduzido? Sim. Qualquer filme pode ser reduzido e ganhar mais tensão narrativa. Qualquer um, inclusive A Saída dos Operários das Fábricas Lumière.

A primeira coisa que me chamou a atenção nos primeiros vinte minutos, foi que o músico Robbie Robertson (“The Band”) escolheu dois baiões para caracterizar o espírito dos anos 1950 nos EUA. Ouvimos ao fundo, em cenas de restaurante ou de loja, “El Negro Zumbón”, conhecido aqui no Brasil como “Baião de Anna”, que é, curiosamente, um baião italiano.  Rômulo e Romero Azevedo já tinham me mostrado na trilha sonora de Os Boas Vidas (1953) de Fellini.

O baião de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira varreu os anos 1950 de ponta a ponta, tendo sido, como nesse exemplo, não só tocado mas imitado na Europa. No filme “Anna” (1951), de Alberto Lattuada, é Silvana Mangano, cheia de charme e de “el bayón”, que canta “El Negro Zumbón” numa cena digna das cenas de boate nas chanchadas da Atlântida.


O outro baião de O Irlandês é o “Delicado”, de Waldir Azevedo, que a orquestra de Percy Faith, num arranjo muito bom, levou ao primeiro lugar da parada musical norte-americana:

Scorsese é um diretor de “cinemão” e não abre mão disso. O filme talvez tenha precisado de 3 horas e tanto porque, ao contrário de outros thrillers seus, é baseado em personagens reais. Em casos assim, o roteirista e o diretor consultam estantes inteiras de livros de referência e em geral sentem-se na obrigação de fazer ressalvas e esclarecimentos sobre fatos políticos reais: a campanha de Kennedy, o escândalo de Watergate, a invasão frustrada da Baía dos Porcos, o sumiço de Jimmy Hoffa...

Lidar com fatos extensamente discutidos e documentados sempre aumenta um roteiro. Numa história inventada, foi isso e pronto. Numa história real, a cada segundo alguém ergue o braço questionando o que viu na tela.

Jimmy Hoffa, por exemplo, é um crime insolúvel, um dos desaparecimentos mais famosos dos EUA, juntamente com os de Ambrose Bierce, o Juiz Crater, e outros. A versão do filme é aceitável: foi morto e cremado às escondidas, e fim. Uma adaptação dirigida por Danny DeVito e escrita por David Mamet, em 1992, Hoffa, sugere um final igualmente plausível para o personagem, interpretado por Jack Nicholson.

Outro gangster notório mostrado no filme é Joey Gallo, abatido a tiros de revólver num pequeno restaurante onde comemorava seu aniversário num pequeno grupo. Ao ser alvejado, Gallo correu para a rua, para desviar o tiroteio da mesa onde estava a família. Gallo mereceu uma canção de Bob Dylan, escrita com Jacques Levy, “Joey” (no álbum Desire, 1976).

A canção é esta:

Desire foi um álbum em que Dylan voltou a fazer canções contextualmente políticas: “Hurricane”, defendendo um boxeador acusado de assassinato, e “Joey”, celebrando esse mafioso, em versos que lhe renderam muitas críticas. Dylan chegou a afirmar que os versos eram todos de seu parceiro musical na época, Jacques Levy, cujas letras celebravam seus próprios heróis, que nem sempre Dylan admirava. Outro exemplo disso é “Catfish”, em homenagem a um craque do beisebol, gravada por Dylan nessa mesma época mas só lançada em 1991.

O filme não tem novidades, como também não tem defeitos que me incomodem. Talvez não tenha a movimentação de, digamos, Os Intocáveis de Brian de Palma. Mas apesar de Scorsese ser bom diretor de cenas de ação ele é muitas vezes, em filmes até bem diferentes entre si, um acompanhador de opções feitas por alguns personagens ao longo da vida. Ele acompanha e mostra como esses destinos ficam muitas vezes a um fio da destruição, e quando menos esperamos o herói está calvo, octogenário, uma cadeira de rodas numa casa de repouso.

O cinema deu aos mafiosos um charme que eles talvez nunca tenham tido, por isso eles talvez convivam sem muita tensão com essas obras que os apontam como criminosos frios, cheios de cobiça. Os mafiosos de Manhattan tentam ter estilo, tentam apresentar lendas pessoais e narrativas próprias que lhes deem uma dimensão maior. Nisso, criminosos acabam reproduzindo os rituais e as etiquetas dos cidadãos de bem. Criminosos gostam de se sentir importantes, gostam de banquetes de homenagem, gostam de posses e formaturas, da concessão de títulos, gostam das cerimônias de aceitação mútua entre poderes que disputam uma área. Jantares no capricho, discursos, medalhas de honra-ao-mérito, placas comemorativas, elogios incessantes, tudo isso cimentando publicamente a foto-da-nuvem dessa turbulência permanente que é a luta pelo poder, pelo comércio ilegal, pelos mercados locais.

