quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

4187) Os totalmente ricos (7.12.2016)




Segundo o Equality Trust, as 100 famílias mais ricas da Grã-Bretanha aumentaram sua fortuna em cerca de 57 bilhões de libras entre 2010 e 2016, um período em que a renda média do país sofreu uma queda. A Oxfam International afirma que o 1% mais rico da população mundial detém hoje mais riqueza do que os 99% restantes somados.

Pode não parecer, mas a riqueza absoluta é um tema recorrente na ficção científica. Não precisa envolver espaçonaves, alienígenas, robôs, pistolas desintegradoras. Estou falando da FC que especula o formato e a substância das sociedades futuras, partindo do nosso presente e exagerando alguns aspectos.

Riqueza é um deles. Para quem gosta de fazer FC sociológica, é interessante investigar, ficcionalmente, os limites do poder financeiro.

Alguém dirá que isso já é feito pelos romances mainstream tipo Sidney Sheldon ou Danielle Steel, a respeito de executivos milionários com suas esposas neuróticas entupidas de barbitúricos, suas amantes longilíneas e vorazes, suas tenebrosas transações em Wall Street, seu consumo conspícuo de bugigangas kitsch que custam os olhos da cara, suas férias em Aruba ou nas Bahamas.

A FC, no entanto, explora a ligação entre riqueza fabulosa + absoluta impunidade moral + alta tecnologia a serviço de quem pode investir pessoalmente nela algumas dezenazinhas, algumas centenazinhas de milhões.

Em “A Carícia” (“The Caress”, 1990) de Greg Egan (que incluí em Detetives do Sobrenatural, Casa da Palavra, 2014), um milionário recorre à engenharia genética para produzir seres híbridos e com eles reconstituir, usando criaturas vivas de carne e osso, uma pintura fantástica pela qual tem obsessão. Só isso. Ele quer ver o quadro “de verdade”; depois que vê, vai fazer alguma outra coisa.

Em “Death Do Us Part” (1997), Robert Silverberg descreve a vida de bilionários do futuro, capazes de prolongar indefinidamente a vida e a juventude. Ele começa o conto relatando a lua de mel dos protagonistas:

“Era o primeiro casamento dela, e o sétimo dele. Ela tinha 32 anos, e ele 363; aquela antiga relação entre a primavera e o outono da vida.  Passaram a lua-de-mel em Veneza, em Nairobi, na Cúpula do Prazer da Malásia, e depois num daqueles sofisticados ‘resorts’ L-5: uma reluzente esfera transparente com sol artificial num ciclo de 24 horas e cachoeiras que se despejavam como cascatas de diamantes.  E depois partiram para a bela casa aérea dele, suspensa em cabos retesados mil metros acima do Pacífico, para começarem ali a parte cotidiana de sua vida em comum”.

Em “Neve” (“Snow”, 1985), de John Crowley (que incluí em Contos Fantásticos de Amor e Sexo, Ímã Editorial, 2011), as pessoas ricas gravam suas vidas por completo através de uma “vespa”, um mini-drone com câmera que as acompanha por toda parte, para que nenhum dos preciosos momentos de suas vidas se perca para a posteridade.

No romance Holy Fire (1996) Bruce Sterling descreve minuciosamente como a ciência do futuro-próximo pode (a um custo financeiro imenso, claro) reconstruir uma pessoa idosa, rejuvenescendo-a – e o mundo se torna uma gerontocracia governada por indivíduos ricos, centenários, com aparência eternamente jovem.

O conto “The Totally Rich” do inglês John Brunner (em Worlds of Tomorrow, 1963; publicado em livro em Out of My Mind, New York, Ballantine, 1967) conta uma história parecida – a de uma mulher que tenta manter-se eternamente jovem e ao mesmo tempo quer ressuscitar o namorado que já morreu. Um eco do clássico Ela, a Feiticeira (“She”, 1887) de H. Rider Haggard.

Mais interessante do que a história em si, que é bem escrita mas sem grandes novidades, é a reflexão inicial de John Brunner sobre a vida dos superbilionários. (É a parte profética do conto, porque os “totalmente ricos” de hoje possuem fortunas que 50 anos atrás eram inconcebíveis mesmo para autores de FC.)

Diz ele:

“Eles são os totalmente ricos. Você nunca ouviu falar neles porque eles são as únicas pessoas no mundo ricas o bastante para poder comprar o que desejam: uma vida totalmente privada. (...) Quantos deles existem, eu não sei. Tentei calcular o total somando o PIB  de todos os países da Terra e dividindo pela quantia necessária para comprar o governo de uma potência industrial. Não preciso dizer que você não pode ter privacidade total se não for capaz de comprar pelo menos dois governos. Acho que deve haver uma centena dessas pessoas. Já conheci uma delas, e provavelmente outra. (...)

“Eles não estão no mapa. Entende isso? Literalmente, qualquer lugar onde eles escolham viver torna-se um espaço em branco nos atlas. Não estão nas listagens do Censo, nem no Quem é Quem, nem no Pares do Reino Britânico de Burke. Não aparecem nos registros de imposto de renda, e o correio não tem seu endereço. Pense em todos os lugares onde o seu nome aparece: registros escolares amarelecidos, arquivos de hospitais, notas fiscais de lojas, documentos assinados. Em nenhum desses lugares o nome deles está visível.

“Eles não são governantes absolutistas. Na verdade, não governam coisa alguma a não ser o que lhes diz respeito diretamente. Mas eles se assemelham àquele Califa de Bagdá que encomendou a um escultor “a fonte mais bela do mundo”. Quando ficou pronta (e era bela de verdade) ele perguntou ao escultor se havia algum artista capaz de superá-la em beleza. O escultor afirmou que não. O Califa disse: Paguem a ele o que foi combinado, e arranquem os seus olhos”

Estes (dizia John Brunner, já nos idos de 1963) são os Totalmente Ricos.






domingo, 4 de dezembro de 2016

4186) Ferreira Gullar, 1930-2016 (4.12.2016)



A poesia de Ferreira Gullar me chegou através do LP de estréia de Caetano Veloso, onde ele cantava “Onde Andarás”, com letra do poeta. Um bolero dolente, e lá pelo meio virava uma espécie de tango onde o intérprete mudava surpreendentemente de voz, imitando Orlando Silva. Fiquei associando esta canção àqueles fins de tarde de domingo, quando o sol começa a se por e a gente está meio de bobeira, preparando a hora de voltar pra casa:

Onde andarás
nessa tarde vazia
tão clara e sem fim?
Enquanto o mar
bate azul em Ipanema,
em que bar, em que cinema,
te esqueces de mim?

