quarta-feira, 13 de setembro de 2017

4268) As aventuras de João Furiba (13.9.2017)





Eu estava no meio de uma viagem com um grupo de cantadores, e tivemos que pernoitar no Recife para prosseguir no dia seguinte. Estava todo mundo exausto depois de horas de ônibus na estrada. Eles estavam fazendo cantorias e eu acompanhando, assessorando, peruando, compartilhando a embriaguez do verso.

Fomos pernoitar em Olinda, nos alojamentos da Casa das Crianças, a fundação de Giuseppe Baccaro, que fornecia quartos gratuitos para violeiros de passagem.

Chegamos lá por volta das onze da noite. Não era tão cedo que permitisse descansar um pouco e depois ir pra farra, nem era tão tarde que a farra ficasse inviável. Decidimos deixar ali as malas e as violas, e sair para beber.

Não lembro exatamente quem eram os outros do grupo; talvez Oliveira de Panelas, Sebastião Dias, Bandeira Sobrinho... E o protagonista da história, João Furiba, um dos cantadores mais queridos e mais engraçados de sua geração. Está hoje com 90-e-bote-força.

Baixinho, magrinho, meio feioso, cheio de dentes de ouro, Furiba tinha a fama de conquistador inveterado por onde passava. Nas cantorias apregoava riquezas babilônicas:

Sofri um pequeno atraso
porque tive de emprestar
para o presidente Reagan
minha Ferrari sem par,
só fiquei com o Rolls Royce
que anda mais devagar.

Nessa noite, Furiba estava mais cansado do que os outros e resolveu não sair.

– Não, Deus me livre. Estou morto. Vão vocês se divertir, eu vou é dormir um sono.

Como estávamos chegando ali meio de supetão, foi preciso combinar com o poeta Palito, que era meio administrador das coisas, o local de dormida para todo mundo. Ele indicou nossos quartos, e foi mostrar o de Furiba.

– Furiba, quem estava nesse quarto era Zé Gaspar, mas ele foi pra uma cantoria e só deve voltar amanhã. Afaste as coisas dele, e durma.

Os quartos da Casa das Crianças eram pequenos, simples. Furiba levou para lá sua maleta, a viola e uma melancia que tinha comprado para levar pra casa. Despediu-se de nós e foi dormir. Deixamos nossas bagagens nos outros quartos e fomos em busca de algum lugar com comida quente e cerveja gelada.

Fomos parar num daqueles botequins de calçada, de frente pro mar. Bebemos um monte de cervejas e comemos uma carne de sol que pra cortar foi preciso pedir uma serra de pão. Lá pelas duas da manhã voltamos para a Casa das Crianças.

Assim que passamos do portão vimos no escuro uns vultos que tinham chegado pouco antes de nós. Iam mais à frente nas alamedas, rodeando os gramados e subindo a encosta rumo aos quartos. Pelas vozes, e pelos vultos, quando chegamos mais perto, reconheci alguns deles.

No meio vinha Zé Gaspar. Que àquela altura já estava batendo com força na porta do quarto.

– Ei, caba safado, esse quarto é meu! Sai daí, misera!

Fomos chegando e tentando explicar que quem estava ali era Furiba. Foi pior.

– Esse mentiroso safado? Ele tá pensando o que? – Zé Gaspar, visivelmente, tinha tomado umas-e-outras e devia estar ansioso para desabar no colchão. – Bora, nojento! – E tome murro na porta – Abre essa porra aí, seu corno, esse quarto é meu!

Com a minha vocação para Itamaraty-de-cantador, eu me interpus:

– Calma, Zé, vamos chamar ele e a gente resolve isso sem problema.

Zé Gaspar é um caboclo entroncado, musculoso, daquele tipo que desatola sozinho um carro de boi. Ele me encarou furioso:

– Isso é BT? O que diabo você tá fazendo em Olinda?

– O mesmo que você. – Bati na porta. – Furiba véio, abra aí pra gente conversar.

– Eu não dialogo com trogloditas – veio a voz lá de dentro, magrinha de medo.

– Furiba, o quarto é dele, ele quer as coisas dele. Qualquer coisa você passa pro meu, e eu vou embora. Eu tenho amigos que moram aqui perto.

– Sai logo, seu corno! – bradou Zé Gaspar em nova investida, me arremessando de encontro à porta. Bandeira Sobrinho e Oliveira tiveram dificuldade para contê-lo. – Eu tenho dinheiro guardado aí! Se tiver faltando um cruzeiro, o diabo vai se soltar.

A essa altura nem sei se era cruzeiro naquele tempo, mas tanto faz. Furiba retrucou, na segurança da porta fechada:

– Já me chamou de corno e de ladrão. Desse jeito eu vou acabar me aborrecendo.

Zé Gaspar tinha se soltado dos outros e bufava, olhando para os lados, como quem está reunindo forças para invadir Tróia. Bandeira Sobrinho tirou os óculos, soprou neles, botou de novo, alisou o bigode e disse:

– Eu sabia que isso não ia dar certo.

Nesse momento a luz do quarto se acendeu, a porta se abriu, e no umbral apareceu João Furiba, no pleno vigor do seu metro-e-sessenta e de seus 50 quilos, nu com exceção de uma Zorba verde-limão e meio frouxa, empunhando um canivete em riste e proclamando:

– A honra se lava com sangue.

Zé Gaspar partiu pra cima dele como um miúra, e nós todos nos engalfinhamos, rodamos levantando poeira e de repente alguém deu uma rasteira em alguém e o bolo de gente rolou pelo chão por entre sopapos e impropérios. Eu senti uma dor no cotovelo, me despreguei da confusão e fiquei de pé.

Eles foram se soltando e se levantando. Ergui a mão: era sangue. A queda tinha arrancado um samboque do meu cotovelo. Bandeira me estendeu um lenço:

– Tome, poeta, pra estancar.

– Vou estragar teu lenço – disse eu.

– Deixa pra lá. Já tá cheio de catarro mesmo...

Apliquei o lenço no ferimento, mas a essa altura Palito já havia chegado providencialmente com uma solução, e até Zé Gaspar estava rindo, enquanto Furiba permanecia na porta em plena Zorba e de canivete em punho, e dizendo:

– Não mexa comigo não, que eu sou perigoso.