Gente que vive para o poder gosta de cultivar esses hábitos, para impressionar círculos concêntricos da opinião pública: festanças, boca livre, uma orquestra, um mafioso septuagenário cantando “Al Di La”. Tudo isso ajuda a tecer os equilíbrios estratégicos, as convivências no-limite, as ameaças constantes, as alianças de olhos bem abertos.

Numa das últimas cenas, alguns homens estão num carro em movimento pela cidade. Um deles avisa que o banco de trás está molhado porque ele teve que ir buscar um peixe. Isso desencadeia entre eles uma discussão que gira em círculos, e que ninguém consegue fechar. Que peixe era? Como assim, comprou um peixe sem saber o que era? Era para um amigo? Que amigo? Seu amigo entende de peixe?

Bandidos, sejam eles milicianos, mafiosos, yakuzeiros, ou membros da Strange Magnificence, vivem num clima permanente de paranóia, de desconfiança. Veem uma ameaça em cada objeto, em cada frase, em cada pessoa que surge numa esquina. Bandido vive da traição (convidar um cara para um encontro secreto de líderes, com tudo já pronto para a execução sumária, por exemplo) e quem disso usa disso cuida. Que mancha é essa? Peixe? Que peixe?

O poema de Bertolt Brecht, “A Máscara do Mal”, diz (na tradução de André Vallias):

Pende em minha parede um talhe japonês
máscara de um demônio maligno, dourada.
Compadecido eu vejo
as veias estufadas na testa, mostrando
como é estafante ser maligno.










sábado, 15 de fevereiro de 2020

4550) "They Live" de John Carpenter (15.2.2020)




Dias atrás estive em São Paulo, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, para participar do Cineclube Sci-Fi, uma programação de exibição e debate de clássicos da ficção científica, sob a coordenação eficiente e simpática de Sabrina Paixão e Cláudia Fusco.

Eles Vivem (“They Live”, 1988), de John Carpenter, foi o filme que debatemos, e que gerou discussões proveitosas durante cerca de duas horas.

Eles Vivem é uma obra curiosa, um filme B com certos cacoetes amadorísticos, certo apego afetivo a clichês narrativos, mas por outro lado tem momento de uma narrativa vigorosa, reviravoltas surpreendentes, e um conteúdo crítico presente do começo ao fim, em sua distopia de um país invadido por seres poderosos e manipuladores.

O protagonista, John Nada, é um cara musculoso e simplório (tipo o Pedro Orósio de “O Recado do Morro” de Guimarães Rosa), cheio de boas intenções mas de assimilação meio lenta. Ele se depara com uma conspiração aterrorizante e cruel, em escala planetária. O que fazer? Sabe que é apenas um cara bronco, sem grana, sem nenhum poder além da musculatura que o ajuda a agarrar um policial pelas costelas e arremessá-lo bem longe.

É o tipo do filme que se tivesse grande orçamento botaria nesse papel um bronco com mais pedigree, como Schwarzenegger ou Stallone. John Carpenter teve a idéia de colocar como protagonista um lutador de wrestling, Roddy Piper, cujos talentos como ator são modestos, para dizer o mínimo.

Me lembrou um meme cruel que li certa vez, a mensagem de um apaixonado para a suposta namorada: “Eu preciso de você mais do que Ben Affleck precisa de aulas de interpretação.”

Curiosamente, isso acaba funcionando, porque deixa mais abismal a sensação de perplexidade e de impotência do personagem quando descobre a conspiração interplanetária. Se alguém pode representar (sem a necessidade de atuar) um sujeito perdidão é Roddy Piper.

O gimmick (ou pequeno truque) principal do filme é o uso de óculos escuros especiais que permitem aos personagens filtrar as imagens e distinguir não somente os humanos dos ETs, como perceber as mensagens subliminares (“Compre!”, “Reproduza-se!”, “Obedeça!”) presentes em toda a parafernália das capas de revistas, anúncios, cartazes, outdoors, etc.



“Óculos mágicos” são um antigo motivo da literatura fantástica, e até aqui no Brasil temos um honroso precursor, Joaquim Manuel de Macedo, com A Luneta Mágica (1869). Nesse romance, um rapaz míope recebe sucessivamente dois pares de óculos mágicos: o primeiro lhe permite ver o mal que há nas pessoas, e o segundo lhe mostra o lado bom. Como o rapaz é bastante ingênuo (Roddy Piper poderia interpretá-lo numa adaptação para a tela), acaba se dando mal em todas as situações.

A cena mais famosa do filme é a da briga no beco entre John Nada e seu amigo Frank, com toda a estilização, exagero e artificialidade das lutas de wrestling. Vê-se que Carpenter é um aficionado da luta-livre, acha bacana, e se diverte esticando ao máximo um confronto onde dois caras fortões parecem estar dando pancadas demolidoras um no outro, mas mal dão sinais de terem apanhado.