Gullar àquela altura (1968) já tinha publicado livros importantes, e não tardou para que eu me agarrasse à sua poesia, que sempre me pareceu, em seus melhores momentos, reunir o melhor de vários mundos: as cadências das redondilhas portuguesas (que ele explora tão bem quanto Cecilia Meireles), as imagens surpreendentes e inexplicáveis do surrealismo, a dicção das ruas que o aproxima das letras da MPB, o vigor imagético que (principalmente nas obras mais encorpadas, como o Poema Sujo) fazem o poema virar quase que um roteiro para uma viagem da câmera cinematográfica.

O Gullar teórico também marcou muito a minha geração, até porque ele fundamentava suas teorias sobre cultura e brasilidade não apenas na literatura, onde eu me movia mais à vontade, mas também nas artes plásticas. Tem dois livros dele que eu li intensamente (gostaria de reler agora) entre os 20 e os 30 anos, que foram Cultura Posta em Questão (1965) e Vanguarda e Subdesenvolvimento (1969). Me deixaram conceitos que aplico até hoje.

Nunca tive grande contato pessoal com ele, embora tenhamos participado juntos de mesas redondas, por mais de uma vez. Era um contato rápido, de cumprimentos, mas sem conversa, o que sempre lamentei.

Gullar era um esquentado, pelo que me dizem, e tem no currículo polêmicas famosas, primeiro com o grupo concretista de São Paulo, e mais recentemente com os governos do PT. Mas era também (os amigos me contam) um sujeito compassivo, humano, afetuoso. Era a impressão que deixava nas pessoas com quem conviveu.

Nós, paraibanos, devemos muito a ele, pelo extraordinário ensaio que fez sobre a obra de Augusto dos Anjos, quando estava no exílio. Publicado pela Paz e Terra em 1977, Augusto dos Anjos ou Vida e Morte Nordestina é um desses casos em que um crítico, em meras 45 páginas, sem recorrer a grandes bibliografias nem a anos de pesquisa, mergulha direto nos textos, toca na sua medula e sai dali cheio de revelações.

Exilado em Buenos Aires, Gullar pegou o Eu de Augusto e de certa forma fez com que o lêssemos pela primeira vez. Uma façanha que eu só comparo à de Eric Auerbach, também no exílio, criando seu clássico Mimesis (1946) sem ter acesso a grandes bibliotecas, mergulhando direto na obra de Homero, Rabelais, Tolstoi, revelando  a mecânica entre a tradição coletiva e a inteligência individual dos autores.

Gullar teve uma passagem não muito bem sucedida pelo poema-protesto na série Violão de Rua, na época do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes). Quando li um dos seus “cordéis” (acho que foi João Boa Morte, Cabra Marcado Para Morrer, 1962), não achei ali nada de cordel. Estrofe, sílabas, esquemas de rimas, tudo era uma salada.  Me pareceu uma contrafação, uma tentativa de pastiche feita por quem não conhecia bem o original, e os resultados, anunciados como “cordel”, acabavam passando para os leitores (e futuros poetas) uma imagem distorcida.

Era sintoma da época, em que a politização da literatura levava os autores a recorrerem, meio às pressas, a modelos populares que eles tinham ouvido cantar sem saber ao certo onde. Algo parecido com os versos de Antonio Callado em sua peça Forró no Engenho Cananéia (1964), onde o grande romancista perde a mão ao lidar com as formas poéticas populares.

Quando esqueceu os modelos e falou somente por si, Gullar produziu alguns dos mais belos poemas em redondilha da língua portuguesa-brasileira.

 Se eu tivesse que pegar apenas uma obra dele, faria como muitos: escolheria o Poema Sujo (1976), um poema-livro autobiográfico onde o poeta, a pretexto de falar de si mesmo, faz um retrato cruel e sincero do seu país.

Não li nenhum dos seus livros de poesia mais recentes, e lamento. Quando esses livros saem, recebem boa cobertura da imprensa, que cita, transcreve. A gente fica conhecendo 10 ou 20 poemas republicados nos jornais e na web, e de certa forma se dispensa de ler o livro, o que é sempre um erro. Não importa. Cada poema lido reafirmava sem susto o poeta que eu sempre soube.





sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

4185) Os 100 anos do samba (2.12.2016)



(da esq. para a dir.: Paulo da Portela, Heitor dos Prazeres, Gilberto Alves, Bide e Marçal)


Estamos comemorando 100 anos do samba, data estabelecida em função da gravação de “Pelo Telefone” de Donga, em 1916. O jornal O Globo reuniu um enorme painel de compositores e jornalistas para que cada um fizesse sua lista dos “dez sambas fundamentais”. Não me arrisco a voar tão alto, não conheço o gênero tanto assim. Mas acho que todo compositor de MPB (como é o meu caso) tem seus sambas-referência.
O número de dez é a camisa-de-força obrigatória pra neguinho não chegar com lista de 237. Vão aqui, portanto, dez sambas “meus”, canções que na minha vida são referência estética, poética, afetiva, autobiográfica. Sem ordem de preferência.

1) PRESSENTIMENTO (Elton Medeiros & Hermínio Belo de Carvalho)
Pra quem não liga o nome a pessoa, é aquela jóia que começa: “Ai, ardido peito... Quem irá entender o teu segredo? Quem irá pousar em teu destino? E depois morrer do teu amor?”. Não só como samba, mas uma das canções de amor mais bonitas da MPB. Começa melancólica, reflexiva, em tom menor, mas vai se animando, o tom modula para maior (“Vem, meu novo amor, vou deixar a casa aberta!...) e vai subindo, em modulações sucessivas, a melodia vai galgando patamares cada vez mais altos, até terminar numa última frase triunfalmente lá em cima: “Tudo faz pressentimento, que este é o tempo ansiado de se ter felicidade!”. Olha o braço como fica.

2) SAUDOSA MALOCA (Adoniran Barbosa)
Os Demônios da Garoa eram minha banda favorita aos 12, 13 anos. As músicas tinham humor, pareciam histórias em quadrinhos com seus personagens, suas narrativas aparentemente ingênuas mas cheias de sutilezas. “Saudosa Maloca” é o hino nostálgico, estoico, resignado, de todos os sem-teto de São Paulo e do mundo, dos invasores, dos squatters. Adoniran foi um contemporâneo de Noel que viveu mais do que Noel, foi precursor de Vanzolini e de Itamar; ninguém compreende sua cidade se não passar por dentro da obra dele.

