quinta-feira, 9 de novembro de 2017

4285) "Incrível! Fantástico! Extraordinário!" (9.11.2017)





Falei algum tempo atrás neste blog sobre a figura de Almirante (Henrique Foreis Domingues), radialista, cantor, compositor, um desses personagens fundamentais na história da música popular e do rádio no Brasil.


Almirante criou programas de variedades escutados pelo Brasil todo. Colecionava informações sobre cultura popular, cultura oral, folclore, histórias, crendices, costumes, superstições. Seu arquivo pessoal acabou se transformando no Museu da Imagem e do Som, no Rio.

Incrível! Fantástico! Extraordinário! era um programa radiofônico com histórias verdadeiras de assombração. Quando eu era pequeno, meus pais tinham esse livro das Edições O Cruzeiro, com um longo prefácio falando da importância dos contos de fantasmas, e uma série de “relatos autênticos” que foram dramatizados no programa.


No começo eu tinha medo até de tocar nesse livro. Quando estava em cima de um móvel e eu precisava mexer nele por alguma razão, eu pegava qualquer objeto comprido (uma régua, um cabo de espanador) e o empurrava. Pra não tocar.

Depois cresci, perdi o medo e li o livro todo. Minha história preferida era “A Companheira Macabra”, história de um cara (talvez um estudante de Medicina) que pega uma caveira humana de verdade e a leva de bar em bar, bebendo e dando bebida à caveira. Depois ele encontra uma mulher linda e misteriosa que começa a fazer-lhe companhia. E por aí vai.

Quando vim morar no Rio, encontrei essa primeira edição na Biblioteca Nacional.

E depois, em 1989, a Editora Francisco Alves compilou um segundo volume dos casos relatados por Almirante, com prefácio de Sérgio Cabral. É este exemplar o que tenho comigo hoje.



Os casos eram enviados pelos ouvintes, no Brasil inteiro. Histórias no perfil tradicional do conto de fantasma brasileiro. Uma pessoa que é vista depois de morta, ou no instante em que está morrendo bem longe dali. Pessoas que prometem “fazer uma visita”, morrem, mas vêm cumprir a promessa. E assim por diante.

Como escritor, essas histórias não me interessam, porque a mecânica é sempre a mesma: alguém vê a “alma” de uma pessoa que já morreu, e geralmente isso acontece para “dar uma lição de moral” aos vivos.

Alguns contos, no entanto, têm leves variantes que poderiam servir como ponto de partida para um argumento de ficção.

Como em “Fenômeno de Levitação”, ocorrido em 1949 na estrada Rio-Petrópolis. Um casal se hospeda com a filha pequena, Fanny, para pernoitar à beira da estrada. De noite, dão por falta da menina. Dão o alarma. Vem polícia, vem bombeiro, mais de 100 pessoas buscando a criança sumida. E o autor conclui:

A verdade é que minha querida Fanny, às quatro e meia da manhã do dia 27 de julho daquele ano de 1949, foi encontrada lá embaixo no fundo de um despenhadeiro de uns 80 metros, a mais de 200 metros da casa! Lá estava ela, num ponto dificílimo de ser alcançado, calmamente, sentada, sem um arranhão, sem um ferimento, tão sossegada como se estivesse em sua caminha...

Gosto quando a “vingança” do defunto se dá por outros meios. Em “O Retrato” (caso de 1944), duas irmãs, Elvira e Leonor, eram brigadas; odiavam-se, e não se falavam mais. Leonor morre e anos depois Elvira encontra o ex-cunhado, que lhe pede uma foto da falecida. Elvira vai buscar e percebe que a foto está intacta, mas Leonor não aparece mais nela. Foi apagada.  E conclui:

Seu ódio é tão forte que nem quis deixar com a irmã uma lembrança do que fora em vida.

Dramaturgicamente, o clichê do “fantasma que aparece” poderia ser substituído com vantagem pelo “fantasma que faz desaparecer as coisas relacionadas com a sua vida na Terra”.

Gente morta que aparece a gente viva me parece pouco interessante. Mais intrigantes são mistérios que ocorrem sem nenhuma morte envolvida, como em “A Irmã Ausente”, um caso de 1914 na Bahia.

Um casal tem cinco filhas e, por problemas de saúde, precisa deixar três delas passando um tempo em casa de parentes distantes. Um dia, “M.”, uma das duas crianças que ficaram, afirma que uma das irmãs ausentes, “Si”, apesar de distante apareceu de repente na casa, e ao vê-la assustou-se.

Dias depois a mãe fala com a família onde “Si” estava hospedada e ouve o relato assustado:

Então foi um caso de telepatia, de transmissão de pensamento, pois ontem à noite a Si deitou-se naquele sofá e adormeceu. De repente, ela deu um pulo e acordou toda espantada. Perguntei o que houve, se ela estava com alguma dor e ela respondeu que não, que estava sonhando com a M. E que, quando a irmã chegou perto dela, assustou-se e acordou...

Pode ser telepatia mas pode ser também uma dessas dobras do espaço-tempo em que por uma fração de segundo dois pontos distantes se tocam (como quando vamos dobrar um lençol, pegamos duas quinas distantes e as juntamos uma com ao outra).

As histórias de assombração mais interessantes são as que não têm lição moral, nem exemplo humano, nem valor afetivo, nem catarse emocional. São simplesmente inexplicáveis, como o caminhão carregado de latões (que balançam sem fazer barulho) e sem ninguém ao volante, que repetidamente ultrapassa outro veículo numa estrada deserta à noite (“O Caminhão Fantasma”, 1952) ou o caminhoneiro que ao chegar perto de uma ponte resolve parar no acostamento para tirar um cochilo, desliga o motor, apaga os faróis... e acorda quatro horas depois, mais de 20 km à frente, com o carro ainda desligado (“A Ponte Sinistra”, 1949).

A história de terror tem geralmente o viés, o cacoete, a mania de ser um conto moral, quando poderia ser uma investigação dos bugs, dos “glitches”, dos maus-funcionamentos das leis do Universo; dos erros da Matrix.










segunda-feira, 6 de novembro de 2017

4284) O autor e a palavra (6.11.2017)




O saite Literary Hub fez um teste com seus leitores, via Twitter. A idéia lançada era: Existe alguma palavra do idioma inglês que, assim que a vemos, lembra de imediato um autor?

O autor da matéria, Kaveh Akbar, argumenta que não pode ouvir a palavra “purple” (=roxo) sem lembrar de Prince, por causa da canção “Purple Rain”.