Muito melhores são as duas cenas de violência policial: a destruição dos acampamentos dos Sem Teto, que nos lembra, detalhe por detalhe, as centenas de cenas idênticas que já vimos nos telejornais brasileiros, e a invasão da polícia no lugar de reunião da resistência clandestina. Carpenter é um bom diretor de cenas de ação, com movimentos bem coreografados, cortes rápidos, uma boa noção espacial: não desorienta o espectador mas consegue reproduzir a sensação de caos e desorientação de momentos assim.

“Vim aqui pra mascar chiclete e meter pé-na-bunda, e o chiclete acabou”, é a frase famosa do filme, quando John Nada entra numa agência bancária de carabina em punho.  Ao que se diz, era uma das frases que o lutador inventava e anotava num caderninho para dizer no ringue. Entrou para o filme e ficou famosa.

Carpenter tem nesse filme um estilo menos tenso, menos cuidadoso e menos “realista” do que em clássicos anteriores como Fuga de Nova York (1981) e O Enigma do Outro Mundo (“The Thing”, 1982). Talvez por ser esta uma narrativa conduzida praticamente em todas as cenas pelo personagem principal, ela parece mais solta, menos intencional, menos “eficiente” do que os dois filmes anteriores, que são filmes de ação e suspense conforme o figurino.

Essa competência anterior certamente gerou a expectativa que fez They Live estrear em número 1 nas biheterias norte-americanas, e foi certamente esta narração mais pedestre, mais distanciada, mais arrastada, que fez o filme cair bruscamente nas semanas seguintes.

O forte de They Live é o seu recado político onde fica bastante clara a comparação do autor entre os alienígenas predadores e o grande capital neo-liberal que naquela década começou a passar o rodo no mundo, na era Reagan-Thatcher.

Carpenter extrai um ótimo contraste visual entre os EUA empobrecidos e mendicantes da primeira parte do filme, e o subterrâneo meio surrealista das sequências finais. Tendo conseguido furar as defesas dos ETs, John Nada e Frank vão parar num labirinto de corredores que são uma alusão direta aos “bunkers” do complexo militar-industrial-financeiro que governa hoje as grandes e as pequenas nações.

No meio desse labirinto, ele vão parar num incongruente salão de banquete, com candelabros, mesas finas, cristais, homens de smoking e mulheres de vestido longo. Parece uma festa da Câmara do Comércio ou um daqueles jantares de apoio a uma candidatura presidencial.

Não é isso, mas é algo próximo disso: é uma comemoração da aliança firmada entre os ETs e os humanos que decidem apoiá-los em sua invasão. Não existem invasões sem algum tipo de colaboração por parte de algum grupo entre os invadidos.

Dos corredores blindados do bunker os dois vão parar no salão de banquete, dali para o ponto de teleporte onde os indivíduos são desmaterializados e remetidos para Betelgeuse, a estrela de onde vêm os invasores, e dali para o estúdio de TV de onde provêm toda a programação colorida e festiva que envia mensagens subliminares de conformismo e obediência.

Com essa sucessão de ambientes improváveis o diretor consegue um impulso narrativo acelerado para as cenas finais onde os dois amigos, já desmascarados, e perseguidos por todo mundo, tentam sabotar a antena que emite o sinal.

Eles Vivem pode ter decepcionado, em suas primeiras semanas, o público mais amplo que John Carpenter havia conquistado com seus filmes de ação impecáveis. Ele tem, no entanto, qualidades de tema e de execução que suplantam em muito suas eventuais “tosqueiras”.

Disse Howard Hawks (reza a lenda) que um filme é bom quando “tem três cenas boas e nenhuma ruim”. Dessa frase dele eu extraio uma verdade paralela: se um filme B tem três cenas boas, não importa o quanto as outras sejam ruins. E nem é este o caso de Eles Vivem, que na verdade só perde um pouco quando comparado a filmes melhores do diretor, mas tem méritos próprios de verdade política e de estranheza visual.











quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

4549) Minhas canções: "O Valor do Nordestino" (12.2.2020)



Durante alguns anos da década de 1970, trabalhei na organização do Congresso Nacional de Violeiros, de Campina Grande. Alguém me perguntou uma vez quanto eu ganhava. Resposta: não ganhava nada, era feliz. Tinha um bom pretexto para passar dias, noites e madrugadas conversando sem parar com cantadores de viola. Com o que aprendi nesses anos formei uma poupança de onde faço saques diários até hoje, e que está longe de se esgotar.

Uma das minhas atribuições era fazer parte da Comissão de Seleção – a comissão que escolhe os assuntos e os motes que serão sorteados no palco, em cima da hora, para que os cantadores improvisem. Todo ano eu me auto-nomeava para essa comissão, e era aprovado pelos verdadeiros organizadores do Congresso, os membros da ARPN (Associação de Repentistas e Poetas Nordestinos): José Gonçalves, Ivanildo Vila Nova, José Laurentino, Santino Luiz, Moacir Laurentino, Juvenal de Oliveira...