3) UM APITO NO SAMBA (Luiz Bandeira & Luiz Antonio)
Das tantas músicas de Luiz Bandeira eu podia ter escolhido a clássica “Na Cadência do Samba (Que Bonito É)”, que, em sua gravação com a orquestra de Waldir Calmon, virou hino do futebol brasileiro como tema musical dos jogos do “Canal 100”. Mas o “Apito no Samba” faz a ponte entre o samba das Escolas, regido a apito, e o samba orquestral dos anos 1950, quando o balanço sambista encontrou tantas orquestras (Tabajara, etc.) dispostas a concretizar o que Jackson do Pandeiro sonhou e fez: o samba cadenciado, melódico, fluente, encorpado com orquestrações complexas e balançadas como as de Glenn Miller, que Jackson curtia tanto. É o samba épico dos anos 1950.

4) OLÊ, OLÁ (Chico Buarque de Hollanda)
Antes de surgir “A Banda”, antes de clássicos como “Quem te viu, quem te vê” ou “Roda Viva”, foi essa a primeira música que eu vi cantada na TV por aquele rapaz de smoking, gravatinha borboleta e cara encabulada. Era um samba, mas não era um samba! Era uma canção com formato próprio, melodia insinuante cheia de acordes que a mão não achava. Era uma canção sobre o samba, mas não era a mera exaltação, era outra dicção, outra filosofia. Tinha horas que parecia até ficção científica (“é um samba tão imenso que eu às vezes penso que o próprio Tempo vai parar pra ouvir”). E era uma canção-de-boêmio, aquelas que levam o ouvinte madrugada afora e, como o “Mr. Tambourine Man” de Dylan, se encerram com o nascer do sol (“quem passa nem liga, já vai trabalhar”). E ainda por cima deixou de herança na fala brasileira a fórmula imorredoura de quem vai pra farra: “a noite é criança”.

5) ALVORADA (Cartola)
E por falar em dia amanhecendo, não sei de música que fale isso com maior beleza e simplicidade do que Cartola: “O sol colorindo é tão lindo, é tão lindo... E a Natureza sorrindo, tingindo, tingindo...”  Cartola é um desses sambistas como Elton, Jamelão, Nelson Cavaquinho, que parecem sobreviventes de uma guerra e quando pegam o instrumento pra cantar falam de tudo menos da guerra. Falam que quando um dia começa lá no morro ainda não existe a tristeza, o dissabor. Sofreram todas as desilusões, mas a ilusão da beleza continua intacta. E o sol quando nasce, nasce embelezando o mundo, “tingindo, tingindo”.

6) SEI LÁ, MANGUEIRA (Paulinho da Viola & Hermínio Belo de Carvalho)
Na linha dos sambas filosóficos, nenhum me estremece tanto quanto essa homenagem do portelense Paulinho à verde e rosa, que Hermínio cobriu com versos definitivos: “E a beleza do lugar, pra se entender, tem que se achar que a vida não é só isso que se vê. É um pouco mais – que os olhos não conseguem perceber, as mãos não ousam tocar, os pés recusam pisar”.  Uma dessas canções “nascidas clássicas” como diz a crítica, e o simples fato de ser feita por um não-mangueirense nos faz acessar o veio profundo do samba, que não é somente um estilo de música, é “um modo novo da gente viver”. Que o futuro o escute.

7) LAPINHA (Baden Powell & Paulo César Pinheiro)
Eu quase furei o meu elepê da “Bienal do Samba” de 1968, com canções que ficaram na história (como “Coisas do mundo, minha nega” de Paulinho da Viola e “Pressentimento” de Elton) e foi vencida por Elis Regina com essa música de Baden Powell (que àquela altura eu já conhecia com “Canto de Ossanha”, etc.) e de um pirralho de 16 anos chamado Paulo César Pinheiro. Essa música sempre me deu uma emoção enorme e eu pensava: um dia vou morar no Rio e fazer samba. Ela tem uma estrutura clássica: primeira parte (ou refrão) tirada do folclore, e segunda parte “erudita”, fazendo uma variação melódica e poética, mais elaborada. E uma poesia que nos inundava: “ah, tanto erro eu vi, lutei, e como perdedor gritei: que eu sou um homem só, sem poder mudar, nunca mais vou lastimar...”

8) CONTO DE AREIA (Toninho & Romildo Bastos)
É um daqueles sambas praieiros onde Clara Nunes deitava e rolava: “É água no mar, é maré cheia, ô... Mareia, oi, mareia...” A letra cadenciada, melodia linda, cheia de imagens bonitas. É principalmente a estrutura desses sambas que me encanta, fugindo ao esquema primeira/segunda/refrão; não são estrofes longas de formato recorrente, mas guardam, dos sambas antigos do tempo de Donga, aquela estrutura de quadrinhas ou sextilhas superpostas, com células melódicas de quatro ou seis linhas que, quando se encerram, em vez de voltarem ao começo dão lugar a uma nova célula semelhante com letra nova, melodia diferente. Sambas encadeados, sambas-colagem, surpresas poéticas e melódicas que se renovam, um modo antigo e novo de fazer canção.

9) FESTA PARA UM REI NEGRO (Zuzuca)
Tinha que botar um samba-enredo de escola para representar o gênero. Qual, no meio de mais de mil? Este aqui (Salgueiro, 1971), o famoso “Pega no Ganzê, Pega no Ganzá”, é um dos meus favoritos, inclusive porque lembra o auge da “Batucada de Lanka” dos nossos fins de semana em Campina, regados a samba, forró, suor e cerveja. Eita tempo bom; que o digam Biliu de Campina, Tadeu Mathias e Elba Ramalho, cujas carreiras começaram ali. O samba de Zuzuca é samba pra levantar arquibancada, com sua letra lembrando os velhos congados, estrutura simples (primeira + refrão), aquela clássica subida onde um milhão de pessoas eleva a voz em uníssono, até quem não sabe a letra (“que beleza...”), e o carimbo africano das sonoridades “ê / á” (que Chico aliás já evocara em “Olê, Olá”).
Com a Velha Guarda do Salgueiro: https://www.youtube.com/watch?v=2qvDJ9BXhA0

10) CONVERSA DE BOTEQUIM (Noel Rosa & Vadico)
Pois é, faltava Noel. O samba urbano, refinado, afiado. Samba crônica, como Lenine insiste em lembrar: o samba que fotografa um momento da História. Riqueza de rimas, de vocabulário, de detalhes fotográficos, da cenografia de época, da pequena malícia das relações de classe. O cotidiano do malandro folgado mas sem maldade, o bon-vivant, o flâneur de mãos nos bolsos indo de cabaré em cabaré, de café em café, esticando a noite para que o dia não amanheça. A noite de Noel foi curta, 27 anos somente, mas ainda hoje transborda para dentro das nossas.