A noite acabou nos levando de volta aos bares, para baixar a adrenalina da briga.  Paramos nos Quatro Cantos, onde tinha numa calçada uma turma conhecida tocando violão, era Don Tronxo, Romero Mamata, aquele pessoal que vivia por ali. Emendamos as mesas e mais tarde eu já estava bebo, com o lenço amarrado no cotovelo, fazendo sextilhas com Zé Gaspar, e desta noite me sobrou essa pérola:

Tem certos dias na vida
que nada-nada dá certo
a cisterna do desastre
ficou de registro aberto
quando alguém me dá bom dia
eu digo: saia de perto.













sábado, 9 de setembro de 2017

4267) A arte de comprimir a narração (9.9.2017)




O filme Acossado (A bout de souffle) de Jean-Luc Godard (1959), fez algumas pequenas revoluções na linguagem do cinema. Godard, nesse filme, mostrou Jean-Paul Belmondo num quarto de hotel, conversando ao telefone, e cortou em seguida para o mesmo Belmondo caminhando pelas ruas de Paris. 

No cinema dos anos 1950 era de praxe mostrar os estágios intermediários. Para mostrar que ele saiu para a rua, por exemplo, seria preciso mostrar Belmondo falando ao telefone, depois vestindo o paletó, depois trancando a porta, descendo as escadas, chegando à rua.  É sem dúvida uma maneira mais fluida de mostrar as ações, com transições mais suaves, quase imperceptíveis. 

Era assim que se narrava, mas Godard, como qualquer artista que começa a criar um estilo próprio, estava buscando uma maneira diferente de dizer. 

Comprimir a narrativa (no cinema, na literatura, no teatro, nos quadrinhos) envolve uma avaliação da parte do narrador. Que nível de familiaridade tem o público com esse modo de narrar?  Está cansado de uma narrativa “mastigada” demais?  Receberia com prazer o desafio de uma narração mais rápida?  Seria capaz de preencher por conta própria as lacunas, compreendendo sem muito esforço o que foi deixado de fora? 

Hoje em dia, a narrativa se acelerou tanto que praticamente se pode cortar de qualquer coisa para qualquer coisa. O público, principalmente o público jovem, faz essas conexões sem muito esforço.

A compressão serve às vezes apenas para simplificar e enxugar a narrativa, mas pode também provocar um efeito estético, aumentando a imprevisibilidade (a “dificuldade”) do texto para intensificar seu significado.  Veja-se o famoso parágrafo inicial do conto “A Loteria em Babilônia” de Jorge Luís Borges:

Como todos os homens em Babilônia, fui procônsul; como todos, escravo; também conheci a onipotência, o opróbrio, os cárceres.  Olhem: à minha mão direita falta-lhe o indicador.  Olhem: por este rasgão da capa vê-se em meu estômago uma tatuagem vermelha: é o segundo símbolo, Beth.  Esta letra, nas noites de lua cheia, confere-me poder sobre os homens cuja marca é Ghimel, mas me sujeita aos de Aleph, que nas noites sem lua devem obediência aos de Ghimel.  No crepúsculo do amanhecer, num sótão, jugulei ante uma pedra negra touros sagrados.  Durante um ano da lua, fui declarado invisível: gritava e não me respondiam, roubava o pão e não me decapitavam.  Conheci o que ignoram os gregos: a incerteza.  Numa câmara de bronze, diante do lenço silencioso do estrangulador, a esperança me foi fiel; no rio dos deleites, o pânico.  Heráclides Pôntico refere com admiração que Pitágoras lembrava-se de ter sido Pirro e antes Euforbo e antes ainda algum outro mortal; para recordar vicissitudes análogas não preciso recorrer à morte, nem mesmo à impostura.

Quem lê o conto pela primeira vez, pode achar esta abertura desnorteante. Lido o conto e relida esta abertura, ela fica clara.  A Babilônia de Borges é um país regido por uma misteriosa Companhia, a qual promove uma loteria cujos prêmios são interferências na vida dos cidadãos.  Em vez de meros prêmios em dinheiro, sorteiam-se destinos: o indivíduo premiado é obrigado a praticar ações absurdas ou inexplicáveis, cometer crimes, tomar parte em alguma complexa encenação coletiva. 

Relido, o primeiro parágrafo mostra a estonteante variedade de situações que um único homem pode experimentar em sua vida, por obra e graça dos sorteios da Loteria. 

Uma prosa assim, comprimida ao máximo, tende em alguns casos a se aproximar da poesia, porque se transforma numa justaposição de elementos díspares, deixando que as conexões entre eles sejam preenchidas pelo próprio leitor. 

A compressão narrativa produz um grande um efeito quando força o leitor a seguir o ritmo imposto pelo autor, seja retardando, seja acelerando esse ritmo. 

É famoso o interlúdio criado por Flaubert no meio do romance Educação Sentimental.  Ele faz o protagonista Frédéric Moreau testemunhar um episódio sangrento durante um golpe de Estado, encerra o capítulo, e diz, abrindo o capítulo seguinte:

Ele viajou. 
Conheceu a melancolia dos barcos a vapor, o frio despertar na barraca, o tédio das paisagens e das ruínas, o amargor das amizades interrompidas. 
Ele voltou. 
Frequentou a sociedade e teve outras amantes.  Todavia a lembrança sempre presente da primeira as tornava insípidas; e ademais a violência do desejo, a própria flor do sentimento, se perdera.

Anos da vida do personagem são resumidos em poucas linhas, como se o autor dissesse que a única coisa importante que lhe sucedeu naquela época é o que vem nas linhas seguintes: o reencontro de Frédéric com a mulher que amara no passado.

O conto “Sequência” de Guimarães Rosa (em Primeiras estórias) conta a fuga de uma vaca tresmalhada que tenta voltar para sua fazenda de origem.  Um rapaz monta a cavalo e vai à sua procura.  Durante todo o restante do conto, ele a persegue, entretido com aquela “involuntária aventura”.  Fuga e perseguição são narradas com minúcias e detalhes pitorescos, como sempre ocorre nos contos de Rosa.