Um mote que forneci num desses Congresso deu o que falar:

Se não fosse o valor do nordestino,
em São Paulo não tinha arranha-céu.

Os repentistas reclamaram que o mote era “ruim de rima”, porque só admitia poucas palavras: escarcéu, troféu, xaréu, mundéu... Eu argumentei que tinha mil outras: cordel, anel, coronel, Babel, mel, fel... E ninguém aceitava. A rima tinha que ser exata. Argumentei que o som era o mesmo, e que rima-se pelo som, não pela grafia. Mas o Colosso da Tradição não arredava pé. Cantador gosta de dificuldade!

(É por isso que quando uma vez recitei Morte e Vida Severina, de João Cabral, para alguns deles, ouvi o comentário: “É, a linguagem é bonita, a crítica social também, mas ele rima qualquer-coisa com qualquer-coisa...”)

Algum tempo depois, lembrei-me que não sou cantador, sou, como João Cabral, um mero beneficiário indireto do que eles produzem; e compus uma série de glosas ao meu próprio mote, cantadas em variações da melodia do martelo agalopado.

Quando fui morar em Salvador em 1977, iniciei uma parceria musical com Zelito Miranda, quando ambos fazíamos parte do Teatro Livre da Bahia, sob a direção de João Augusto, em encenações memoráveis como Oxente Gente, Cordel (1978).

Hoje em dia Zelito incendeia multidões com seu “forró temperado”, e ainda canta várias músicas desse tempo, de quando participávamos juntos das famosas “coletivas musicais” de uma época em que, vejam só, a grande queixa dos músicos baianos é que não tocava música baiana nas rádios de Salvador, a não ser os discos dos tropicalistas e dos Novos Baianos.

“O Valor do Nordestino” era um desses trabalhos em martelo agalopado que eu e ele cantávamos juntos, alternando os versos, no Restaurante Universitário, no Teatro Castro Alves, no Teatro Vila Velha, nos palcos improvisados da Ufba e nas Residências Universitárias de que Salvador era cheia.

No espetáculo Oxente Gente, Cordel esta canção era um dos números musicais da nossa dupla, “O Galo de Campina” e “Zé Miranda de Serrinha”.

Fizemos um sem-número de parcerias que nunca foram gravadas, mas esta aqui ficou parcialmente registrada por Zelito num DVD:


Abaixo, a letra original completa, que acabei publicando no folheto (hoje uma raridade!) que acompanhava a peça do Teatro Livre.




Quem vê tanta avenida e edifício,
construção, catedral e viaduto,
muitas vezes nem pensa no matuto
que lutou com suor e sacrifício,
exercendo a dureza de um ofício
sem pensar em medalha nem troféu,
confiando que alguém de lá do céu
compensasse o rigor do seu destino:
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

Operário da construção civil
em São Paulo ou no Rio de Janeiro
dá um duro danado o mês inteiro
e o que ganha não chega a ser 3 mil.
Vem de lá do Nordeste do Brasil
faz igreja, faz ponte, faz motel,
faz a vila onde mora o crioléu
e faz casa de luxo pra granfino:
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

Quando vem lá do norte ele não passa
de mais um joão-ninguém desempregado
e com tudo que vê fica espantado:
com a pressa, o barulho e a fumaça.
Vai dormir sobre o banco de uma praça
sem emprego, a vagar de déu em déu,
se cobrindo com as folhas de papel
de um jornal semanário ou matutino...
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

A cidade possui um ar cinzento
que irrita a garganta e o pulmão
e no meio da tal poluição
se eleva a floresta de cimento:
espigão de escritório e apartamento
tem a torto e a direito, e a granel,
e quem faz esas torres-de-Babel
é o nortista migrante e peregrino:
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

Ele fez pavilhões no Anhembi
fez Congonhas e Ibirapuera,
Interlagos e a Via Anhanguera,
o hotel Hilton, o Othon, o Normandie;
ele fez os degraus do Morumbi
onde a massa alvinegra da Fiel
nos domingos faz festa e escarcéu
grita gol, solta bomba e canta hino...
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

Quando vem lá do norte ele não traz
nem bagagem, nem roupa, nem dinheiro,
traz somente a herança de vaqueiro:
duas mãos, a coragem, nada mais...
E constrói avenidas e canais,
constrói posto pra Esso e para a Shell,
constrói torre e antena da Embratel
e constrói a boate e o cassino.
Se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

Nordestino em São Paulo ou Guanabara
é tratado dum jeito diferente
porque lá no Nordeste toda a gente
tem respeito a seu nome e sua cara.
Mas no Sul é chamado “pau de arara”,
“paraíba”, “baiano” ou “tabaréu”:
quando fala com gente de anel
só lhe tratam por “zé” ou “severino”...
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