A questão lançada tem uma certa sutileza, porque ele não está perguntando palavras inventadas por autores, o que seria muito mais fácil. “Jabberwocky” é uma palavra inventada por Lewis Carroll, “cyberspace” foi inventada por William Gibson, “riverrun” por James Joyce e assim por diante.

O que ele pergunta é o caso de palavras que já eram termos comuns da língia inglesa, mas que foram usadas de forma tão marcante por um autor que acabaram se associando a ele.

Os leitores trouxeram twitters com muitas sugestões, a maioria de autores que desconheço, mas tem alguns que não há como negar.

Quem pode negar, por exemplo, que “Howl” ficou para sempre associada ao famoso poema de Allen Ginsberg? O substantivo uivo e o verbo uivar continuam aparecendo normalmente em um milhão de textos, mas é como se grudado a eles viessem sempre, como um balão de gás amarrado no parachoque de um carro, a barba e os óculos do poeta beat do Greenwich Village.

Ele dá exemplos recentes: “handmaid” (=aia, criada) ficou associado a Margaret Atwood depois do romance/série de TV The Handmaid’s Tale.

Alguém lembrou que mesmo uma coisa de uso prático como a escala Fahrenheit passou a lembrar Ray Bradbury por causa do romance Fahrenheit 451 – a tal ponto que Michael Moore intitulou um documentário seu Fahrenheit 11/9, em alusão ao mundo de Bradbury, não ao da medição térmica.

O saite lembra que a palavra “tyger” ficou associada a William Blake pelo seu famoso poema “Tyger, tyger, burning bright / in the forest of the night...” Com o detalhe de que isso só ocorre na forma arcaica da grafia, com “Y”.

Também na lista aparecem “flâneur” (a cara de Charles Baudelaire), “inferno” (a cara de Dante – note-se que o uso corriqueiro em inglês é de “hell”, sendo “inferno” uma palavra de cunho latino usada em casos excepcionais), “solitude” (a cara de Garcia Márquez, e o tradutor Gregory Rabassa já explicou por que preferiu este termo a “loneliness”).

De minha parte, nunca deixou de me espantar o título do famoso conto de Edgar Allan Poe sobre a carta furtada: “The Purloined Letter”. Em décadas de leituras em inglês não me lembro de ter visto esse verbo, “to purloin”, usado por quem quer que fosse. É como se Poe o tivesse inventado.

E em português?

A primeira palavra-pregada-a-um-autor que me ocorre é a inevitável “nonada”, que já era corrente no idioma mas Guimarães Rosa tornou inequivocamente sua.

Igualmente corrente era a palavra “armorial”, mas como substantivo (“livro ou códice onde se reúnem reproduções de brasões e armas heráldicas”). Neste sentido, existe até em inglês (vejo de vez em quando em livros por aí). Ariano Suassuna deu-lhe cunho de adjetivo e tornou-se indissociável dele.

A palavra “banguê” pode ser de uso corrente na zona canavieira, mas no caso de leitores de qualquer outra parte a sensação que temos é de que foi José Lins do Rego que a inventou no título de um livro famoso. O mesmo argumento pode valer para “bagaceira” e José Américo de Almeida.

São palavras meio raras, e essa raridade torna mais fácil a sua anexação a um uso famoso. Porque palavras mais comuns, como “pedra” poderiam ser associadas por leitores diferentes a Drummond, a João Cabral, ao próprio Ariano... Palavras a que diferentes autores deram usos marcantes em cada caso, e que acabaram não se fixando em nenhum deles.

Vale para nomes próprios, também, nomes de lugares que já existiam antes de um autor se apossar para sempre do seu topônimo. Eu, por exemplo, sempre pensei que “Pasárgada” fosse uma invenção de Manuel Bandeira, mesmo tendo visto repetidas declarações dele de que colheu o nome dos livros de História.


Fico imaginando se para outros leitores as palavras “veranico”, “amanuense”, “bugre”, “catavento”, “escarro”, “senzala”, têm para todos os leitores as mesmas referências literárias imediatas que têm para mim. 





quarta-feira, 1 de novembro de 2017

4283) O Halloween e o Saci-Pererê (1.11.2017)



Todo ano vai chegando essa época e recomeça a discussão. Chamo a essas coisas “o carrossel das discussões”, porque é um debate cíclico, que nunca se resolve, e que volta todo ano, de acordo com as rotações do calendário.

Uma vez publiquei alguma coisa nas redes sociais curtindo o Halloween e o pessoal me castigou um pouquinho. Como é que eu, um defensor da cultura popular brasileira, um estudioso do folclore, e paraibano ainda por cima, posso gostar de uma comemoração americanizada como essa?

Tem muita gente incomodada com isso, porque não se trata nem de decoração das lojas nos shoppings. São as nossas escolas, que estão promovendo festinhas de Halloween para as crianças, essas mesmas escolas que não se dão o trabalho de lhes ensinar o que são a mula-sem-cabeça, o saci-pererê, o boitatá.

De fato, estes nossos duendes deviam ser mais frequentados e discutidos. Não só eles – outros igualmente interessantes como o bradador, o pé de garrafa, o corpo seco, a mulher do chapéu grande, e outros que mesmo alguns defensores de nossas mais arraigadas tradições nunca ouviram falar.

O que irrita muitos adversários do Halloween é o fato de que ele (como outras coisas) denota aquele nosso complexo de inferioridade deslumbrada diante dos EUA, aquela nossa fascinação viralata diante de tudo que é moda em Manhattan e em Beverly Hills. Concordo. É uma demonstração de que nascemos para entregar de graça nosso ouro e pagar pela bijuteria alheia.

E se formos de fato para o vamos-ver, o Halloween que se comemora em nossas capitais está na mesma prateleira dos Pokemons e Digimons, das festas temáticas de Princesinhas Disney, dos Guardiões da Galáxia, das Tartarugas Ninjas e do Bob Esponja.

Varrer isso da cultura urbana brasileira de 2017? É mais fácil proibir o consumo de Coca-Cola e de uísque escocês no país.

Meu interesse pelo Halloween não tem nada a ver com Brasil ou com Estados Unidos, não tem a ver com as fronteiras políticas dos países ocidentais neste instável começo de século 21. Tem a ver com jazidas profundas, não com os loteamentos da superfície.

O Halloween me interessa justamente porque gosto de ler sobre essa área tão canhestramente classificada como folclore. É uma jazida, como já falei. É material icônico-narrativo com mil anos de idade. Uma cartografia de parte do nosso inconsciente coletivo que se revela através de monstros, duendes, bruxas, magos, demônios, vampiros.