No final, ao anoitecer, a vaca chega à fazenda, com o rapaz atrás dela. Ele avista as luzes acesas da casa grande, onde mora um tal Major Quitério.  Apeia-se.  Sobe a escada, e ali é recebido, “bem-chegado”.

A uma roda de pessoas.  Às quatro moças da casa.  A uma delas, a segunda.  Era alta, alva, amável.  Ela se desescondia dele.  Inesperavam-se?  Da vaca, ele a ela diria: “É sua.”  Suas duas almas se transformavam?  E tudo à razão do ser.  No mundo nem há parvoíces: o mel do maravilhoso, vindo a tais horas de estórias, o anel dos maravilhados. Amavam-se. E a vaca-vitória, em seus ondes, por seus passos. 

O conto se encerra assim: comprimindo neste parágrafo o encontro, a paixão à primeira vista, o casamento entre os jovens, conduzidos um ao outro por uma vaca erradia.  Rosa dilata o tempo da perseguição, aumentando o suspense por algo que não temos idéia do que será.  E contrai todo o tempo futuro do casal em poucas linhas, aumentando a surpresa e o impacto do desfecho.

Dashiell Hammett, em Seara Vermelha (“Red Harvest”) cria um curioso efeito de metalinguagem quando o narrador da história, o detetive conhecido como Continental Op, dialoga com outro agente que ele diz ser um cara de poucas palavras. Eles estão investigando juntos alguns dos chefões da bandidagem de uma cidade do interior. Diz ele:

            Um quarteirão mais adiante encontrei Dick Foley, ao volante de um Buick alugado. Entrei no carro e perguntei:
            – O que há?
            – Peguei às duas. Saiu três e meia. Escritório de Willsson. Mickey. Cinco, casa. Movimento grande. Finquei pé. Saí três, e sete. Nada ainda.
            Isto era para me informar que ele tinha começado a vigiar Lew Yard às duas da tarde anterior; que o seguira até o escritório de Willsson às três e meia; onde Mickey estava seguindo Pete; depois seguiu Yard quando este saiu às cinco, voltando para casa; viu muita gente entrando e saindo da casa, mas não seguiu ninguém; vigiou a casa até as três da madrugada, e depois de dormir voltou às sete; e que desde então nada mais acontecera.

A compressão do texto funciona na medida em que o leitor é capaz de preencher por conta própria as lacunas de informação.


(Uma versão diferente deste artigo foi publicada na revista Língua Portuguesa, da Editora Segmento (São Paulo), em outubro de 2009.)










segunda-feira, 4 de setembro de 2017

4266) O Caminhante-na-Terra (4.9.2017)



A literatura (e seus desdobramentos, entre eles o cinema, os quadrinhos, a filosofia) funciona à base de repetições e variantes, trazendo sempre uma mistura do que é conhecido e nos proporciona segurança, e do que é desconhecido e nos desperta a curiosidade.

É assim com certos personagens ou tipos recorrentes que fazem parte da nossa memória cultural, porque para onde a gente se vire dá de cara com uma variante deles.

Eu estava relendo um dos livros problemáticos de Philip K. Dick, A Maze of Death (1970). Digo problemáticos porque tem uma história fascinante, mas talvez seja um dos livros escritos mais descuidadamente pelo nosso grande Maluco Beleza californiano.

Em todo caso, essa aventura dark e sinistra (que já foi chamada pela crítica de “O Caso dos Dez Negrinhos no espaço interplanetário”) é uma das tentativas mais interessantes de Dick em produzir uma religião artificial.

Tanto quanto o “mercerismo” de Do Androids Dream of Electric Sheep (1968), os pesadelos fundamentalistas em Eye in the Sky (1957) e todas as fantasias cósmico-teológicas da fase final de sua vida, começando com The Divine Invasion e Valis (ambos de 1981).



Em A Maze of Death, um grupo de colonistas terrestres num planeta remoto professa uma religião própria baseada num livro sagrado chamado “The Book of Specktowsky”, relativo ao filósofo que a concebeu.

O humor californiano de PKD sempre dilui qualquer pomposidade possível em seus conceitos, de modo que esse equivalente da Bíblia ou do Corão intitula-se na verdade Como Eu Me Ergui Dentre Os Mortos Em Minhas Horas Vagas e Você Também Pode, um saboroso tempero de ironia para um livro que traz a Verdade Suprema.



A religião pregada por Specktowsky tem, é claro, pontos em comum com o cristianismo, e postula a existência de quatro manifestações da Divindade: o Mentufaturador, o Intercessor, o Caminhante na Terra e o Destruidor das Formas. No momento, é o terceiro deles que me interessa.

O Caminhante na Terra (“the Walker-on-Earth”) é uma entidade que se materializa e vem em socorro dos humanos em momentos de necessidade. Por exemplo, no capítulo 2 ele surge como “um homem, ou pelo menos algo como um homem. Um vulto vestindo um robe solto, com cabelos longos caindo sobre seus ombros escuros e maciços.” Aborda um personagem prestes a partir num voo interplanetário e lhe diz que não pegue aquela nave, que está com defeito, pegue outra.

O Caminhante vai embora do mesmo jeito que aparece. Comparado à mitologia cristã ele se assemelha mais a um anjo do que a um dos membros da Santíssima Trindade. Os anjos nos guardam, nos aconselham, nos dão avisos, evitam que façamos bobagem e assim por diante.

No entanto, o modo elusivo e arredio como ele se comporta lembra outro tipo de caminhante: o Judeu Errante, que escarneceu de Cristo e foi condenado a caminhar sem paz pelo mundo afora, até o dia do Juízo Final.



Caminhar pelo mundo significa entrar em contato com Deus-e-o-Mundo. O Judeu Errante não é um eremita escondido no fundo de uma loca. Ele caminha, ele se mistura, mas sem nunca ter um contato real com quem quer que seja.

Como disse Castro Alves:

Viu povos de mil climas, viu mil raças,
e não pôde, entre tantas populaças,
beijar uma só mão...
(“Ahasverus e o Gênio”, 1868)

O Caminhante-na-Terra de PKD parece ter um pouco disso. Ajuda a todo mundo, mas não pode se aproximar de ninguém. Meia hora, uma hora de conversa, e ele desaparece para sempre.