Nordestino no Sul é cidadão
que não vale uma prata de dez réis:
quase sempre nem pode pôr os pés
nesse prédio que fez com a própria mão.
Vez por outra ele cai da construção
e o destino se torna mais cruel:
fica morto, a família fica ao léu,
e ninguém diz o nome do assassino...
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

A tarefa que exerce é muito dura,
muito mais que a do próprio arquiteto:
faz coluna, parede, piso e teto,
e o cimento com a pedra ele mistura;
faz com viga e concreto a estrutura,
faz o forro, o lambril, põe o painel;
quando acaba a pintura com um pincel
chega um rico, e se torna o inquilino...
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

Houve um tempo em que o homem do sertão
quando estava faminto e injustiçado
tinha um rifle, um facão bem amolado,
e virava Corisco ou Lampião.
Hoje em dia ele vai num caminhão,
chega lá, constrói ponte e faz hotel;
mas vai lendo um folheto de cordel
que é pra não se esquecer de Virgolino...
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

·         Alguns detalhes nessa letra, que ainda sei de cor quase por inteiro, são bem “de época”. Nomes de hotéis e logradouros, por exemplo, eu tirei dos jornais – quando escrevi estes versos eu não conhecia São Paulo, onde só desembarquei justamente para a encenação da peça onde eles eram cantados.

·         Um conselho aos jovens: saibam que toda vez que vocês mencionarem cifras monetárias numa letra (“e o que ganha não chega a ser 3 mil”) o teor desse verso vai oscilar dramaticamente ao longo das décadas, de acordo com a inflação. Em 1977 (consultei agora) o salário mínimo era de Cr$ 1.106,40 cruzeiros, e a primeira versão da letra referia-se a “2 mil”. Era um dos versos mais chatos de cantar, porque cinco anos depois o mínimo já estava em torno de 23 mil.

·         “Crioléu” parece uma rima forçada, mas na época era uma palavra posta em circulação por Henfil, no Pasquim. A editora Codecri, que o Pasquim manteve durante anos, ganhou seu nome de um hipotético “Comitê de Defesa do Crioléu”, inventado nas tirinhas do irmão de Betinho.

·         Se cobrindo com as folhas de papel de um jornal semanário ou matutino...” – qualquer fã de Jackson do Pandeiro reconhece aí uma alusão clara à canção “Meu Enxoval” (“com quatro mil réis eu compro o enxoval: Diário da Noite e a Última Hora”).

·         “A herança de vaqueiro: duas mãos, a coragem, nada mais”. Não foi intencional, mas ainda acho este verso um comentário inconsciente ao de Carlos Drummond (“Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo”). 

·         “Vez por outra ele cai da construção”: ecos inevitáveis de Chico Buarque (“Construção”, 1971) e do filme de Ruy Guerra (A Queda, 1978).

·         “Quase sempre nem pode pôr os pés / nesse prédio que fez com a própria mão.” Referência também inevitável a outro grande sucesso da época, a canção “Cidadão”, de Zé Geraldo: “Tá vendo aquele edifício, moço, ajudei a levantar...”











domingo, 9 de fevereiro de 2020

4548) A arte de matar uma galinha (9.2.2010)




A mãe arrepanhou as saias e sentou no batente da escadinha curta que descia até a terra do quintal.

O menino estava tentando encaixar de volta uma peça de madeira que tinha se soltado de um brinquedo. Ele sabia onde era, e como podia ser colocada de volta, só não tinha a destreza de fazê-lo, mas estava tentando.

Rik, rik, rik, rik. A faca foi amolada em impulsos rápidos, na aresta do degrau de pedra.

O menino sentiu o olhar dela, ergueu a cabeça e ficou de pé, largando o brinquedo.

A mãe estava ajeitando umas vasilhas. Olhou para ele, indicou com o queixo:

-- Pega aquela galinha ai. A que eu deixei solta.

As outras pareciam estar entendendo o que se passava, porque um frêmito medroso as agitava sem parar por trás das telas enferrujadas e das grades de bambu.

A galinha solta era uma mariscada de preto e branco, com um tronco vigoroso.

-- Vai fazer o que com ela?

-- Pare de perguntar uma coisa quando você já sabe. Só pergunte o que não souber mesmo. Vá, vá, deixe de dar maçada.

O menino deu alguns passos na direção da galinha. Na sua experiência até então, de brincadeiras de quintal, as galinhas entregavam-se com alacridade e boa fé às suas perseguições inocentes, que nunca davam em nada. Conduzi-la agora ao cadafalso, porém, era outra coisa.

Eu sei que vai se dar alguma coisa, diziam os olhos erráticos e apavorados da galinha. Seu instinto de presa devia ter alguns milhões de anos. Ela reconhecia o que estava para acontecer.

Rik, rik.

O menino avançou, a galinha espanejou suas penas e recuou meio metro, mas manteve-se de olho pregado nele, em guarda total. “Por que não foge?”, pensou ele.

-- E se ela voar por cima do muro? – perguntou.