Não é nada, não é nada, são dez sambas no meio de milhares. Se eu quiser, amanhã apago essa lista e faço outra tão-boa-quanto. Pra quem gosta de ouvir, de cantar, de fazer, de analisar samba, existe uma floresta amazônica de alegrias e tristezas a serem aprendidas, impregnadas, depuradas, sublimadas em forma de música. Viva o samba centenário! Tomarei uma em sua homenagem.














terça-feira, 29 de novembro de 2016

4184) O plágio involuntário (29.11.2016)




Um dos exemplos clássicos de plágio inconsciente é o episódio narrado pelo filósofo Nietzsche, incluído no seu Assim Falou Zaratustra (1883-1891). Ele diz:

Nesta época em que Zaratustra residia nas Ilhas Happy, aconteceu de um navio ancorar na ilha onde fica o vulcão fumegante e a tripulação descer à terra para caçar coelhos. Ao meio-dia, no entanto, quando o capitão e seus homens se haviam reunido novamente, viram, de repente, um homem que vinha pelo ar em sua direção e uma voz que dizia nitidamente: “É tempo, é mais que tempo!”. Mas quando a figura aproximou-se deles, passando rápido como uma sombra em direção ao vulcão, reconheceram com grande espanto que era Zaratustra... “Vejam!”, disse o velho timoneiro, “vejam Zaratustra que vai para o inferno!” (capítulo XL, “Grandes Acontecimentos”).

Em O Homem e Seus Símbolos (Ed. Nova Fronteira, trad. Maria Lúcia Pinho), Carl Jung mostra que esse trecho corresponde quase exatamente a um trecho de um livro publicado meio século antes da obra de Nietzsche; e depois verificou-se que uma irmã de Nietzsche lembrava de terem lido o livro com essa cena. (Na qual são dois os homens que passam voando por cima dos marinheiros; sem dizer nada, eles mergulham na cratera do vulcão e ali desaparecem.)

Jung questiona os processos que levam uma imagem assim a ficar guardada na memória e depois ser evocada no ato da escrita, apresentando-se com tal força e tal poder de convencimento que nem por um segundo o escritor duvida ser ela de sua autoria.

Ou talvez duvide, como Paul MacCartney, que passou mais de um ano tocando “Yesterday” para Deus e o mundo e perguntando se conheciam aquilo. Todos diziam que não, e ele acabou gravando a música – e correndo o risco de pegar um processo bilionário. Processo não houve, mas alguns anos atrás descobriram uma canção antiga do repertório de Nat King Cole (que Paul provavelmene ouviu na época de garoto), com uma modulação parecida, e com algumas das frases e rimas contidas na letra.

Não é um plágio. Até porque são canções diferentes, que durante alguns trechos breves coincidem exatamente e logo voltam a se separar por linhas melódicas distintas. Pode haver aí o plágio inconsciente, ou o que Jung chama de criptomnésia, memória oculta. Oculta até do dono, que não sabe que a possui.

Freud mostrou, em seus estudos sobre os sonhos, como nossa mente adormecida cria seus filminhos oníricos através de processos de fusão, substituição, transposição, etc.  Nossa memória-desperta parece recorrer também a esses artifícios, quando o que tenta evocar não se apresenta instantaneamente. Quando não acha, ela inventa alguma coisa lançando mão do que efetivamente achou em suas buscas randômicas.

Howard Schneider, professor de jornalismo na StonyBrook University (Nova York), lembra aos seus alunos que nossa mente gosta de misturar coisas que estavam separadas. Diz ele que acontece muito, por exemplo, do indivíduo ouvir um programa do horário eleitoral intercalado a um telejornal, e depois referir-se a algo que viu na propaganda política, pensando ter visto no noticiário da imprensa. (Deve ser por isto que existe a tradição de intercalar aos telejornais os drops de propaganda partidária. Para que na memória do eleitor tudo pareça ter sido escutado através de uma “fonte imparcial e objetiva”, criatura mitológica na qual muita gente acredita.)

Algumas pessoas me consideram um cara de memória excepcional, porque tenho certa facilidade para nomes, datas, versos, etc. O problema é que “boa memória”  não é uma qualidade que se aplica a tudo. Sou capaz de conversar durante duas ou três horas com alguém que acabei de conhecer, olhando no rosto, e não reconhecer a pessoa um mês depois, se ela não disser quem é. O que já me valeu ser considerado grosseiro, metido a besta, arrogante, etc. Não é isso. É um “branco” mesmo. Para usar uma metáfora contemporânea: era algo que estava na memória-RAM mas por um motivo ou outro deixei de “salvar no HD” e se perdeu.

Ainda não cheguei ao ponto de um amigo meu, que certa vez saiu com uma garota, e quando estavam na cama comentou: “Dias atrás saí com uma garota que tinha uma tatuagem igual essa tua.”  Ela disse: “Era eu, idiota.”

Já cometi lapsos absurdos de memória. Uma vez fiz um show em São Paulo juntamente com Lenine e com Gereba (ex-banda Bendengó). Lá pelo meio, eu e Lenine improvisávamos um “mourão voltado”, gênero de repente em que um cantador faz um verso perguntando, e o outro faz um verso respondendo. Eu e ele improvisávamos assim, e Gereba nos acompanhava ao violão. A certa altura, fechando a estrofe, Lenine perguntou: “ E pra que serve um violão?”  Eu apontei Gereba e disse: “Pra quem é predestinado...”  E fechamos com o refrão em uníssono: “Isso é que é mourão voltado / isso é que é voltar mourão”. Aplausos mil.

Dez anos depois, encontro Gereba novamente em São Paulo e ele me dá um CD com a gravação do show. Quando chegou nesse trecho, constatei que os versos estavam lá, mas fui eu quem fez a pergunta, e foi Lenine quem respondeu.