As sincronicidades da Literatura Comparada me levaram a no mesmo dia enfiar no draive um DVD de um filme que eu não via há décadas, Queimada (“Burn!”, 1969). É um filme bastante glauberrochiano de Gillo Pontecorvo, descrevendo de forma até didática certos mecanismos do colonialismo no século 19, especificamente o modo como a Inglaterra financia secretamente a independência de um pequeno país negro do Caribe, apenas para tirá-lo de baixo da asa de Portugal e trazê-lo para a sua.



Quem se encarrega disso é Marlon Brando, com uma improvável peruca loura mas um à-vontade notável no papel desse agente provocador que manipula ditadores, revolucionários e capitalistas na mesma medida em que os serve. Ele é um aventureiro, um indivíduo de têmpera superior mas de personalidade instável; eu o compararia a Richard Francis Burton e a T. E. Lawrence, o da Arábia.



Acontece que no filme o personagem de Brando se chama “Walker”. Dizem que é em homenagem a um personagem real, William Walker, que andou aprontando naquela época pela Nicarágua.

Não havia como não ver no Walker de Brando uma espécie de Judeu Errante, destinado a caminhar de país em país a soldo de Sua Majestade Britânica, erguendo e derrubando líderes populares, interferindo, seduzindo, doutrinando, armando, financiando, e depois sumindo de vez para ir fazer o mesmo em outro grotão perdido do Terceiro Mundo.

Como outro Walker: aquele encarnado pelo Fantasma, de Lee Falk, um dos ídolos meio esquecidos da minha infância. The Phantom vive também no meio de pigmeus africanos, como um colonialista qualquer, trazendo-lhes os benefícios da inserção no Mercado.

Ele veste uma dessas roupas colantes e coloridas de super-herói dos quadrinhos, mas quando visita a civilização o faz de chapéu, óculos e sobretudo – e se faz chamar de “Mr. Walker”. Porque ele é no fundo o Fantasma-Que-Anda, “the Ghost-Who-Walks”.  Imortal, como o Judeu Errante.



Outro herói (este conheço pouco) que se aproxima dessa equação “judeu errante / herói mascarado” é o Phantom Stranger (DC/Vertigo).


É interessante o paralelismo desse arquétipo. Ele é uma divindade que desce até os mortais para interferir na sua vida, e é um europeu que desce até o Terceiro Mundo para fazer o mesmo (sempre de forma ambígua). E é sempre alguém de fora, um outsider, que não pertence àquele lugar. (O Fantasma de Lee Falk tem domicílio fixo numa selva, como Tarzan; não vive errando de mundo afora; mas continua a ser, sempre, um “despaisado” alguém sem pátria, alguém de fora.)

Lévi Strauss dizia (com outras palavras) que um mito não corresponde a nenhuma de suas versões, mas aos traços que se reforçam quando todas as versões são superpostas. Os arquétipos literários têm essa mesma característica.

Quem é o Caminhante-na-Terra? Não sabemos (o autor não o revela), mas ele nos parece familiar porque tem traços do Fantasma de Lee Falk e de Lawrence da Arábia; de um anjo desterrado e de um agente-provocador branco em continente negro; de alguém que não morre mas que nunca viveu; de Richard Francis Burton e do judeu errante de Castro Alves, “invejado, a invejar os invejosos”.








quinta-feira, 31 de agosto de 2017

4265) O roteiro e a história (31.8.2017)




("A lista de Schindler")


Um artigo que recente de Tim Long discute uma das normas de roteiro que eu vejo apregoadas com mais frequência. E apregoada com razão, digo logo antes de combatê-la.

É aquela norma que diz mais ou menos: “Só escreva no roteiro o que pode aparecer na tela.”  Só escreva o que pode ser captado por uma câmera e um microfone, ou seja, o que pode depois ser visto e ouvido pelo espectador.

Uma defesa bem humorada e bem fundamentada desse princípio é feita por Hugo Moss no seu esguio e indispensável Como formatar o seu roteiro (Rio: Aeroplano, 2002, 32 págs.). Diz ele:

Outro erro comum, além de (d)escrever demais, é incluir fatos que dificilmente são possíveis de capturar com a informação disponível na tela. Ex.:

EXT. ESTRADA – DIA
Um carro desce uma estrada em direção ao Rio de Janeiro. Dentro, um grupo de músicos, cujo cantor é um homem escuro com cabelos curtos, como um punk do Terceiro Mundo. É Jorge Salgado, que está chegando ao Rio para fazer dois shows gratuitos na praia da Ipanema.

Evidentemente, vendo só um carro descendo uma estrada, é difícil imaginar como a audiência poderá saber detalhes sobre os ocupantes, muito menos adivinhar o motivo específico da viagem. Essas informações teriam que ser inseridas na história de uma outra forma (visual), se é que são fundamentais, e se não, serem descartadas.

Em momentos assim, nós, roteiristas, nos deixamos arrebatar pela embriaguez narrativa e começamos a contar a história com palavras, como se fosse um romance, ao invés de simplesmente descrever uma sucessão de imagens e ações visuais.

Esses aspectos subjetivos contaminam incontáveis roteiros, uns mais, outros menos, mas sempre deixando que o modo literário de narrar vaze para dentro do roteiro, que não admite muitos dos seus recursos.

O próprio Hugo Moss se oferece logo adiante para pagar um almoço para quem reconhecer o filme em cujo roteiro lê-se esta indicação:

Geraldo bota o chapéu, faz um movimento imperceptível com a cabeça e sai.

Filmar um movimento imperceptível é um dilema para um diretor (pra nem falar no pobre do ator que precisa executar esse paradoxo quântico).

São literatices, e nenhum de nós está a salvo delas. E não pertencem apenas ao cinema; infiltram-se em outras formas de escrita, inclusive no teatro. Wilson Martins, criticando o teatro brasileiro oitocentista, registra o heroísmo requerido ao ator que numa peça qualquer vê-se solicitado a obedecer a esta rubrica: “Fulano (empalidecendo) - ...

É o cacoete do romance, de um outro tipo de narração infiltrando-se onde não é chamado.