-- Não voa – disse a mãe.

-- Eu já vi essa galinha subir mais do que a minha altura.

-- Por isso mesmo eu cortei a asa esquerda dela. Vá, agarre ela, bote moral.

-- E se ela me beliscar?

-- Você não é homem não? – E com o senso de humor temperando a impaciência: - Se fizer muita cera eu pego essa faca aqui e lhe capo.

A galinha descreveu alguns semicírculos salpicados de cocoricós. A cada vez se detinha. Mesmo que pudesse voar por cima do muro, talvez ela preferisse ficar ali, ativando os reflexos milenares do balé-da-presa, com o fatalismo resignado de quem nunca predou ninguém.

Um pulo, um engalfinhamento. Ao aviso da mãe ele agarrou, na primeira chance que teve, as duas asas numa mão só. Com a outra segurou o pescoço, para se prevenir contra o bico. Ali perto morava uma menina que perdeu um olho assim.

A ave parecia ter metade da altura dele.

Era trêmula, morna, e emitia um zumbido de vida própria, como o da geladeira. Ele a trouxe debatendo-se sem muita tática, e a deitou no batente. A mãe se soergueu com agilidade, plantou o pé descalço e sujo nas asas desiguais, maltratando um pouco. Era disto que a galinha parecia estar se queixando. Ela não imaginava nada depois dos maus-tratos que a incomodavam agora.

A mãe puxou a faca para perto, e o prato fundo de barro. Prendendo a faca na palma da mão direita, usou o polegar e o indicador em pinça para arrancar as penas do pescoço da ave, largando-as pelo chão, sem ligar.

A galinha gorgolejou. Com um gesto vigoroso da mão esquerda, a mãe puxou a cabeça da ave para trás, expôs o pescoço pelado e abrasivo. Com os dedos retesados da mão direita deu uma série ritmada de pancadas no pescoço.

-- Pra chamar o sangue -- explicou. -- Pegue o prato. Quando eu cortar, enfie o prato aqui, por baixo dela.

A faca desceu na carne avermelhada, nas cartilagens, fazendo brotar uma golfada rubra que o menino conseguiu recolher no prato. A força das golfadas foi diminuindo, diminuindo, e depois o intervalo entre elas foi aumentando.

O prato estava vermelho e refletia o brilho do céu lá fora.

Houve um gesto rápido, um ruído abafado como se alguém tivesse arrancado a cabeça de uma criatura.

A mãe se virou olhou para ele e disse:

-- Você não gosta tanto de cabidela?

-- Sim!

-- Não gosta tanto de comer no jantar aquele sangue cozido, que fica feito uma borracha escura, e você corta com a faca e espeta no garfo?

-- Sim!

-- Pois é tudo feito com isso aí. Traga, tenha cuidado.

A panelona dágua fumaçava. Já estava meio fumaçando quando ele tinha ido brincar no quintal. Quando nem ele nem ela sabiam ainda o que ia acontecer. Só a mãe.









quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

4547) A magia negra de Agatha Christie (5.2.2020)



Um dia desses vi por aqui na web o anúncio de que na Inglaterra estava sendo produzida, pela BBC, uma série de TV baseada neste romance de Agatha Christie, The Pale Horse (1961), e como era um dos vários que nunca li, achei por bem dar uma olhada. Não me arrependi. Lamento apenas (como sempre que leio um livro nessas circunstâncias) não ter lido 20 ou 30 anos atrás.

A magia negra, a feitiçaria e o mundo sobrenatural não aparecem com frequência na obra de Dame Agatha, que costuma ser voltada para outro tipo de Oculto: o inconsciente, as coisas que a gente pensa sem saber que está pensando, as coisas que nos pensam, nos guiam, nos levam a agir dessa ou daquela maneira. E que às vezes nos conduzem ao crime.

A expressão “the pale horse” é uma citação do Apocalipse, celebrizada literariamente num livro de contos de Katherine Anne Porter, Pale Horse, Pale Rider (1939), que não sei se Dona Agatha leu e guardou a imagem na cabeça. Pode até ter lido: fui checar agora e vi que o livro de Ms. Porter é ambientado durante a epidemia de influenza que matou 50 milhões de pessoas no começo do século, e que Agatha certamente acompanhou, já adulta.

Há um eco distante dessa temática neste romance dela, em que pessoas aleatórias começam a morrer de gripes e pneumonias variadas, em Londres e arredores. Uma combinação de circunstâncias faz chegar à polícia uma lista de nomes repassados por uma mulher, em seu leito de morte, para um padre, que logo em seguida é assassinado.

Os assassinos não conseguem roubar a lista (objetivo do crime), e a polícia começa a desconfiar que aquelas mortes naturais não eram tão naturais assim. E o que dizer das pessoas ainda vivas daquela lista? Estão sob ameaça?