Por isso, dou sempre a todos o conselho antigo que me foi dado pela minha mãe: “Des – con – fi – e!”.






domingo, 27 de novembro de 2016

4183) Uma vez numa terra remota (27.11.2016)




“Uma vez, numa terra remota, havia uma donzela. Ela morava perto de uma grande floresta.  E o pai dela disse: ‘Não entre no bosque’. Mas ela era uma menina má e não obedeceu. Ela queria saber o que tinha lá dentro. Ela achou que ia poder entrar lá somente um pouquinho. A floresta é muito escura, e cheia de barulhos que dão medo. A donzela falou assim consigo mesma: ‘Eu não gosto disto aqui’, e ela tentou voltar, mas ela não conseguia mais avistar a trilha por onde viera, e estava ficando de noite, e de repente alguma coisa pulou em cima dela! Era um urso. E o urso disse: ‘O que você está fazendo na minha floresta?’ ‘Oh, senhor Urso, por favor não me coma!’, disse a donzela. ‘Eu me perdi e não estou conseguindo voltar para minha casa.’ Agora: o urso era um urso bom, mesmo tendo cara de cruel, e ele disse: ‘Eu posso lhe ajudar a sair de dentro da floresta’, e a donzela disse, ‘Mas como? Está tão escuro’, ‘Bem, então vamos perguntar à coruja’, disse o urso, “ela pode ver no escuro’. Ela continuou a falar, inventando à medida que avançava, sentindo um estranho conforto naquilo.

O parágrafo acima é uma síntese de uma cena aparentemente banal, uma moça de vinte e poucos anos, solteira, botando para dormir um menina de cinco, à qual se afeiçoou. A autora é Connie Willis, uma escritora muito popular e premiada nos EUA, autora de contos ora engraçados, ora sentimentais, mas sempre com leveza. Este romance, O Livro do Juízo Final (Doomsday Book, 1992) deverá sair pela Suma de Letras, com tradução minha.

Willis tem mais formação literária do que científica. Não quer dizer que ela não entenda de ciências, mas quando ela inventa aqui no seu romance uma máquina do tempo, ela, como H. G. Wells, fornece apenas informações genéricas sobre como a máquina é posta a funcionar. Não se dá o trabalho de explicar como se obtém um resultado tão espantoso, nem parece perder muito sono com isto. (Em termos das redes sociais de hoje, Willis é uma escritora de Humanas.) 

Seu interesse é o paralelismo entre os tempos, as rimas de pequenos acontecimentos ou dramas refletindo um ao outro através dos séculos, e alguém sendo capaz de perceber isso. Esta sua série de narrativas sobre viagens temporais leva historiadores de Oxford a diferentes momentos da História. Uma espécie de Túnel do Tempo.

“Firewatch” (1982), o conto que deu origem a esta série, mostra um desses estudantes vindo do futuro para ajudar a proteger a Catedral de São Paulo, em Londres, durante os bombardeios alemães na II Guerra.  

Nesse conto inicial já se menciona, meio indiretamente, uma aluna chamada Kivrin, que acabou de chegar da Idade Média, bastante abalada. Doomsday Book é a narração do que aconteceu a essa personagem citada de passagem em alguns parágrafos do “Firewatch”

O parágrafo transcrito no começo deste texto, a história da donzela que mergulha na floresta escura, é a própria história da mulher que a está contando, uma estudante de História na faculdade de Brasenose, em Oxford, que recua ao século 14 para examinar as condições de vida do campesinato inglês durante a Guerra dos Cem Anos.

Kivrin Engle, a estudante, traz um sobrenome em homenagem a uma famosa autora de viagem temporal, Madeleine l’Engle, autora do clássico juvenil A Wrinkle in Time (1963), livro que a geração de Willis (ela nasceu em 1945) provavelmente leu na juventude.  

Kivrin tem algo de quase Nikita, quase uma Lara Croft crononauta. Estuda plantas medicinais, latim, religião, equitação, toma umas quinze vacinas diferentes, passa o pente fino na história e na geografia da época. Instala um tradutor simultâneo no cérebro. Instala um minigravador camuflado no pulso e ativado ao pressionar juntas as palmas das mãos. Desse modo, ao se misturar ao mundo do passado, poderá gravar seus relatórios enquanto dá a impressão de estar rezando em voz baixa.

Em alguns momentos, Kivrin me lembrou também a Psicóloga, de outro livro que traduzi, o Aniquilação (Ed. Intrínseca) de Jeff VanderMeer. Uma mulher jovem, expedita, imaginativa mas atenta, capaz de se virar sozinha, e um tanto introspectiva. Disposta a saltar num abismo e saber que, mesmo que continue viva, essa pessoa que ela é agora deixará de existir durante essa experiência.







sexta-feira, 25 de novembro de 2016

4182) A pista do passado (25.11.2016)





Falei dias atrás sobre as histórias de viagem no Tempo onde dois fatos, em momentos diferentes do Tempo, se refletem um no outro, quando um personagem, viajando na direção do passado, encontra um objeto significativo que conhecera em sua própria época, e que de certa maneira é a razão de sua viagem.

Outro efeito empregado pelos autores dessas histórias pode ser resumido assim: alguém da nossa época viaja (mental ou fisicamente) ao Passado. Lá, interfere de alguma maneira nos acontecimentos e isso produz uma marca que poderá ser vista pelas pessoas do “presente”, da época de onde ele próprio partiu.

Um dos melhores livros de Isaac Asimov é The End of Eternity (1955) (no Brasil, O Fim da Eternidade, Editora Aleph), cuja premissa básica é a existência de uma espécie de Túnel do Tempo pelo qual um grupo de “Eternos” é capaz de acessar cada século da História. Um personagem é enviado ao passado, o ano de 1932, e por uma série de razões fica preso ali.

Os Eternos se reúnem. Sabem que estando preso no passado o explorador pode tentar mandar algum recado para eles. E começam a pesquisar as revistas da época, até que encontram um desenho de uma nuvem em forma de cogumelo (que em 1932, antes da bomba atômica, não despertaria nenhuma ressonância especial nos leitores) e a frase “All the Talk Of the Market”, que forma o acróstico A-T-O-M. É um recado, à vista de todos, mas que só poderia ser corretamente interpretado pelas pessoas do futuro.

(Segundo consta, Asimov teria visto a foto casual de uma nuvem-cogumelo (natural, não atômica) numa revista antiga, e isso lhe deu a idéia da história, plantando um viajante do Tempo no passado.)