Mas... nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Tendo dado razão a Hugo Moss, num extremo, preciso dá-la igualmente, no extremo oposto, a Tim Loing, neste texto no saite No Film School:


Long começa logo dizendo que “não existe uma única maneira correta de produzir um roteiro”, e que tudo que funciona pode ser utilizado, e que muitos roteiristas deixam-se dominar a tal ponto pelo conceito de “regras” que não conseguem pensar fora delas.

A maioria das regras da narrativa cinematográfica surgiu num certo momento através de artistas que estavam tentando se livrar das regras anteriores.

Long questiona a máxima de que “só podemos escrever o que pode ser visto ou filmado”, e cita o recho de roteiro abaixo, de Steven Zaillian para A Lista de Schindler:

EXT. – BALCÃO DE GOETH – MOMENTOS DEPOIS – MANHÃ
Goeth sai ao balcão vestindo apenas camiseta e calção, e dali fica contemplando o campo de trabalhos forçados, seu campo de trabalhos forçados, seu reino. Satisfeito com essa visão, até um pouco espantado, ele faz lembrar Schindler olhando para seu próprio reino, sua fábrica, tal como ele gosta de fazer através de sua parede de vidro.

A vida é maravilhosa. Goeth empunha um rifle.

De minha parte, acho necessário que o autor do roteiro informe, ao diretor, elenco e equipe, os sentimentos que devem existir por trás de cada cena. Não creio que isso seja a cobrança de uma nuance impossível de filmar; nem que seja uma exigência abstrata que o ator não tem como cumprir. Existe um pensamento, um clima, uma emoção subjacente à cena. Cabe aos membros da equipe que leem o roteiro encontrar um modo de passar isto para o espectador, cada qual com seus recursos.

Outro exemplo dele, desta vez de Barry Jenkins, no premiado Moonlight:

KEVIN
Onde você vai dormir esta noite?

Nenhuma resposta de Black. Nada, nem palavras, nem gestos, nada brota dele nesse momento.

Black devia estar dirigindo, devia estar com os olhos na estrada, prestando atenção nos outros carros, nas coisas que passam. Em vez disso, seus olhos estão em Kevin, encarando de volta o homem que está perdido nessa pergunta, e o espaço entre a pergunta e esse instante é a resposta mais clara.

Kevin afasta o olhar, volta a olhar pela janela. A terra acabou de se mexer. Os dois homens sentiram.

Eu imagino que dois bons atores, lendo isto, sejam capazes de absorver a tensão e as hesitações psicológicas de uma curta cena como esta – e transpor para a tela alguma coisa do que está aí. Metáforas como “a terra se mexeu” provavelmente não virão a ser percebidas jamais pelo público, mas os atores podem com sua atitude, suas expressões, transmitir para o espectador algo igualmente ominoso, igualmente crucial.

Long nos lembra que os primeiros leitores de um roteiro não são os atores que vão interpretá-lo, e sim pessoas para quem é preciso dar uma idéia do tipo de filme que está sendo proposto. São agentes, empresários, executivos de desenvolvimento de projetos, pessoas por cujas mãos passam as primeiras propostas de um roteiro.

Long se refere em seu artigo a “spec writers, spec scripts”: roteiro especulativos, digamos, aqueles que são oferecidos a um estúdio, em vez de serem encomendados por este. Um roteiro não encomendado, oferecido por um profissional de fora, está provavelmente contando uma história que os destinatários desconhecem. É preciso deixar claro que história é essa.

Tim Long remete o leitor a outro artigo:


Ali, ele diz:

Para que seu roteiro se transforme num filme, as pessoas têm que primeiro gostar dele como uma história.

Esta primeira versão, que irá circular por muitas salas e muitas escrivaninhas e muitos monitores de gente desconhecida (sem o autor do lado para tirar dúvidas) precisa dizer com clareza suficiente tudo a que se propõe. Claro que a estrutura narrativa tem que ser de filme, a visualização tem que ser de filme. Mas motivações, intenções, nuances, reações emocionais, têm que vir bem explicadas. O bom roteiro indica o efeito a ser obtido, e o modo de obtê-lo.

E se um ator ou atriz geralmente não gosta de receber instruções do roteirista sobre como reagir em tal ou tal momento, ele ou ela gosta de saber o que se pede de seu personagem, que motivação íntima, que subtexto, que amálgama de influências e pressões, para que possam criar a cena do personagem, com seus próprios recursos.











segunda-feira, 28 de agosto de 2017

4264) Coincidências de leitura (28.8.2017)




(ilustração: Ben Shahn)

De vez em quando comento aqui algumas coincidências que testemunho, ou que acontecem diretamente comigo.

Ao viajar para São Paulo, dias atrás, peguei dois livros, pequenos e leves pra não pesar na mochila. Um era o Portrait of the Artist as a Young Man de James Joyce, que comecei a ler tempos atrás, estava gostando, mas tive que largar por alguma razão. O outro foi A Hipótese Humana, romance policial de Alberto Mussa, lançado recentemente, presente do meu parceiro musical Alfredo Del-Penho, da “Barca dos Corações Partidos”.

O livro de Joyce descreve em seus primeiros capítulos a vida escolar do garoto Stephen Dedalus num colégio de jesuítas irlandeses: os estudos, os castigos, as peraltices. A certa altura, Stephen está comentando os rabiscos feitos pelos estudantes nas portas e nas paredes do banheiro do colégio, e diz:

And on the wall of another closet there was written in backhand in beautiful writing:
Julius Caesar wrote The Calico Belly.

Joyce tem um cacoete pelo trocadilho que chega a ser auto-punitivo, de modo que cada alusão desse tipo faz a gente parar para saber qual é o jogo de palavras que ele está fazendo.

“Calico” é um tecido barato como chita ou morim.  Uma coisa bem paraibana, aliás. É muito frequente a gente ler num livro a expressão “calico dress”, “vestido de chita”. Bob Dylan (“Sarah”, no álbum Desire) descreve sua musa como “esfinge escorpiana em vestido de chita”.

“Belly” é barriga. Barriga de chita? Talvez não, porque o dicionário me dá “calico” como sendo também algo “malhado, rajado, mosqueado”. Barriga rajada, listrada? Será alguma patifaria irlandesa?

Enfim – o que saltava aos olhos era que havia uma menção a Júlio César, e logo me lembrei que César era autor de um livro onde descrevia uma das suas guerras, e guerra em latim é naquela faixa de “bellus, belli, etc”.