O narrador é Mark Easterbrook, um historiador intelectual, de espírito investigativo, que lembra em alguns momentos os protagonistas dos romances policiais de Colin Wilson. Ele descobre que um vilarejo com o interessante nome de Much Deeping abriga uma conspiração que envolve rituais satânicos, fenômenos mediúnicos, mortes provocadas à distância... Ou será tudo imaginação?

As histórias sobrenaturais de Agatha estão reunidas em The Hound of Death (1933), doze contos interessantes, onde o que mais se destaca é o menos sobrenatural de todos, “The Witness for the Prosecution”, que depois seria transformado numa peça e num filme de sucesso. Ela se detinha geralmente em temas como premonição, mau olhado, fatalidades inexplicáveis, clarividência, etc.

The Pale Horse faz uma citação explícita ao Macbeth, porque grande parte do seu enredo tem como foco três “bruxas” idosas e excêntricas que se dedicam a rituais misteriosos.

Por outro lado, e aqui está uma interessante camada nova de significado, o romance pertence à fase moderna da autora, onde ela se dedica a comparar os “velhos tempos” com os “novos tempos”; nessa linha, o melhor dos que li é o Espelho Quebrado (“The Mirror Crack’d From Side To Side”, 1962). O choque entre gerações e entre modos de agir, visto pelos olhos de uma mulher já sessentona ou setentona.

Entre os personagens de The Pale Horse a gente encontra tipos tradicionais, como o milionário colecionador, o pároco interiorano, as vizinhas fofoqueiras e os funcionários aposentados de tantos outros livros. Mas há também as moças londrinas de saia curta ou de calças compridas colantes, que bebem nos bares; há empresas de pesquisa de mercado; e há, perpassando todo o mistério do livro, uma conversa difusa sobre “energia negativa”, “raios mortais”, “ondas mentais”, “cérebros eletrônicos” e todo um jargão de pós-guerra, de princípio da era espacial.

O sobrenatural escondido no vilarejo de Much Deeping pode ser uma força bruta, primitiva, ancestral, talvez a malignidade cega e primordial que inspirava Arthur Machen e Algernon Blackwood; mas ela pode estar se manifestando através de aparelhagens elétricas e eletrônicas, e é isso que deixa Mark Easterbrook (e o Inspetor Lejeune) com a pulga atrás da orelha. E se, afinal de contas, esses poderes mágicos existirem de fato? E se forem apenas mais uma força da natureza que até então não conhecíamos, como a energia atômica?...

Boa parte do romance policial no pós-guerra assume essa dualidade entre ocultismo e ciência (ou pseudo-ciência), e The Pale Horse talvez seja um dos exemplos onde a autora melhor consegue se equilibrar no fio de arame da dúvida até a resolução (bastante satisfatória) nos capítulos finais.

E tão importante quanto isto é a capacidade dela em descrever os tipos dos vilarejos do interior, seu comportamento, seus valores, suas manias. E seu mergulho sempre alerta nos porões da maldade, da crueldade e do sadismo, e do impulso misterioso que leva algumas pessoas à cegueira moral e ao crime.

Ao comentar as bazófias das bruxas que se dizem capazes de matar à distância, uma personagem diz:

Como regra geral, pela minha experiência, as pessoas realmente malignas não vivem se gabando. Conseguem ficar quietas a respeito da própria maldade. É somente quando seus pecados não são tão graves assim que elas se dedicam a comentá-los. O pecado é uma coisa tão degradada, tão pequena, tão ignóbil... Para essas pessoas é terrivelmente necessário fazer com que ele pareça algo importante e grandioso. (p. 68)

E no final, Easterbrook e o Inspetor Lejeune comentam os crimes:

-- O que me deixa perplexo, sempre, – [disse o Inspetor] – é pensar como uma pessoa pode ser tão inteligente e ao mesmo tempo tão estúpida.

-- A gente sempre imagina um grande criminoso – disse eu – como sendo um personagem imponente e sinistro, uma personificação do Mal.

Lejeune balançou a cabeça.

-- Não, não é bem assim – disse ele. – O Mal não é uma força sobre-humana, é alguma coisa menos que humana. Um criminoso é alguém que quer se tornar importante, mas nunca terá a importância com que sonha, porque será sempre algo menor que um ser humano. (p. 185-186)

Não é uma formulação tão elegante e complexa quanto a da “banalidade do Mal” de Hannah Arendt, mas é também uma boa descrição da nossa experiência no dia-a-dia.



(Agatha Christie)







domingo, 2 de fevereiro de 2020

4546) Os contos de Guimarães Rosa (2.2.2020)




Guimarães Rosa estreou com Sagarana (1946), um volume de contos longos, ou noveletas, um tipo de narrativa onde ele parecia sentir-se totalmente à vontade. Nesse formato, ele não se limitava a contar a estória principal. Divertia-se em incrustar pequenos episódios que não tinham nada a ver com o enredo em si mas tinham tudo a ver com a Estória maior sendo contada. Inseria seus impagáveis personagens secundários, aqueles que surgem, brilham por uma ou duas páginas e desaparecem para sempre...