Outro exemplo vem do conto “Uma mensagem de Charity” (“A message from Charity”, 1967, de William M. Lee), que incluí na minha antologia Contos Fantásticos de Amor e Sexo, Ímã Editorial, Rio, 2011.

Desta vez não se trata de viagem no Tempo, mas de contato telepático através do Tempo entre dois adolescentes, um garoto do século 20 e uma garota do começo do século 18, no mesmo local da Nova Inglaterra (EUA).

Charity e Peter (por mecanismos que não vale a pena questionar aqui) entram em contato telepático, leem o pensamento um dos outro, ficam amigos. Ela descreve para ele o mundo soturno em que vive, cheio de caças às bruxas; ele mostra a ela o mundo moderno (cada um consegue, numa certa medida, ver o que o outro está vendo). Eles moram exatamente no mesmo local físico, e há um rochedo, a Pedra do Urso, onde os dois costumam sentar para “conversar” mentalmente – como se fosse um local onde o sinal do celular pega melhor.

Só que, com esse moído todo, o pessoal da época de Charity começa a desconfiar do comportamento dela, alheia, distraída, aparentemente falando sozinha. Suspeitam que ela é bruxa. Ela é submetida a um julgamento onde Peter ajuda na sua defesa – no futuro ele é capaz de pesquisar na biblioteca local e descobrir informações sobre crimes praticados pelos acusadores de Charity, que os ameaça veladamente no tribunal e acaba se safando.

Mas o perigo continuia, e ela resolve cortar a ligação com Peter. Despede-se dele, e diz: “Olhe na Pedra do Urso, embaixo do queixo, do lado esquerdo”.

Peter vai lá, naquele lugar tão conhecido dele, tateia embaixo da pedra, e encontra, gravado na pedra, um coração com as iniciais deles dois.

É mais uma vez essa figura das duas pontas que se encontram; neste último caso, o detalhe mais significativo é saber que, durante todas as conversas dos dois, o sinal (em 1967, digamos) já estava gravado na pedra, três séculos antes, mas é só quando ela o revela que ele vai à procura e o encontra.

Em sua Poética, Aristóteles propõe uma figura literária chamada “anagnórise”, que é “um recurso narrativo que consiste no descobrimento por parte de uma personagem de dados essenciais de sua identidade, de entes queridos ou do entorno, ocultos para ele até então. A revelação altera a conduta da personagem e obriga-a a formar uma idéia mais exata de si mesma e do que a rodeia.” (Wikipédia).


Quando eu tiver tempo vou inventar um nome para esse instante em que duas pontas do Tempo se tocam e um personagem, ao conhecer o Passado, entende o real significado de algo que fez parte do seu Presente. 





terça-feira, 22 de novembro de 2016

4181) Ser músico (22.11.2016)





Ser músico é ser a estrela do espetáculo, chegar para passar o som às 4 da tarde e o técnico de som só aparecer uma hora depois.

Ser músico é estar numa sala ou numa mesa de bar onde todo mundo canta a plenos pulmões e se diverte a valer, e ficar olhando por cima dos ombros dos outros para enxergar a mão esquerda do cara que toca o violão.

Ser músico é esquecer um pedaço da música e ficar deprimido na festinha pós-show, mesmo que ninguém tenha percebido.

Ser músico é receber uma letra pra musicar, do cara que você mais admira, passar duas semanas compondo no capricho, e meses depois ver no disco a letra com a melodia de outro cara, e achar que tudo bem, ficou melhor assim.

Ser músico é estar acompanhando a cantora e pensando em que restaurante irão jantar depois do show.

Ser músico é viajar carregando três ou quatro “cases” de equipamento e ouvir da produção: “você é sempre o que dá mais trabalho”.

Ser músico é ficar ouvindo um trecho de canção 47 vezes até descobrir de ouvido o acorde exato daquela passagem.

Ser músico é dar o seu disco de presente a uma pessoa que o vira e revira, olha e diz: “Mas é só instrumental?...”

Ser músico é ir fazer um show num bar e não aparecer ninguém, a não ser um casal desconhecido, e você fazer o show inteiro para eles, que viram amigos seus pro resto da vida.

Ser músico é autografar o peito de uma moça na frente do namorado dela.

Ser músico é esperar dez meses e duas semanas por um cachê, e quando o depósito é feito ter vontade de ajoelhar no chão e agradecer porque fizeram mesmo.

Ser músico é diante de um teatro repleto subir no palco como um zé-ninguém e descer como um deus; ou vice-versa.

Ser músico é ouvir o terceiro sinal para entrada no palco e nesse mesmo instante ter vontade de mijar.

Ser músico é começar a tocar embaixo de vaias, insistir até as vaias diminuírem, desaparecerem, serem substituídas pelos primeiros “uau!”, ver crescerem os aplausos, sair sob ovação e dizer baixinho: “agora, né?”.

Ser músico é tocar o tempo todo de olho numa figura da platéia e depois do show vê-la aparecer meio hesitante na porta do camarim.

Ser músico é achar um cara chatíssimo e insuportável, e mudar de opinião no momento em que ele começa a tocar.

Ser músico é ensaiar vinte dias para gravar uma música de três minutos.

Ser músico é ouvir alguém dizer que daria a vida pra tocar como você, e responder: “Eu dei a minha”.








sexta-feira, 18 de novembro de 2016

4180) "Sarapalha" (18.11.2016)



(Vau da Sarapalha, com o grupo paraibano Piollin)

O terceiro conto de Sagarana (1946) de Guimarães Rosa, que está completando 70 anos de lançamento, acabou alcançando grandes públicos meio século depois, por vias transversas, ao servir de inspiração para uma das montagens mais bem sucedidas do teatro paraibano: Vau da Sarapalha, pelo grupo Piollin, com direção de Luiz Carlos Vasconcelos e interpretações de Everaldo Pontes, Nanego Lira, Soia Lira, Servílio de Holanda e Escurinho.

É a história de dois homens que vivem num sitiozinho entre as ruínas de um povoado extinto pela malária, à beira rio:

“O rio – que não tem pressa e não tem margens, porque cresce num dia mas leva mais de mês para minguar”.

Primo Ribeiro e Primo Argemiro passam o dia sentados, tremendo de sezão, tomando quinino, delirando. Além disso, ambos amargam a partida de Luísa, mulher de Ribeiro, que um dia partiu com um boiadeiro no trem-de-ferro. No dia em que ocorre o conto, Primo Argemiro recorda o amor secreto que tinha sentido pela mulher do outro, e depois, no meio do delírio, fala disso em voz alta. Primo Ribeiro se ofende, e o expulsa das suas terras.

