("A lista de Schindler")
Um artigo que recente de Tim Long discute uma das normas
de roteiro que eu vejo apregoadas com mais frequência. E apregoada com razão,
digo logo antes de combatê-la.
É aquela norma que diz mais ou menos: “Só escreva no
roteiro o que pode aparecer na tela.” Só
escreva o que pode ser captado por uma câmera e um microfone, ou seja, o que
pode depois ser visto e ouvido pelo espectador.
Uma defesa bem humorada e bem fundamentada desse
princípio é feita por Hugo Moss no seu esguio e indispensável Como formatar o seu roteiro (Rio: Aeroplano,
2002, 32 págs.). Diz ele:
Outro erro comum, além de (d)escrever demais, é incluir fatos que
dificilmente são possíveis de capturar com a informação disponível na tela.
Ex.:
EXT. ESTRADA – DIA
Um carro desce uma estrada em direção ao Rio de Janeiro. Dentro, um
grupo de músicos, cujo cantor é um homem escuro com cabelos curtos, como um
punk do Terceiro Mundo. É Jorge Salgado, que está chegando ao Rio para fazer
dois shows gratuitos na praia da Ipanema.
Evidentemente, vendo só um carro descendo uma estrada, é difícil
imaginar como a audiência poderá saber detalhes sobre os ocupantes, muito menos
adivinhar o motivo específico da viagem. Essas informações teriam que ser
inseridas na história de uma outra forma (visual), se é que são fundamentais, e
se não, serem descartadas.
Em momentos assim, nós, roteiristas, nos deixamos
arrebatar pela embriaguez narrativa e começamos a contar a história com
palavras, como se fosse um romance, ao invés de simplesmente descrever uma sucessão de imagens e ações
visuais.
Esses aspectos subjetivos contaminam incontáveis
roteiros, uns mais, outros menos, mas sempre deixando que o modo literário de
narrar vaze para dentro do roteiro, que não admite muitos dos seus recursos.
O próprio Hugo Moss se oferece logo adiante para pagar um
almoço para quem reconhecer o filme em cujo roteiro lê-se esta indicação:
Geraldo bota o chapéu, faz um movimento imperceptível com a cabeça e
sai.
Filmar um movimento imperceptível é um dilema para um
diretor (pra nem falar no pobre do ator que precisa executar esse paradoxo quântico).
São literatices, e nenhum de nós está a salvo delas. E
não pertencem apenas ao cinema; infiltram-se em outras formas de escrita,
inclusive no teatro. Wilson Martins, criticando o teatro brasileiro
oitocentista, registra o heroísmo requerido ao ator que numa peça qualquer
vê-se solicitado a obedecer a esta rubrica: “Fulano (empalidecendo) - ...”
É o cacoete do romance, de um outro tipo de narração
infiltrando-se onde não é chamado.
Mas... nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Tendo dado
razão a Hugo Moss, num extremo, preciso dá-la igualmente, no extremo oposto, a
Tim Loing, neste texto no saite No Film School:
Long começa logo dizendo que “não existe uma única
maneira correta de produzir um roteiro”, e que tudo que funciona pode ser
utilizado, e que muitos roteiristas deixam-se dominar a tal ponto pelo conceito
de “regras” que não conseguem pensar fora delas.
A maioria das regras da narrativa cinematográfica surgiu
num certo momento através de artistas que estavam tentando se livrar das regras
anteriores.
Long questiona a máxima de que “só podemos escrever o que
pode ser visto ou filmado”, e cita o recho de roteiro abaixo, de Steven
Zaillian para A Lista de Schindler:
EXT. – BALCÃO DE GOETH – MOMENTOS DEPOIS – MANHÃ
Goeth sai ao balcão vestindo apenas camiseta e calção, e dali fica
contemplando o campo de trabalhos forçados, seu campo de trabalhos
forçados, seu reino. Satisfeito com essa visão, até um pouco espantado, ele faz
lembrar Schindler olhando para seu próprio reino, sua fábrica, tal como ele
gosta de fazer através de sua parede de vidro.
A vida é maravilhosa. Goeth empunha um rifle.
De minha parte, acho necessário que o autor do roteiro informe,
ao diretor, elenco e equipe, os sentimentos que devem existir por trás de cada
cena. Não creio que isso seja a cobrança de uma nuance impossível de filmar;
nem que seja uma exigência abstrata que o ator não tem como cumprir. Existe um
pensamento, um clima, uma emoção subjacente à cena. Cabe aos membros da equipe
que leem o roteiro encontrar um modo de passar isto para o espectador, cada
qual com seus recursos.
Outro exemplo dele, desta vez de Barry Jenkins, no
premiado Moonlight:
KEVIN
Onde você vai dormir esta noite?
Nenhuma resposta de Black. Nada, nem palavras, nem gestos, nada brota
dele nesse momento.
Black devia estar dirigindo, devia estar com os olhos na
estrada, prestando atenção nos outros carros, nas coisas que passam. Em vez
disso, seus olhos estão em Kevin, encarando de volta o homem que está perdido
nessa pergunta, e o espaço entre a pergunta e esse instante é a resposta mais
clara.
Kevin afasta o olhar, volta a olhar pela janela. A terra acabou de se
mexer. Os dois homens sentiram.
Eu imagino que dois bons atores, lendo isto, sejam
capazes de absorver a tensão e as hesitações psicológicas de uma curta cena
como esta – e transpor para a tela alguma coisa do que está aí. Metáforas como
“a terra se mexeu” provavelmente não virão a ser percebidas jamais pelo
público, mas os atores podem com sua atitude, suas expressões, transmitir para
o espectador algo igualmente ominoso, igualmente crucial.
Long nos lembra que os primeiros leitores de um roteiro
não são os atores que vão interpretá-lo, e sim pessoas para quem é preciso dar
uma idéia do tipo de filme que está sendo proposto. São agentes, empresários,
executivos de desenvolvimento de projetos, pessoas por cujas mãos passam as
primeiras propostas de um roteiro.
Long se refere em seu artigo a “spec writers, spec
scripts”: roteiro especulativos, digamos, aqueles que são oferecidos a um
estúdio, em vez de serem encomendados por este. Um roteiro não encomendado, oferecido
por um profissional de fora, está provavelmente contando uma história que os
destinatários desconhecem. É preciso deixar claro que história é essa.
Tim Long remete o leitor a outro artigo:
Ali, ele diz:
Para que seu roteiro se transforme num filme, as pessoas têm que
primeiro gostar dele como uma história.
Esta primeira versão, que irá circular por muitas salas e
muitas escrivaninhas e muitos monitores de gente desconhecida (sem o autor do
lado para tirar dúvidas) precisa dizer com clareza suficiente tudo a que se
propõe. Claro que a estrutura narrativa tem que ser de filme, a visualização
tem que ser de filme. Mas motivações, intenções, nuances, reações emocionais,
têm que vir bem explicadas. O bom roteiro indica o efeito a ser obtido, e o
modo de obtê-lo.
E se um ator ou atriz geralmente não gosta de receber
instruções do roteirista sobre como reagir em tal ou tal momento, ele ou ela gosta
de saber o que se pede de seu personagem, que motivação íntima, que subtexto,
que amálgama de influências e pressões, para que possam criar a cena do
personagem, com seus próprios recursos.
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