Para mim, o Halloween (o meu Halloween) é vizinho-de-porta da Geografia dos Mitos Brasileiros de Câmara Cascudo, uma das minhas obras de cabeceira. Vizinho-de-porta das bruxas de Goya, do romance gótico europeu, das lendas judaicas do Golem e do Dybbuk, e das lendas árabes dos Djinns e dos Efrites.

É esta, para mim, a área semântica e simbólica dessa festa, e se ela virou uma comemoração pasteurizada e comercializada, sem nada de Brasil, reclamem de quem fez o mesmo com o Natal e o São João.

O Halloween me traz à mente o País de Outubro de Ray Bradbury e as histórias de assombrações de Almirante, e não estou nem aí para a decoração das vitrines do Shopping da Gávea. Halloween pode ser estrangeiro, mas para mim não é Walt Disney: é feito dos romances de Stephen King e dos quadrinhos de Neil Gaiman – os quais, neste sentido estrito, não são americanos nem ingleses, são afloramentos de uma correnteza subterrânea que vem desde a Babilônia e o Egito.

Deveríamos celebrar com o mesmo entusiasmo nosso monstruário luso-afro-tupiniquim?  Sem dúvida, e de vez em quando estou aqui dando uma assopradazinha nessas brasas para que não se apaguem.  Não vejo contradição entre o Halloween estrangeiro e os monstros do nosso “folclore”. São todos consanguíneos. Pertencem a uma cultura anterior ao Mayflower e a Pedro Álvares Cabral.










sábado, 28 de outubro de 2017

4282) "O Ovo da Serpente" (28.10.2017)




Numa cena deste filme, Manuela (Liv Ullmann) está em crise emocional após o suicídio do marido, e vai procurar um padre católico (James Whitmore) para se aconselhar. O padre está atrasado para um compromisso e, de início, a repele e a trata com alguma rudeza. Depois se arrepende. Pede a ela que se ajoelhe no chão, junto com ele. E diz:

– Nós vivemos tão longe de Deus que ele não ouve as nossas preces. Por isso, temos que pedir uns aos outros o perdão que esse Deus distante não pode nos conceder. – Ele pousa a mão na cabeça dela. – Eu perdoo qualquer culpa que você possa ter tido na morte de seu marido. – E depois de uma pausa: – E lhe peço perdão pela minha apatia, minha indiferença diante do seu problema. Você me perdoa?

Ela põe a mão sobre a cabeça dele e diz:

– Sim, eu o perdoo.

Ele fica de pé às pressas e diz:

– Agora vamos, estou atrasado, e meu superior vai me repreender se eu me atrasar ainda mais.

E os dois saem da sacristia, quase correndo.

No cinema de Ingmar Bergman, tão imbuído daquela religiosidade angustiada e indagativa, essa cena tem mais força ainda porque O Ovo da Serpente (1977) é ambientado na Berlim de 1923, com a espantosa crise econômica, o miserê social, e o terror que era a vida das pessoas comuns na Alemanha estraçalhada pela I Guerra Mundial e vampirizada pelo Pacto de Versalhes.

É uma das produções mais caras e mais internacionais da obra de Ingmar Bergman, e (dizem) um dos seus piores filmes. São os dois aspectos menos relevantes a se discutir sobre ele.

Berlim, 1923. Abel Rosenberg (David Carradine) mora com o irmão (os dois são acrobatas de circo) numa pensão barata. Chega em casa uma noite e vê que o irmão se suicidou. Acaba indo morar com a viúva dele, Manuela, e tendo um caso com ela. Os dois conhecem um médico alemão meio rico, Vergerus, meio metido a dono do mundo, que simpatiza com Abel e tem um trelelê clandestino com a moça.

Vergerus consegue para Abel um emprego burocrático onde ele começa a ter acesso a informações sobre experiências científicas secretas que usam seres humanos como cobaias. Arranja também um lugar para o casal morar, mas daí em diante eles brigam o tempo todo, no prédio há um motor que zune dia e noite, e Abel, que já é meio alcoólico, começa a ter acessos de fúria, que contagiam Manuela.

O filme é uma mistura de “Big Brother” com Auschwitz. É o filme mais dark de Bergman, onde a angústia existencial é substituída pela brutalidade nazista e pela fome pura e simples. Na Alemanha de 1923, as pessoas vivem bêbadas, porque a bebida é barata e a comida não existe.  Há uma cena em que pessoas carneiam um cavalo morto em plena rua, no centro da cidade.



Outra influência do filme é o Cabaret de Bob Fosse, ambientado no mesmo espaço e tempo: Bergman mostra nos cabarés pobretões cenas que lembram o de Fosse: um mestre-de-cerimônias que parece calcado no de Joel Grey, números de ménage à trois grotesco com travestis. No fim, os nazistas invadem o cabaré, espancam o dono e ateiam fogo a tudo.

Abel descobre que há câmeras ocultas no apartamento, e ele e Manuela estavam sendo filmados por ordens de Vergerus. Estavam também aspirando um gás que os fazia brigar o tempo todo. Uma espécie de Big Brother à revelia dos participantes. Um prelúdio das experiências que alguns anos depois cientistas nazistas como Mengele se sentiriam à vontade para realizar nos campos de extermínio.

As experiências do filme envolvem centenas de cobaias humanas, em recintos fechados e monitorados. São uma gota no oceano. Quase um século depois, elas podem ser realizadas numa escala inimaginavelmente maior, com centenas de milhões de cobaias. Ao invés de um gás desorientador dos sentidos, algoritmos e memes cuidadosamente concebidos e viralizados.

Um mero fato (um acidente, um crime, uma crise política, uma frase de celebridade) pode ser manipulado memeticamente e se espalhar  como uma febre instantânea, produzindo milhões de respostas em ondas sucessivas que se espalham por um país inteiro ao longo de poucos dias.

Essas respostas são monitoradas, tabuladas, reforçadas aqui, neutralizadas acolá, numa experimentação em que milhares de monitores humanos e de controles robóticos filtram e classificam as reações das cobaias, indicando cada elemento capaz de extrair respostas mais rápidas, ou mais intensas, ou mais duradouras. Assim se produz o ódio, a confusão conceitual, a paixão-ou-repulsa via reflexo condicionado.

Não é necessário para isto que as cobaias estejam trancadas em kafkeanos labirintos subterrâneos. O experimento é um processo cotidiano, sem começo nem fim, um bombardeio eletrônico permanente, permanentemente aferido e recebendo correções de rumo. Permitindo prever como reagirão dezenas de milhões de pessoas quando receberem os tipos de estímulo a que foram acostumadas.