O conto se resume a isso, dois homens tresvariando de cócoras, tremendo do frio da maleita e depois suando copiosamente, porque ali “a febre serve de relógio”. Em volta deles, a Natureza invencível toma conta devagarinho do que restou do sítio:

“Aí a beldroega, em carreirinha indiscreta – ora-pro-nobis! ora-pro-nobis! – apontou caules ruivos no baixo das cercas das hortas, e, talo a talo, avançou. Mas o cabeça-de-boi e o capim-mulambo, já donos da rua, tangeram-na de volta; e nem pôde recuar, a coitadinha rasteira, porque no quintal os joás estavam brigando com o espinho-agulha e com o gervão em flor.”

Essa proliferação vegetal e barroca, viva como num desenho animado, vem temperada por uma das grandes novidades que Rosa introduziu no romance regional: o olho literário urbano, informado de cultura pragmático-livresca, revelado assim como quem não quer nada, sem alarde.

As cobras dágua passam “em nado de campeonato”, um cachorro tem um “focinho cúbico”, os mosquitos fêmeas zunem “em tom de dó” e os machos “uma oitava mais baixo”. Detalhes e comparações que um regionalista tradicional, preocupado em reproduzir o espírito dos capiaus, não ousaria inserir.

O tema da ida-e-volta (“For a walk and back again”, na epígrafe do livro) perpassa praticamente todos os contos de Sagarana:



Aqui, ele está presente na ida-embora dos habitantes do povoado, na fuga de Luísa com o boiadeiro, na própria morte que se avizinha: “Tudo tem que chegar e de ir s’embora outra vez... Agora é a minha cova que está me chamando...”. Está na desorientação do cachorro Jiló quando, após a briga dos primos, Argemiro parte pela estrada e o outro fica, deixando a lealdade do cachorro dividida e perplexa:

“O perdigueiro de focinho grosso vem correndo também. Vem, mas diz que não vem: vira a cabeça, olha para primo Ribeiro, que lá está sentado ainda, curvado para o chão. O cachorro está desatinado. Para. Vai, volta, olha, desolha... Não entende.”

Outro tema eterno de Rosa é a arte da narrativa, a contação de histórias. Aqui, esse tema aparece quando Argemiro conta pela milésima vez a Ribeiro a historinha sobre uma moça que é roubada por um “moço-bonito que apareceu, vestido com roupa de dia-de-domingo e com a viola enfeitada de fitas”. O moço-bonito é “o capeta”; o furto da moça espelha o furto de Luísa, e maltrata a lembrança do marido traído.

O mais interessante, contudo, é que essa história, claramente da tradição oral, é concluída por Argemiro numa ramificação de possibilidades:

“Aí a canoinha sumiu na volta do rio... E ninguém não pôde saber pra onde foi que eles foram, nem se a moça, quando viu que o moço-bonito era o diabo, se ela pegou a chorar... ou se morreu de medo... ou fez o sinal-da-cruz... ou se abraçou com ele assim mesmo, porque já tinha criado amor...”

Um final múltiplo que lembra experiências como as de John Fowles (A Mulher do Tenente Francês, 1969) ou de Alain Robbe-Grillet (La Maison de Rendez-Vous, 1965).

Tem outros detalhes que deixam a gente matutando. A certa altura, Primo Ribeiro diz: “Agora mesmo, ‘garrei a ‘maginar...” Posso estar delirando também, mas acredito ver nisso um eco da letra da famosa “Maringá” de Joubert de Carvalho:

Maringá, Maringá...
Depois que tu partiste
tudo aqui ficou tão triste
que eu ‘garrei a ‘maginar...

A canção é de 1932. Quando Sagarana chegou às livrarias, em 1946, ela estava no auge do sucesso – tanto é assim que a cidade paranaense (fundada em 1947) ganhou esse nome porque diz-se que os operários construtores a cantavam dia e noite.

Rosa afirmou, numa carta famosa a João Condé, ser este o conto de Sagarana de que ele menos gostava. Pelo clima mórbido, doentio?  Não dá pra saber. Mas eu sinto “Sarapalha”, apesar do clima “pra baixo”, como um dos seus contos com presença mais exuberante da Natureza (superado apenas por “São Marcos”, do mesmo livro).

Em certos momentos, os dois primos (“dois velhos – que não são velhos”) lembram, mais do que dois doentes, dois drogados perdidos numa Cracolândia rural.  Dois junkies eternamente de cócoras, chapadões, no presente imóvel que a droga proporciona. A malária se transforma no seu barato, com a febre pontualíssima, o desvario manso em que Ribeiro tem visões ominosas: “Passam umas mulheres vestidas de cor de água, sem olhos na cara, para não terem de olhar a gente...”

Resíduos certamente das experiências de Rosa como médico de roça, misturando aqui a epifania desumana da doença e o amor entrançado ao sofrimento e à humilhação (“Pra que é que há de haver mulher no mundo, meu Deus?!”).

Droga, amor, doença, Natureza, tesão, sezão:

“Disse que a maleita era uma mulher de muita lindeza, que morava de-noite nesses brejos, e na hora da gente tremer era quem vinha... e ninguém não via que era ela quem estava mesmo beijando a gente... (...)  O começo do acesso é bom, é gostoso: é a única coisa boa que a vida ainda tem. (...) – Mas, meu Deus, como isto é bonito! Que lugar bonito pra gente deitar no chão e se acabar!... / É o mato, todo enfeitado, tremendo também com a sezão.”

Ao fim e ao cabo, para um jeca-tatu no fim da vida e sofrendo de dor-de-corno, não existe muita distinção entre os infernos da Natureza e os paraísos artificiais.








segunda-feira, 14 de novembro de 2016

4179) As duas pontas do Tempo (14.11.2016)



Falei dias atrás sobre os paradoxos temporais, aquelas histórias de Viagem no Tempo em que o viajante faz alguma coisa (matar o próprio avô, por exemplo) que o impossibilita de nascer, de existir, e consequentemente de fazer a viagem onde praticou essa ação, gerando um loop contraditório, onde a conta nunca fecha.