Ele começou assim, como um escritor de peripécias largas, e de arcos narrativos amplos que se estendiam por dezenas de páginas.

Seu segundo livro, Corpo de Baile (1956), ampliou essa tendência.

Só para comparar: a quarta edição de Sagarana tem nove contos em 365 páginas, o que dá uma média de 40 páginas por estória. 

A segunda edição de Corpo de Baile, de 1958 (a única em que todos os sete contos estão reunidos num volume só) tem 515 páginas, o que dá uma média de 73 páginas por conto.


O autor estava estendendo-se cada vez mais, como prova o tijolaço que foi o romance Grande Sertão: Veredas (1956), uma única narrativa em 574 páginas (na segunda edição, a que possuo).

Depois disso, começou a encolher: seu livro seguinte, Primeiras Estórias (1962), tem 21 estórias em 176 páginas, média de oito páginas por conto.

E seu livro final (excluindo os póstumos), Tutaméia (1967) tem 44 textos (40 contos e 4 prefácios) distribuídos por 192 páginas, numa média de quatro páginas por texto.

É um movimento bastante nítido de narrativas que começam com grande extensão, vão se ampliando... E depois recuam, pressionadas pelas marés da vida, reduzem-se e se concentram em contos compactos, concentradíssimos, que alguns críticos mais impacientes consideram quase ilegíveis.

Os dois últimos volumes de contos que Rosa publicou em vida têm uma origem completamente diversas das de Sagarana e Corpo de Baile, histórias espichadas pelo autor ao seu bel-fazer, compondo preguiçosamente com caneta e caderno.

Os contos de Primeiras Estórias e de Tutaméia tiveram, praticamente todos, uma primeira edição em periódicos, e foram revisados em seguida para a publicação em livro. Isso sem dúvida contribuiu para que os textos de cada volume tivessem entre si aproximadamente a mesma extensão, visto que apareciam em páginas com espaço predeterminado. Isso é bem mais visível em Tutaméia.


De acordo com a bibliografia organizada por Plínio Doyle para o precioso volume Em Memória de João Guimarães Rosa (José Olympio, 1968), os vinte e um contos de Primeiras Estórias foram selecionados, em sua maioria, dentre 34 textos publicados pelo autor, semanalmente, no jornal O Globo, entre 7 de janeiro de 1961 e 26 de agosto do mesmo ano.


Ali saíram, por exemplo, alguns dos contos mais importantes daquele livro, como “Soroco, sua Mãe, sua Filha” (18-3-1961), “A Terceira Margem do Rio” (15-4-1961), “Um Moço Muito Branco” (29-7-1961) e assim por diante. Dos textos não selecionados para Primeiras Estórias, vários acabaram sendo recolhidos no volume póstumo Ave, Palavra (1970; 2ª. edição, 1978), organizado por Paulo Rónai.

Algo parecido aconteceu com os textos que foram reunidos anos depois em Tutaméia. Rosa colaborou, entre maio de 1965 e julho de 1967, no semanário médico Pulso, editado pelo Laboratórios de Sidney Ross, no Rio de Janeiro, sob a direção do Dr. Roberto de Souza Coelho. Eram colunas quinzenais, porque ele, ao que parece, se revezava com Carlos Drummond: o texto inicial citado por Plínio Doyle nesse segmento intitula-se “Guimarães Rosa em PULSO, revezando com Drummond” (15.5.1965).

Esse obscuro semanário trouxe a público as primeiras versões de boa parte do conteúdo de Tutaméia.

Um levantamento cuidadoso da história editorial destes textos está no texto (disponível na web) “Tutaméia, a Trajetória da Escrita”, de Sandra Paro, da PUC-GO.



Tutaméia surgiu, portanto, de um compromisso profissional de colaboração na imprensa, num espaço provavelmente limitado, que fez com que os contos acabassem tendo mais ou menos a mesma extensão. Alguns dos textos de Tutaméia são episódios breves, cuja ação interna dura apenas algumas horas, ou até minutos; outros são narrativas de uma vida inteira. Tudo comprimido no mesmo espaço que, naquela década, era provavelmente medido nas tradicionais laudas de 2.100 toques (30 linhas de 70 toques cada).

Por um lado, isto certamente reflete a vida mais atarefada do Guimarães Rosa pós-1956, envolvido com entrevistas, supervisão de traduções e de reedições, compromissos literários – para não falar nas suas atribuições como diplomata, às quais sempre se dedicou com o mesmo zelo que aplicava ao trabalho literário.

Mostra também a maleabilidade do escritor, que despontou para o sucesso com contos de 40 páginas e duas décadas depois não se recusava a atuar dentro da camisa-de-força das quatro páginas. O que levou os textos deste derradeiro volume a um certo preciosismo verbal (ou “maneirismo”, como admitia Ariano Suassuna, seu amigo e grande admirador).