Dito e feito: o livro de César é Commentarii de Bello Gallico, “Comentários sobre a Guerra na Gália”. E ao checar a tradução de Caetano W. Galindo para o livro de Joyce (valeu, Google Books), vi que ele recria assim o calembur joyciano:

E na parede do outro cubículo tinha uma coisa escrita com uma letra inclinada: Julio César escreveu Que Belo Fálico.

Muito bem. Na volta da viagem estou adentrando o romance de Alberto Mussa e chego à página 33. Seu detetive, Tito Gualberto, está em casa dando aulas quando recebe um recado urgente para ir à casa de alguém. O livro é narrado no presente do indicativo, e ele conta:

É quando a portuguesa grita, embaixo, dizendo estar na porta um moleque, mensageiro do coronel Francisco Eugênio.
Separa, então, um trecho do De bello gallico, para que o aluno traduza; e desce.

Sim, nosso detetive ganha vida (o ano é 1854) dando aulas particulares de latim, e o livro de Júlio César me cai ao colo pela segunda vez em dois dias, citado num romance irlandês de 1916 e num romance brasileiro de 2017.

Veja-se que em ambos os casos o livro é citado em contexto e não destoa. Na Wikipedia, aliás, sou informado de que a obra de César, pela limpidez e elegância do estilo, é um dos primeiros livros utilizados por quem começa a estudar latim.

Bem; isso é outra questão. O importante aqui é o que pensar diante de uma coincidência como essa. Tenho certeza de que não ouço falar nesse livro de Júlio César, pelo qual não tenho o menor interesse, há muitos anos, não é pouco não. E agora ele vem duas vezes num mesmo fim de semana.

Tenho amigos e amigas que me diriam: “O Destino está querendo lhe comunicar alguma coisa!”. (Ah, que saudade do Encontro da Nova Consciência.)

Pra mim, mais interessante do que pensar no Destino é pensar no modo como a memória humana funciona. Temos níveis de “salvamento” de informações, no sentido que usamos ao dizer que salvamos dados no computador. Salvar é impedir que uma informação se desvaneça. E um critério para isso parece ser a repetição. O que a gente ouve (ou lê) uma vez apenas, se dissipa dentro de algum tempo. Mas se nesse intervalo aparece uma segunda menção, a gente lembra que ouviu aquilo pouco tempo atrás. E se aparecer uma terceira, uma quarta, a lembrança vai se prolongando.

Minha memória, pelo menos, funciona assim. Sou o rei da gafe ao não reconhecer pessoas com quem conversei um dia inteiro poucos anos atrás. Por que as esqueci? Porque não vi nenhuma referência a elas nesse intervalo. A memória se dissipa. Se de vez em quando, contudo, a gente vir uma foto, ler o nome, ouvir uma referência, aquilo continua existindo, sendo lembrado. Brasa assoprada não volta a carvão.

Baseando-se nisso, a comunicação de massa requer o martelamento constante de uma certa informação “para que o público não esqueça”, mesmo quando aquilo não é notícia, quando não tem nenhum motivo claro para estar aparecendo no noticiário. (Pensem nos exemplos.)

Deve ser por isso que os atarefados divulgadores-de-artistas-pop dão o seu sangue para que pelo menos uma vez por semana surjam no “Portal KM De Vantagens” ou coisa parecida manchetes como “Fulana janta com fãs”, “Sicrano corta o cabelo” ou “Beltrano pensa em tirar férias”. Porque se um desses personagens ficar uma semana sem ser citado ali, todo mundo esquece dele, inclusive o divulgador.

Erasmo Carlos dizia: “falem bem ou mal, mas falem de mim”, com a intuição nativa de quem nasceu pro palco. Um artista pop é alguém que não pode passar um mês sem ser fotografado por um papparazzo, ou dar um autógrafo no shopping, ou ser citado numa coluna de gossips. Se isto acontecer, ele se dissipa no ar, como orvalho ao sol.








terça-feira, 22 de agosto de 2017

4263) Jorge Luis Borges, 118 anos (22.8.2017)




Um pequeno apanhado de frases de Jorge Luís Borges, que em 24 de agosto completaria 118 anos.


“Existe um conceito que é corruptor e desatinador de todos os outros. Não falo do Mal, cujo limitado império é o da ética: falo do Infinito.” (“Avatares de la Tortuga”, em Discusión)

“Sei de dois tipos de escritor: o homem cuja ansiedade central são os procedimentos verbais; o homem cuja ansiedade central são as paixões e os trabalhos do homem.” (“Absalom! Absalom! de William Faulkner”, Textos Cautivos, 1937)

“Todo homem culto é um teólogo, e para sê-lo não é indispensável a fé.” (“El enigma de Edward Fitzgerald”, Otras Inquisiciones)

“Em 1883, um terremoto que durou noventa segundos comoveu o sul da Itália. Nesse terremoto morreram seus pais e sua irmã, e ele mesmo ficou enterrado nos escombros. Duas ou três horas depois foi salvo. Para escapar ao desespero total, resolveu pensar no Universo; procedimento geral dos infelizes, e às vezes bálsamo.” (“Benedetto Croce”, Textos Cautivos, 1936)

“Os homens do futuro não se disfarçarão de postes de telégrafo nem perambularão de um lugar para outro embutidos em armaduras de celofane, em recipientes de cristal ou em caldeiras de alumínio.” (“Things to Come, de H. G. Wells”, Textos Cautivos, 1936)

“Os verbos conservar e criar, tão antagônicos aqui, no Paraíso são sinônimos.” (“Historia de la Eternidad”, em Historia de la Eternidad)

“Ser nazista (...) é, no final das contas, uma impossibilidade mental e moral. O nazismo padece de irrealidade, como os infernos de Erígena. É inabitável: os homens podem apenas morrer por ele, mentir por ele, matar e ensanguentar por ele. Ninguém, na solidão central do seu eu, pode desejar que triunfe.” (“Anotación a 23 de agosto de 1944”, Otras Inquisiciones).