Através da membrana translúcida e delicada, pulsa o corpo da serpente por nascer.












quarta-feira, 25 de outubro de 2017

4281) O big-brode da China (25.10.2017)



(ilustração: Kevin Hong)

Quando George Orwell imaginou em 1948 o seu conceito de “Big Brother”, de uma sociedde totalitária onde existe um controle e uma vigilância totais sobre o indivíduo, isso se dava no contexto de uma sociedade com uma tecnologia bastante precária, até mesmo para a sua época.

Em 1948 a ficção científica, que ele provavelmente não lia, ou lia pouco, ainda não tinha avançado muito em termos de tecnologia de controle. O precedente mais imediato era o romance Nós de Ievgeni Zamiátin, do qual Orwell pediu emprestados tantos conceitos que muita gente considera que 1984 é um plágio.

No tempo de Orwell, tudo se fazia à base de olheiros humanos e de câmeras de TV. Hoje, toda atividade humana tem que passar por uma barreira eletrônica qualquer. Tudo passa por celulares, computadores, cartões de crédito. Tudo fica registrado. E mesmo na China Comunista, com seus números espantosos, é relativamente fácil fazer isso.

Um artigo de Rachel Botsman na revista Wired com data de novembro próximo fala do megaprojeto chinês de instituir no país, a partir de 2020, o Sistema de Crédito Social, em que todas as atividades eletrônicas dos cidadãos serão computadas para gerar um número de ranking. Diz ela para imaginarmos um mundo em que todas a nossas transações comerciais, deslocamentos, relacionamentos nas redes sociais (likes, etc.), taxas e contas pagas, tempo passado em atividades onlines, tudo será computado e gerará um número.

Isso irá criar o seu Placar Cidadão (“Citizen Score”), e dirá a todo mundo se você merece confiança ou não. Mais que isto: sua cotação será incluída num ranking que abrange a população inteira e será usado para determinar sua elegibilidade para um empréstimo ou para um emprego, ou para escolher a escola que seus filhos poderão frequentar, ou até mesmo as suas chances de marcar um encontro com alguém.

Vimos isto (ou parte disto) recentemente no episódio “Nosedive” da série Black Mirror (episódio 1 da temporada 3), onde as pessoas são socialmente “ranqueadas” através de votos recíprocos, e quem estiver abaixo de tais e tais índices perde certos direitos.

O fato do registro eletrônico estar onipresente torna essa questão um mero problema de logística, de como fazer convergir todos esses “clics” eletrônicos, filtrá-los, classificá-los. E é claro que isso vai ter utilização policial e política. Que polícia e que governo deixariam de usar uma arma como essa?

Rachel Botsman diz que um desses megaprojetos chineses, Sesame Credit, se baseia em cinco fatores. O primeiro é o histórico de crédito pessoal do cidadão. O segundo é “a capacidade do usuário de comprir suas obrigações contratuais”. O terceiro é o seu conjunto de dados pessoais (endereço, telefone, etc.). O quarto e o quinto são “comportamento” e “preferências”. É possível deduzir informações sobre as pessoas (dizem os desenvolvedores do algoritmo) a partir das informações de que ela joga dez horas de videogame por dia, ou compras fraldas descartáveis constantemente.

O artigo completo está aqui:


É interessante notar esta confluência entre a paranóia de vigilância típica das ditaduras e a capacidade de tabular e quantificar comportamentos que se tem, por exemplo, num videogame.

Existe também, para a contagem de pontos no ranking, o critério de que se alguma pessoa está “se queimando” em algum aspecto – participando de atividades antigovernamentais ou deixando de pagar impostos, por exemplo – isso pode se refletir no ranking de seus parentes, o que inevitavelmente leva as pessoas a se vigiarem e se pressionarem umas às outras.

Isso vai nos levando aos poucos para aquelas histórias de humor absurdista da Philip K. Dick, em que o sujeito vai sair de casa pela manhã e a porta computadorizada se recusa a abrir, dizendo: “O senhor está com o condomínio atrasado, só pode sair quando saldar seu débito”. Ou aqueles contos de Asimov em que os computadores conseguem descobrir um único cidadão considerado “o mais representativo da população”, e analisando suas respostas a um questionário nomeiam (sem necessidade de eleição) o próximo Presidente da República, o presidente ideal para aquele “americano típico”.

Devagarinho, devagarinho, a gente vai chegando lá.







domingo, 22 de outubro de 2017

4280) Marcus Accioly 1943-2017 (22.10.2017)




Foi ele o primeiro poeta “erudito” que vi dominar com perfeição ritmos como o martelo agalopado, o galope beira-mar, o quadrão, o mourão, a embolada. Marcus Accioly, falecido neste sábado, dia 21, aos 74 anos, foi um dos grandes poetas brasileiros de uma geração acima da minha, poeta que comecei a ler aos 20 anos e não parei mais.

Pela sua dedicação pioneira aos esquemas de ritmos e de rimas da Cantoria de Viola, devo-lhe mais do que a muitos outros poetas tão grandes quanto ele, mas que escreviam noutro universo de formas. No universo das formas fixas da cantoria, “eruditizadas”, foi pela mão dele que entrei.

Seu livro mais conhecido talvez seja o infantil e premiado Guriatã: um cordel para menino (1980). Mas o livro fundador, o que o projetou como o principal poeta do Movimento Armorial de Ariano Suassuna, foi Nordestinados (1971), saído simultaneamente com o Romance da Pedra do Reino (1971) de Ariano. Foi nesse que encontrei pela primeira vez, no papel nobre do volume em brochura, os gêneros e estilos da poesia dos violeiros. Meu livro de cabeceira por muitos e muitos anos.

Logo depois veio Sísifo (1975), um poema épico em dez cantos, com formas variadas. Neste, Marcus fez um épico que era armorial por um lado e modernista por outro. Martelos agalopados celebrando Jack Kerouac ou Elvis Presley, numa afirmação ousada de repertório pessoal. Por mais que afirmasse a importância do movimento criado por Ariano, e se sentisse vinculado a ele, Marcus Accioly sempre escolheu seus próprios temas, que eram temas da sua geração de rapazes com a mesma idade dos Beatles, de Bob Dylan.

Sísifo introduziu também o peculiar uso dos parênteses dentro da estrofe metrificada, o qual que se tornou um dos traços estilísticos do poeta a partir de então. Linhas de martelo (ou de decassílabo genérico) metrificadas de forma impecável, mas incrustadas de trechos entre parênteses, criando assim duas vias simultâneas de fluxo poético.

Não tenho o Sísifo aqui comigo, mas ilustro com uma estrofe de Latinomérica (2001), seu último e gigantesco poema épico, com mais de 500 páginas:

cantei teu sol (América) na pele
do índio nu (chagacesa ou tatuagem)
esperando que o canto (em si) revele
o seu fogo despido de folhagem
(ou seu corpo movido pela hélice
dos músculos sem outra camuflagem
que a luz) cantei a carne em carne-viva
(o sangue em chama) a brasa sem a cinza

Latinomérica, onde ele insere a voz de um Homero na celebração épica do continente, é um poema-livro em 20 partes, cobrindo a história e a mitologia da América até os dias de hoje. Uma mistura (lá vou eu com minhas comparações esdrúxulas) do Canto Geral (1950) de Pablo Neruda com As Veias Abertas da América Latina (1971) de Eduardo Galeano e as Folhas de Relva (1855) de Whitman.

Mas sempre de acordo com as escolhas temáticas do autor: a Parte IX do poema, “O Ringue”, fala das guerras, guerrilhas e ditaduras latino-americanas sob a forma de uma luta de boxe. Há trechos na Parte XII, que o autor intitula “shadow boxing”, dedicados a autores norte-americanos como Edgar Allan Poe, Hemingway, Allen Ginsberg, Walt Whitman.

Os metros são variados, mas Latinomérica usa na maior parte do tempo o formato da oitava camoniana em decassílabos, com rimas toantes, como nesta estrofe do trecho dedicado ao poeta beat Lawrence Ferlinghetti:

(saímos a um café e nos servimos
no self-service) “ponha pouco açúcar
e (se adoçante) basta pôr dois pingos
feito colírio” (ergue um brinde à música
das colheres e eu fiz um brinde aos sinos
das xícaras) foi só (com sua túnica
vermelha e a minha azul como um contraste
tiramos uma foto aquela tarde)

Quando o conheci pessoalmente eu já não era mais apenas seu leitor, já era também um autor publicado, e nos encontrávamos nos eventos literários, hospedados no mesmo hotel, recitando no mesmo palco. Marcus era aquele tipo de rosto longo, muito corado, cabelos brancos curtos, barba branca sempre bem aparada, visual aristocrático, conversa descontraída e risonha. Um poeta beatnik com sotaque dos engenhos pernambucanos.

E eu não deixei de ser o garoto de vinte anos que o descobriu numa república de estudantes em Belo Horizonte, para onde meu pai me mandou um jornal do Recife com um artigo sobre um tal de movimento cultural que Ariano Suassuna estava inventando em Pernambuco, e um poema de Marcus Accioly intitulado “Os bichos (galope beira-mar)”, uma das viradas-de-esquina decisivas no meu modo de ver a literatura.

Poema que ajudou a me levar de volta à Paraíba e aos “Retalhos do Sertão”, e do qual ainda hoje, 46 anos depois, recito de cor esta estrofe inicial (são oito ao todo), nas minhas oficinas de poesia, para não esquecer como esse capítulo da minha história começou:

Rumor entre folhas, os sóis abrasados,
os pássaros mudos, confins do sertão;
garganta, vereda, covil, chapadão,
coivaras, lajedos, clareiras, cerrados;
a marca profunda dos rastros pesados
o andar sorrateiro com jeito de dança
a boca feroz sob a pele tão mansa
o salto e o rugido suspensos no espaço
os dentes de pedra e as garras de aço
pupilas de sangue nos olhos da onça.
(“Os bichos”, em Nordestinados)









quarta-feira, 18 de outubro de 2017

4279) A Mansão Onde os Deuses Vão Morrer (18.10.2017)




Para alguns críticos, um dos elementos principais da “literatura gótica” é o fato de que essas histórias se dão em torno de um Edifício. É no Edifício que está entranhada a essência do Gótico, que seria (numa simplificação extrema) uma narrativa trágica onde ocorre uma invasão do sobrenatural no mundo físico e uma invasão do Passado no Presente.

(Digressão: Quando dizemos “um Edifício”, vejam a importância dessa inicial maiúscula, é quase uma metalinguagem holográfica do Edifício propriamente dito, com o “E” sugerindo uma estrutura vertical (“um retângulo de pé”), com andares superpostos.)

O Edifício em questão, quando a história é ambientada no tempo renascentista ou medieval, é geralmente um Castelo, uma Torre, uma Fortificação, um Templo, uma Abadia. Quando situado num ambiente urbano, pode ser um Palácio, uma Mansão, uma Catedral... Romances modernos de terror gótico têm usado com sucesso um Hotel, um Manicômio, uma Prisão, uma Escola, um Hospital, um Centro de Pesquisas, uma Biblioteca.

Lápis e papel na mão, e cada um lembre os seus exemplos preferidos, porque são de perder a conta.

Essa literatura nos propõe de início a existência de um Espaço limitado, fechado, de contornos bem definidos, algo que se avista sem dificuldade e que se destaca inequivocamente da paisagem-fundo ao seu redor. Um bloco de realidade mais compacto do que a realidade que o cerca.

E ao mesmo tempo esse Espaço é um bloco que condensa em si um Passado inteiro, uma História inteira. É um lugar saturado de Passado a tal ponto que o peso desse Passado altera o fluxo do Tempo. Distorce as relações temporais comuns, assim como um objeto de grande massa física as distorce no espaço sideral.

(Digressão: Tá vendo? Só esta tesezinha aí em cima poderia resultar num belo coffee-table book de umas 200 páginas, belamente ilustrado em cores com exemplos da literatura, do cinema-TV e das artes plásticas; e copiosas citações de textos. Alguém, que não eu, certamente botará um dia essa grana no bolso.)



Malpertuis (1943), de Jean Ray (1887-1964) é um romance famoso do gênero, que catei durante algum tempo e somente agora pude ler. Não sei de nenhuma edição brasileira até hoje. A única edição à venda na Estante Virtual (por 120,00, um preço justo) é a de La Renaissance du Livre (Bélgica), que reúne o romance e mais as coletâneas Les Contes du Whisky e Autres Histoires Noires et Fantastiques (os três livros juntos dão cerca de 600 páginas).



Malpertuis é o nome de uma misteriosa mansão decadente, numa cidade soturna, onde um homem muito rico, em seu leito de morte, convoca vários parentes e conhecidos e deixa para eles uma fortuna monumental a ser igualmente dividida entre todos, com uma condição: que todos venham morar ali para sempre, sem direito a ir embora.

Passam a acontecer então episódios grotescos, sangrentos, eróticos, inexplicáveis. Criaturas monstruosas ou meramente bizarras aparecem e desaparecem. A narrativa é a superposição de vários manuscritos redigidos em épocas diferentes, e montam um quebra-cabeças que se elucida aos poucos.