“Hollywood acaba de enriquecer esse vão museu teratológico: por obra de um artefato maligno chamado dublagem, propõe monstros que combinam as ilustres feições de Greta Garbo com a voz de Aldonza Lorenzo.” (“Sobre el doblaje”, em Discusión)

“Europa é uma sinédoque de Paris. A Paris interessa menos a arte do que a política da arte: veja-se a tradição das ‘igrejinhas’ em sua literatura e sua pintura, sempre dirigidas por comitês e com seus dialetos políticos: um parlamentar, que fala em esquerdas e direitas, e outro militar, que fala em vanguardas e retaguardas.” (“El otro Whitman”, em Discusión).

“O budismo acredita que a ascese é conveniente só depois que se experimentou a vida. Ninguém deve começar pela negação. É preciso provar a vida até o fim. E desencantar-se com ela; mas só depois de conhecê-la.” (“O budismo”, em Sete Noites)

“Ignoro se a música sabe desesperar da música e se o mármore do mármore, mas a literatura é uma arte que sabe profetizar aquele tempo em que haverá emudecido, e encarniçar-se contra a própria virtude e enamorar-se da própria dissolução e cortejar seu fim.” (“La supersticiosa ética del lector”, em Discusión)

“Sereia: ‘suposto animal marinho’, é o que lemos em um dicionário brutal.” (“El arte narrativo y la magia”, em Discusión)

“O honorável Reginald Fortescue aparece como fiador da existência de um ‘espectro alarmante’. Eu não sei o que pensar; por enquanto, me nego a crer no alarmante Reginald Fortescue, se não aparecer algum espectro honorável para ser fiador de sua existência.” (“Lord Halifax’s Ghost Book”, Textos Cautivos, 1936)

“É comum, no Oriente, não se estudar historicamente nem a literatura nem a filosofia. (...)  Lá, estuda-se história da filosofia como se Aristóteles discutisse com Bergson, Platão com Hume – tudo simultaneamente.” (“La poesia”, em Sete Noites)

“A distinção radical entre a poesia e a prosa está na expectativa muito diversa de quem as lê: a primeira pressupõe uma intensidade que não se tolera na última.” (“Los traductores de Las 1001 Noches”, em Historia de la Eternidad)

“H. G. Wells, incrivelmente, não é nazista. Incrivelmente, porque todos os meus contemporânos o são, embora o neguem ou o ignorem. Desde 1925, não há publicista que não opine que o fato inevitável e trivial de haver nascido em um determinado país e de pertencer a tal raça (ou a tal boa mistura de raças) não seja um privilégio singular e um talismã suficiente.” (“Dos libros”, em Otras Inquisiciones)

“Clássico é aquele livro que uma nação ou um grupo de nações ou o longo tempo decidiram ler como se em suas páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos e capaz de interpretações sem fim.” (“Sobre los clásicos”, em Otras Inquisiciones)

“Para cada mente capaz de analisar com profundidade um efeito estético, há dez, ou há cem, que são capazes de produzi-lo.” (“How to write detective novels”, Textos Cautivos, 1937)

“Nossos contemporâneos são sempre muito parecidos com nós mesmos, e quem está em busca de novidade poderá achá-las mais facilmente entre os antigos.” (“Nathaniel Hawthorne”, em Otras Inquisiciones)


Fontes:

Discusión. Buenos Aires: Emecé, 1972,
Historia de la Eternidad. Buenos Aires: Emecé, 1973.
Otras inquisiciones. Buenos Aires: Emecé, 1985.
Sete noites. São Paulo: Max Limonad, 1983. (trad. João Silvério Trevisan)
Textos cautivos. Madrid: Alianza Editorial, 1998






sábado, 19 de agosto de 2017

4262) Antonio Cândido e a Literatura Nacional (19.8.2017)





(Antonio Cândido)


Sempre que a gente tenta defender algum tipo de arte do Brasil (literatura, cinema, ficção científica, seja o que for), em diferentes contextos, ouve alguns argumentos recorrentes, que se repetem como se fossem mantras, estribilhos, memes.

Um deles: “Olha, não adianta, foram os gringos que inventaram isso. Eles são muito melhores nisso do que a gente, não adianta querer concorrer com eles, basta comparar o produto deles com o nosso, chega dá vergonha”.

Outro: “Eu não sou nacionalista, eu não tenho obrigação de gostar de uma coisa só porque ela é brasileira. Meu interesse é a grande arte, o melhor produto. A meritocracia artística. Não vou gostar de uma coisa ruim só porque é brasileira.”

Muita da energia mental da minha vida foi consumida em torno dessas duas frases, que aliás são minhas, porque durante muito tempo fui eu que as pronunciei (e de vez em quando ainda o faço), fui que eu defendi essas posições, coberto, se não de razão, pelo menos de sinceridade.

Passemos adiante. No meu tempo de cineclubista, Paulo Emílio Salles Gomes era um professor de cinema da USP, famoso por ter estudado cinema na França, onde escreveu um livro sobre Jean Vigo, o cineasta de L’Atalante. De volta ao Brasil, tornou-se um defensor de cineastas brasileiros que aos nossos olhos não amarravam as chuteiras de Jean Vigo. E fez sobre um deles um livro magnífico: Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte.



Era muito citada naquela época (mal citada, aliás), nos debates, uma frase de Paulo Emílio: “O pior filme brasileiro é melhor do que qualquer filme estrangeiro”. Essa frase me enchia de brios e de perplexidade. Como assim – a obra de Mazzaropi era melhor do que a de Antonioni?!

Muito se discutiu sobre essa frase; aqui (https://www.brasildefato.com.br/node/10496/) está o link para um artigo da infatigável Rô, Maria do Rosário Caetano, em que ela faz um balanço dessa lenda cineclubística. Mas pela parte que me toca o mundo mudou quando algum informante providencial me alertou que não era isso que Paulo Emílio tinha dito. Ele dissera, na verdade: “o pior filme brasileiro diz mais de nós mesmos que o melhor filme estrangeiro”.

Não se tratava de qualidade estética, e sim de revelação de uma identidade.

Se eu sou um mero consumidor, um cara que quer puxar a carteira e escolher o melhor produto, posso exigir Antonioni. Mas se eu sou um criador e preciso entender o sistema onde minha obra vai se instalar depois de pronta, preciso pensar um pouco sobre Mazzaropi.

Não é que Antonioni me seja alienígena e inacessível. É que meu DNA psíquico, para o bem e para o mal,  tem mais de Mazzaropi do que do cineasta de O Eclipse.

Não custava nada a Paulo Emílio, como estudioso do cinema, ter pulado de Jean Vigo para Jean Renoir, ou até para Alain Resnais, não é mesmo? Mas não, ele pulou para Humberto Mauro e todo um exército de paraíbas (somos todos paraíbas, aos olhos europeus) que queriam fazer cinema aqui nesta terra de sobrados e mocambos.


(Paulo Emílio Salles Gomes)

No artigo de Maria do Rosário, que vai muito mais fundo nesta questão, ela transcreve uma glosa da famosa frase, que Paulo Emílio teria pronunciado numa entrevista à revista Cinegrafia (junho de 1974), nestes termos:

“Nós tentamos seguir de perto toda a produção brasileira atual, sem exceção. (…) Isso é uma tarefa laboriosa, difícil, frequentemente ingrata, mas culturalmente muito satisfatória. A gente encontra tanto de nós num mau filme, ele pode ser revelador de tanta coisa da nossa problemática, da nossa cultura, do nosso subdesenvolvimento, da nossa boçalidade (…) Em última análise, é muito mais estimulante para o espírito e para a cultura cuidar dessas coisas ruins do que ficar consumindo no maior conforto intelectual e na maior satisfação estética os produtos estrangeiros”.

Nessa formulação a idéia pode parecer até meio injusta, como se o resultado final de tanto estudo fosse somente o conhecimento da nossa boçalidade. Mas descobrimos virtudes também. Descobrimos talentos nossos que não somente os gringos parecem não ter, como eles próprios admiram com sinceridade, quando tomam conhecimento do que fazemos.

O brasileiro é um bipolar, que vive saltando do ufanismo de Afonso Celso para o complexo de viralata diagnosticado por Nelson Rodrigues.

Uma das direções em que se pode ir para evitar esse desespero esquizoide é a direção seguida por Paulo Emílio. Conhecer o que o Brasil faz – não para amá-lo incondicionalmente por ser “a Pátria”, mas para entender esta imensa confusão de país que somos. Entender o Brasil (= produzir hipóteses plausíveis sobre o Brasil) não deve ser mais difícil do que entender Deus (como querem os teólogos) ou o Universo (como querem os astrofísicos).

E nos faria um certo bem ter a humildade intelectual não só de Paulo Emílio mas de seu contemporâneo da USP, Antonio Cândido, o crítico literário falecido pouco tempo atrás. Ele dizia de nossa literatura:

“Comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, não há outra, que nos exprime. Se não for amada, não revelará a sua mensagem; e se não a amarmos, ninguém o fará por nós. Se não lermos as obras que a compõem, ninguém as tomará do esquecimento, descaso ou incompreensão. Ninguém, além de nós, poderá dar vida a essas tentativas muitas vezes débeis, outras vezes fortes, sempre tocantes, em que os homens do passado, no fundo de uma terra inculta, em meio a uma aclimatação penosa da cultura europeia, procuravam externalizar para nós, seus descendentes, os sentimentos que experimentavam, as observações que faziam - dos quais se formaram os nossos”.



Não fazemos isto por simpatia paternal e piedosa para com um bando de coitadinhos que escreviam mal. A experiência humana deles não era inferior à nossa, por mais que nos julguemos civilizatórios e sofisticados porque compramos engenhocas eletrônicas em doze vezes no cartão. Queiramos ou não, o país se parece mais com esses escritores dos anos 1800 do que conosco.

Vi tempos atrás no Facebook uma citação de Gustavo Nagel a respeito de um comentário feito por um autor que não conheço, Jean Bottéro, sobre o “Canto de Débora” (poema do capítulo 5 de “Juízes”) em celebração a uma vitória dos invasores hebreus sobre os locais, e transcrevo:

"Tratava-se apenas de um punhado de homens, microscópicos, perdidos num momento qualquer da história, que lutavam sob a chuva por um lote de terra, sem que a ridícula agitação que faziam tivesse, na verdade, contribuição alguma para o homem e seu progresso, e que permaneceriam, eles e sua agitação, escondidos e esquecidos, como infinitos outros, sob a poeira do tempo, se esse canto imortal não os alçasse a um plano cósmico, universal e eterno, e os transformasse, aos olhos dos leitores, num momento crucial da história do mundo."

Essa experiência humana, anônima e coletiva, geradora de produtos literários, não difere muito da experiência sofisticada de um romancista novaiorquino ganhador do Prêmio Pulitzer ou de um francês ganhador do Nobel. Eles se acham talvez superiores ao que escrevem, mas não o são, porque ninguém o é. Se o que escrevem tem algum valor, ficará. E quem atribui esse valor não são eles, são os leitores, aos quais muitas vezes eles se julgam superiores.


(G. K. Chesterton)

E para encerrar chamo ao banco de testemunhas o volumoso, exuberante e desbocado G. K. Chesterton, que celebrava o Império Britânico com toda a ironia de quem sabia muito bem de que barro ambos eram feitos. Diz ele, num texto de 1908:

“Minha aceitação do universo não é otimismo; parece-se mais com o patriotismo.  É uma questão básica de lealdade.  O mundo não é uma pensão barata em Brighton, que devamos abandonar, de tão miserável que é.  É a fortaleza da nossa família, com a bandeira tremulando no torreão, e quanto mais miserável for, menos devemos abandoná-la.  A questão não é saber se este mundo é triste demais para ser amado ou alegre demais para não sê-lo: a questão é que quando amamos uma coisa, se ela é alegre é uma razão para que a amemos, e se é triste é razão para amá-la mais ainda.  (...) Foi assim que as cidades se tornaram grandes.  Se remontarmos às raízes mais obscuras de nossa civilização vamos encontrá-las enlaçadas em torno de alguma pedra sagrada ou mergulhadas num poço igualmente sagrado.  As pessoas primeiro prestam tributo a um lugar, e depois conquistam glórias em seu nome.  Os homens do passado não amaram Roma porque ela era grande.  Ela tornou-se grande porque eles a amaram.”
(G. K. Chesterton, Orthodoxy, pags. 66-67)