O tema central do romance, que se esclarece no final, é a morte dos deuses das religiões antigas, que começam a definhar e a se extinguir depois que os seres humanos deixam de acreditar neles. Não estou dando nenhum spoiler, porque o próprio autor, nas copiosas epígrafes de antes de cada capítulo, reitera esse tema sem cessar.

Malpertuis seria um predecessor ilustre de American Gods (Neil Gaiman, 2001) que também mostra deuses antigos vivendo hoje como seres humanos banais, envelhecidos, ainda metidos a arrogantes mas já sem muitos poderes.

Há uma adaptação cinematográfica interessante, dirigida por Harry Kümel em 1971, e que pode ser vista aqui, numa versão dublada em espanhol:


O filme realça o aspecto bizarro da narrativa, que tem algo de filmes como Delicatessen (Jeunet & Caro, 1991) e de romances clássicos de fantasia como a trilogia “Gormenghast” de Mervyn Peake (1946-50-59). São espaços fechados porém gigantescos, “maiores por dentro do que por fora”, como a Mansão Edgewood imaginada por John Crowley em outro clássico da fantasia, Little, Big (1981).

Jean Ray é um autor interessante, um produtor de pulp fiction em série que assimilou muito da excêntrica imaginação fantástica belga (a que já me referi em meu artigo aqui sobre James Ensor). Diferentemente da maioria dos autores góticos, que seguem o modelo vitoriano de livros gigantescos e parágrafos intermináveis, ele escreve uma prosa rápida, quase cinematográfica, de parágrafos curtos, uma narrativa cheia de sugestões visuais mas sem excesso de detalhe.


Ele hoje é mais famoso pela gigantesca série de aventuras de “Harry Dickson, le Sherlock Holmes américain”, que ele manteve com enorme sucesso entre 1920 e 1940. Uma série que Alain Resnais tentou filmar durante muitos anos, mas ao que parece não conseguiu levar adiante o projeto.






domingo, 15 de outubro de 2017

4278) "Mar Paraguayo" de Wilson Bueno (15.10.2017)




Neste ano completam-se 25 anos de lançamento deste livrinho fora-de-esquadro de Wilson Bueno, Mar Paraguayo (São Paulo: Iluminuras, 1992), surgido sem alarde, mas que durante esse período manteve uma presença inquietante na atenção e na memória de muitos leitores.

Presença reforçada agora com as matérias de capa feitas pelo periódico Cândido (mês de maio 2017), da Biblioteca Pública do Paraná. Mar Paraguayo é um volume de menos de 100 páginas, e sua curiosidade principal é o multidioma em que foi escrito.

O livro tem, misturadamente, trechos em português, espanhol, guarani e um meta-portunhol que a rigor não pertence a nenhuma dessas três “línguas de verdade”, cujas ortografias e gramáticas foram juntas pro espaço. A prosa do autor transita pelas três línguas sem pagar pedágio a nenhuma.

Tive um breve contato com Wilson Bueno quando ele editava a revista literária Nicolau em Curitiba e publicou um texto meu (no. 26, 1989). O lançamento deste livro, alguns anos depois, foi comentado na imprensa com a surpresa inevitável diante de um livro de idioma não apenas misto, mas “bárbaro”, e as comparações inevitáveis com o também curitibano e “bárbaro” Catatau (1975) de Paulo Leminski.

Mar Paraguayo é basicamente o monólogo de uma mulher que se defende de uma possível acusação de assassinato pela morte de um “velho” com quem ela vivia. Um “viejo” lúbrico mas impotente:

(...) el sexo de total impossibilidad. El deseo en el contudo segue existindo como una pierna amputada que prosseguisse coçando. (p. 20)

Um bordão recorrente do livro é a afirmação de que “eu não matei el viejo”, embora ela confesse o tempo todo que o traía e que era apaixonada por “el niño”, um rapaz mais jovem e atlético que lhe faz uma caridade de vez em quando e por quem ela é arriada dos quatro pneus.

...hay que devorarlo a el siempre imprevisto: dibujado en la tanga su sexo ostensivo: mas sobretodo los ojos verdes contra la cara de risa y sol: lo tórax en los embates del viento y del lamiento: a bailar en la siesta: sueño: soy su araña: álgebra: pronta jibóia: toda me enlambe su língua destra: todo lo unto de cuspo y baba: humores: suores: los miasmas: espasmos: la siesta me pone abrasado el útero profundo: (...) (p. 47)

E este recurso do “dois pontos”, usado com frequência ao longo do texto, transforma-o num trajeto sem fim de corredores que desembocam em corredores, ou frases completas que veem brotar de dentro de si frases maiores, como bonecas russas às avessas. É um recurso de pontuação ainda mais vertiginoso do que a mera vírgula das enumerações comuns.

A narradora sem nome vive com o “viejo” no balneário de Guaratuba, por onde “el niño” desfila seu físico de surfista, e ela, sabendo-se suspeita da morte do velho, desfila seu rosário de explicações que tanto a justificam quanto mais a incriminam.

Ela se confessa velha, feia, gorda, mas indomável:

“madona macunaíma” (p. 66), “puritana putana” (p. 60)

...pero nunca que abandoné mis vicios necessários e insubstituíbles en troca de estas cosas desatinadas de la estetica y del capricho. (p. 65)

O ciúme do rapaz a corrói por dentro quando ela pragueja contra as bonitinhas da praia:

...casi impossible debujar lo que sea su boca entranhada en la boca de esta chica ordinária, que se va en vano por las playas, que exibe sus tangas ecandalosas y de resto vulgares, ai que ya deseo mi madre, ai que es intransponível viver, casi imposible debujar como su piel que es mi piel toda se eriçe por esta niña sin imaginación o personalidad que es apenas un cuerpo-de-miss y nada más. (p. 52)

O velho a sustentou por um tempo, foi seu arrimo, depois virou um peso, e não há leitor que duvide que ela teria sido capaz, sim, de dar cabo dele, nem que fosse para ficar

...en nesta casa que la muerte del viejo me legô – assim como uno triunfo desnecessário. Lo mismo lo digo de nuestra conjunta corriente conta en el Banestado – en todo sentido, fundamental. (p. 51)

O que a narradora-confessional consegue, no entanto, é redimir-se e transcender-se via linguagem, porque sua prosa impura, ou “impúrpura” (como diria Chico César) é de um furor poetizante que bota abaixo as regras e se impõe pela mera força do desejo verbalizador:

Ah, mi felicidad es un cristal ante el sol, advinadora esfera cargada por el futuro como una bomba que se va a explodir en los urânios del dia. (p. 15)

Que terror puede ser la beleza! (p. 26)

El susto es el agudo espectro del pânico, una cosa asi como se fuera su íntimo fantasma, una cosa cerca de lo ante-ante-escabroso, el ante de los antes de antes. Los ancestrales y los mayores. (p. 31)

Com certas “banguelas” ladeira abaixo num torvelinho verbal vertiginoso onde não se sabe mais o que é memória, o que é léxico, o que é invenção:

...como um juego-de-jugar: pimpirrota, piribela floral, loculho sierva, cincinati, abrolhos, carmencinda, madressilva, pirilampos, antanas bástistas, casamarilla, locos complutos, boludo lorgo, lacalhe-seda, amarelinhas, esconde-atrás, noclins ereiras, marcha adelante, los cantantes juegos de rueda, teresinas-de-jesus, las teresinas, entraçada gaucha, guapa glauchas, catatéicos, constreros, filíciquis, rosaes, oscuro mistério de fábula original, las tranças, las troupas, helicáreos rans, duncans, vitrinas, duendes, vagaus, pilvos conscentes, broquílides silfos, lunfens de lérias, lunfens vivaces, como um juego-de-jugar (...) (p. 35)

(...) la fala ancestral de padres y avuêlos que se van de infinito a la memoria (p. 42)

A marafona do balneário é uma dessas entidades narradoras sem físico, só voz, cujo corpo invisível vai sendo tornado concreto pela voz com que fala, como o do narrador do clássico “Meu Tio, o Iauaretê” de Guimarães Rosa (1961; em livro, 1969), que é outra narração em português malassombrada por indigenismos em borbotão.

Experiência rara de prosa poética multilíngue, o livro e o seu autor são comentados no Cândido em artigos de Márcio Renato dos Santos e Luiz Manfredini, revelando a fortuna crítica que se amplia aos poucos ao seu redor, em estudos de Antonio R. Esteves, Douglas Diegues, Sérgio Medeiros, Carlos Henrique Schroeder e outros. Além das traduções do livro na Argentina, México, Chile e EUA.

No sê, solamente lo que miro al derredor es esto lento abismar-se del sol en el mar, suprema rueda de fuego y metal a la manera de una herida abierta en los pentimientos del cielo. (p. 50)

Que es el amor? Una solitária rosa en el desierto? Ô el simples sentimiento odioso de que es impossible, de que es impossible uno vivir sin que caiga y se levante, sin que levante-se y se caiga de nuevo, recorriente... (p. 53)

...ô ya sea mordida por el escorpión vivo de la autêntica felicidad. (p. 52)








quinta-feira, 12 de outubro de 2017

4277) Por que nunca li Kazuo Ishiguro (12.10.2017)



Coitado de Kazuo Ishiguro: entrou neste título como Pilatos no Credo. Podia ter sido Haruki Murakami, ou Yasunari Kawabata, ou Yukio Mishima, para ficar somente em alguns dos seus conterrâneos nobelizáveis.

A lista dos autores que nunca li daria alguns terabytes de arquivo “.rtf” e serviria como um excelente guia de estudos para a juventude dos próximos séculos.

Alguém me diz:

– BT, o que você acha da obra de Gilles Deleuze?

– Nunca li – respondo.

– Por quê?

E aí a conversa trava, porque não sei o que responder. Já quis ler. Já devia ter lido. Preciso ler! Seguramente lerei, daqui para o ano 2095.

Eu não tenho a menor idéia de por que não li esses caras, porque em tese todos me interessam, eu não tenho nada contra nenhum deles, não acho que sejam chatos, que sejam reacionários, que sejam incompreensíveis, que sejam entediantes.

Às vezes pego finalmente o livro para ler e não gosto, porque descubro que têm um desses defeitos, ou algum outro. Mas isso nunca me ocorre antes da leitura.

Ouço falar em “Peter Ackroyd”, em “Elisa Lispector”, em “Jane Austen”, em “Mário Palmério”, em “Harold Bloom”, em “Dyonélio Machado”, nesse pessoal que todo mundo lê e elogia, e sempre me dá uma vontade danada de conhecer a obra deles.

E não se fale na inacessibilidade dos livros, porque muitas vezes já tenho alguns na estante.

Acontece que “ler um livro de alguém” é um ato voluntário, uma decisão. “Não ler um livro de alguém” não o é. Cada livro pegado pra ler tem no outro lado da balança 100 livros que não tiveram essa sorte (ou azar). Ler um é cancelar a possibilidade de estar lendo os outros. E nem sempre estamos lendo “A” porque achamos que ele é superior ao restante do alfabeto. As razões para ler são milhões, e as razões para não ler, quase nenhuma.

Existem pessoas metódicas, que leem metodicamente, fazem listas de leitura e as cumprem fielmente. É uma questão de profissionalismo, que admiro.

O respeitável S. T. Joshi afirma que para escrever seu clássico ensaio The Weird Tale (1990) programou-se para ler tudo que foi escrito pelos seus autores estudados (Arthur Machen, Lord Dunsany, Algernon Blackwood, M. R. James, Ambrose Bierce e H. P. Lovecraft). O grau de detalhe com que ele aborda essas obras (às vezes várias dezenas de livros, no caso de alguns deles) dá a entender que leu mesmo tudo.

E existem leitores que só fazem isso quando estão trabalhando a sério sobre algum assunto, mas são totalmente caóticos nas leituras complementares. Eu, por exemplo, não tenho a menor idéia do que estarei lendo daqui a dois meses, quando terminar os livros que leio no momento. E conheço gente que tem os próximos 10 meses de leitura já escalonados: tantas semanas para o livro A, tantos dias para o livro B...

Em geral eu estou lendo um livro policial e vejo uma menção a um livro de história da II Guerra; encontro no sebo e leio no mês seguinte. Nele alguém fala da importância de um filme da época, e lá vou eu ler a biografia do obscuro diretor. O diretor discute uns assuntos interessantes que me levam a um livro de filosofia, e este a uma antologia de poetas gregos. Lendo os poetas gregos me lembro de um poeta uruguaio. E por aí vai.

Muita gente lê assim: lê por associação de idéias, às vezes por um tema, às vezes porque tem curiosidade por um país ou uma época e quer ler algo que tenha a ver com aquilo. Outras vezes lê por uma recomendação, ou por ser amigo do autor. Todo livro fervilha de razões para ser lido.

Essas pessoas leem com uma curiosidade inesgotável pelo mundo, sem plano de estudo, sem outra utilidade a não ser a de ficar sabendo, entendendo melhor certas coisas, vendo o muito com mais nitidez, ou com mais colorido, ou com mais nuances.

Leem como se fossem Correspondentes Estrangeiros vindos de outro planeta, e soubessem que a hora da volta se aproxima; e que nada poderão levar consigo a não ser o que está de fato consigo, o que se imprimiu na memória do seu corpo.








segunda-feira, 9 de outubro de 2017

4276) As metáforas agrícolas (9.10.2017)




Em todo tipo de linguagem e comunicação, as formas tendem a degenerar com o tempo. É o efeito da entropia.

As metáforas, por exemplo, degeneram em clichê. Todo clichê da linguagem (literária, jornalística, cotidiana, etc.) já foi uma imagem original e surpreendente. O sucesso a viralizou; o excesso a diluiu.

Imaginem quando alguém disse pela primeira vez: “O incêndio foi grande, mas os bravos soldados do fogo conseguiram apagá-lo!”  Ninguém (suponho) tinha usado isso antes. O editor, impressionado, bateu com o lápis na folha datilografada e disse ao jornalista: “Ih, rapaz, que imagem bonita essa aqui!”  Pronto.

Poucos anos depois o mesmo editor estava amassando uma lauda, jogando na cesta, e dizendo a algum novato perplexo: “Se disser isso de novo eu lhe boto na rua, ora que saco. Se é pra dizer um clichê desses, diga bombeiros e acabou-se.”

O tempo todo utilizamos uma imagem concreta para descrever algum processo ou situação abstrata.  Dizemos, por exemplo: “A história de Os Detetives Selvagens, de Roberto Bolaño, gira em torno de um grupo de poetas mexicanos de vanguarda”. 

A história, na verdade, não gira em torno de nada. Se é para vê-la em termos de um movimento físico, o mais que podemos dizer é que ela avança. Mas à medida que avança ela volta a mostrar, repetidamente, personagens e episódios já aparecidos antes. E assim existe uma semelhança com um movimento circular, ou em espiral ascendente (movimento helicoidal), algo que avança e retorna ao mesmo tempo.

Quando um historiador do século 22 ler nossas resenhas literárias ficará embasbacado diante do modo como as histórias, em nosso tempo, sempre “giravam em torno” de algo.

No momento em que uma expressão é usada pela primeira vez, pode produzir um pequeno choque de estranheza, que se reequilibra no momento em que o leitor reconheceu a validade da comparação. 

É o caso de expressões tipo “o Ibope está tomando o pulso da opinião pública”.  O leitor, um segundo depois, reconhece que “tomar o pulso” admite o significado extensivo de “verificar as reações, acompanhar o comportamento”. 

O uso da expressão se propaga e ela rapidamente se converte em lugar comum.  Daí em diante a usamos sem enxergar ao pé da letra a imagem que está sendo usada.

O Governo precisa arregaçar as mangas e resolver o problema do ensino básico?  Todos entendem o que estamos dizendo, mesmo que o Governo, como entidade abstrata e coletiva, não tenha mangas para arregaçar.  Arregaçar as mangas significa preparar-se para executar uma tarefa difícil, que demanda esforço. 

Do mesmo modo, se o interlocutor responde que já está na hora, porque há muito tempo as autoridades vêm botando panos quentes nesse problema, a analogia se processa automaticamente.  O que talvez não tenha acontecido quando ouvimos esta expressão pela primeira vez.  Talvez nos tenha custado um segundo de surpresa, e depois o entendimento, um “aaah...” dando sinal de que a comparação é válida.

Um dos usos mais arraigados na nossa fala cotidiana é o das metáforas agrícolas, que são nossa herança de um modo de vida com o qual temos familiaridade há milênios, mesmo que uma familiaridade indireta. 

Está na hora de colher os frutos desse investimento...

Estou em busca das minhas raízes culturais...

Este é um gênero literário cuja seiva já se esgotou há muito tempo...

Não quero entrar na seara alheia e discutir o que não entendo... 

Esse pessoal está semeando a discórdia para colher Poder...

O Parnasianismo foi quando o soneto floresceu mais intensamente em nossa poesia...

Usamos este tipo de linguagem no jornalismo, na política, na conversa informal.  Todos entendem o que estamos querendo dizer; ninguém imagina que estamos tratando de agricultura. 

A figura de linguagem deixou de ser figura em si, tornou-se invisível de encontro à paisagem abstrata do discurso.  É apenas o sentido abstrato que captamos.

Outra categoria rica de clichês é a da linguagem têxtil, pela semelhança (inclusive etimológica) com as características de um texto escrito.

A certa altura do romance, o autor corta o fio da narrativa para fazer uma longa digressão.

A história se desenrola no começo do século 19.

O livro de Fulano de Tal tem um estilo pouco brilhante, mas sua trama é uma das mais bem urdidas que vimos nos últimos tempos.

A telenovela deixou a desejar, porque a narrativa ficou com muitas pontas soltas.

A analogia do texto com fios (fios têxteis, claro) está por toda parte; e denuncia o fato de que texto, têxtil, tecido, todos estes termos têm uma origem comum e sugerem atividades parecidas.    

Comparar sangue e dinheiro é outra tendência tão frequente em nosso discurso que a decodificação é imediata.  Ambos são essenciais à vida, ambos precisam circular...  Dizemos que a economia de tal ou tal país está anêmica, ou que os países do Terceiro Mundo vêm sofrendo há séculos uma hemorragia financeira, ou então que bancos ameaçados de quebra precisam de uma transfusão de dinheiro público.  Diferentes comparações vão se superpondo, e isso nos deixa ainda mais predispostos a aceitar futuras variantes. 

Autores desajeitados ou desatentos costumam usar frases com figuras incompatíveis entre si.  “Precisamos apertar o cinto, porque estamos nadando contra a maré”.

Isto acontece muitas vezes quando o autor, levado pelo entusiasmo, utiliza dois clichês mais ou menos habituais, sem perceber que o segundo vem de uma origem diferente.

O crítico Fulano de Tal aborda o livro com destemor e o disseca sem dó nem piedade.

Existe aí algo que não combina, porque algo que pode ser abordado (um navio, por exemplo) não pode ser dissecado.

O Governo botou seu melhor time em campo disposto a ganhar a votação por nocaute

O exemplo clássico de metáfora confusa ou incompetente, incorporando três elementos que não se encaixam, é a frase atribuída a Henri Monnier (1799-1877):

“O carro do Estado navega sobre um vulcão”.