Tem outro tipo de situação nessas histórias que não consiste num paradoxo, mas num momento de revelação ou de epifania. É quando o Viajante no Tempo se depara com um objeto ou uma cena que diz respeito diretamente ao mundo de onde veio, produzindo uma sensação mista de iluminação e de estranheza.

O filme Em algum lugar no passado (Somewhere in Time, 1980, de Jeannot Szwarc, baseado num romance de Richard Matheson) conta a história de um homem que se apaixona pela fotografia de uma atriz, tirada em 1912. O rosto lindo dela o encanta, mas principalmente o seu sorriso e o seu olhar, meio de lado, com uma expressão indefinível de ternura.

Ele dá um jeito de viajar para o passado, numa espécie de projeção mental, sem o uso de uma máquina do tempo. Chegando lá, encontra a atriz, declara-se a ela – o que a princípio a assusta – mas aos poucos vai se aproximando, conquistando sua confiança.

E então acontece uma cena em que a atriz vai posar para uma foto, e ele está em sua companhia. Afastando-se um pouco, ele espera que ela cumpra aquele compromisso profissional rotineiro, mas no momento em que a foto vai ser tirada ela olha de lado e o avista novamente. Então ela sorri, e a foto é tirada. É a foto pela qual ele se apaixonou. Ele se apaixonou por aquele olhar, aquele sorriso – e os dois eram dirigidos a ele.

É uma imagem delicada e significativa, e ilustra bem um aspecto dos “paradoxos temporais”, comuns nas histórias de viagem no tempo. Existe o chamado Paradoxo do Avô (um indivíduo volta no tempo e mata o próprio avô – mas nesse caso ele não teria nascido, etc.), que eu classifico como um “paradoxo negativo”: uma viagem ao passado que anula a sua própria possibilidade de acontecer.

No caso de Somewhere in Time, ocorre o contrário: um “paradoxo positivo”, em que certos fatos do passado aconteceram somente porque alguém do futuro  viajou no tempo e desencadeou os acontecimentos.

Histórias de viagens temporais mostram muitas dessas cenas de reencontros ou de reconhecimentos, em que o Viajante no Tempo se depara (em geral inesperadamente) com alguma coisa que lhe era familiar no futuro de onde veio, que de certa forma desencadeou sua viagem.

No romance de Connie Willis Doomsday Book (1992), a historiadora Kivrin Engle, de Oxford, viaja no Tempo até o século 14 para estudar o mundo medieval. Depois de alguns anos estudando-o em bibliotecas, ela decide (porque o ano em que vive é 2050, onde já existe a Máquina do Tempo) fazer sua pesquisa de campo.

Acontece que Kivrin vai parar por acidente na época da Peste Negra (1348) e daí em diante tudo vira uma aventura meio dark, cheia de perigos e de ocorrências trágicas. Kivrin não corre perigo (ela tomou todas as vacinas existentes em 2050), mas faz o possível para proteger o que eles chamam de contemps, os contemporâneos, as pessoas da época visitada.

Então acontece esta cena curta mas significativa. A certa altura, um mensageiro chega à casa onde ela está hospedada, e que já foi atingida pela peste. Ele traz uma mensagem do bispo local, avisando os moradores sobre a peste – um documento histórico:

O garoto tirou um rolo de pergaminho da sacola, e o atirou aos pés de Roche.
Roche abaixou-se e o apanhou na laje do piso, e o desenrolou.
- O que diz a mensagem? – perguntou ele ao menino, e Kivrin pensou: claro, ele não sabe ler.
- Não sei – disse o menino. – É do bispo de Bath, e ele mandou entregá-la em todas as paróquias.
- Quer que eu leia? – perguntou Kivrin.
- Talvez seja sobre o nosso amo – disse Roche. – Talvez ele esteja avisando que vai se atrasar.
- Sim – disse Kivrin, tomando a mensagem das mãos dele, mas sabia que não era.
Estava escrita em latim, numa caligrafia tão rebuscada que ficava difícil de ler, mas isso não tinha importância. Ela já lera a mensagem antes, na biblioteca Bodleian.

São detalhes assim que fazem a FC produzir em certo tipo de cientista aquilo que o pessoal chama às vezes de “um frisson”, um arrepio de emoção.

Eu tenho 11% de historiador em mim (quando fui morar na Bahia pensei em cursar História na UFBA, no campus de São Lázaro).  Duvido que um historiador de verdade não se emocione com esse momento em que uma personagem volta 700 anos no passado e de repente chega-lhe às mãos, novinho em folha, com a tinta quase úmida, um documento que ela manuseou, empoeirado, quase se esfarelando, numa biblioteca. São duas pontas do Tempo que se tocam.

É como a emoção de Robinson Crusoé ao ver, na areia da praia, a pegada de Sexta-Feira.







quinta-feira, 10 de novembro de 2016

4178) Os subterrâneos do Nobel (10.11.2016)



Minha percepção da natureza do Prêmio Nobel foi contaminada para sempre pela leitura de um interessante livro de Irving Wallace, The Writing of One Novel (1968). Nele, Wallace rememora, vinte anos depois, todo o seu trabalho de vários anos no romance The Prize (1962), um thriller policial tendo o Nobel como pano de fundo, que foi filmado depois por Mark Robson, com Paul Newman no papel principal.


A idéia para o romance veio quando Wallace estava na Suécia, em 1946, fazendo reportagens para revistas dos EUA. Ocorreu-lhe entrevistar um figurão científico sueco que continuava a ser um defensor público de Hitler, mesmo após a derrota e a morte deste. No curso da entrevista, o dr. Sven Hedin revelou ser um dos jurados permanentes do Prêmio Nobel.  O jornalista sentiu cheiro de assunto, pressionou o professor, e extraiu alguns depoimentos tão francos que chegam perto da ingenuidade.  O dr. Hedin (hidrógrafo, cartógrafo, autor de livros populares de viagens pelo mundo), afirmou fazer parte dos comitês julgadores de Química, Física e Literatura.

Wallace perguntou-lhe por que alguns autores de grande estatura não tinham ganho o Prêmio Nobel. Hedin perguntou quais. Wallace sugeriu o nome de Máximo Górki, e ele disse: “Ah, ele morreu muito cedo. O nome dele era cogitado de vez em quando. Cedo ou tarde acabaria ganhando.” Wallace perguntou por H. G. Wells. A resposta: “Um autor menor, muito jornalístico”.  E Somerset Maugham, então no auge do sucesso?  “Muito popular, sem maior expressão”. E o que dizia o doutor sobre James Joyce? O dr. Hedin pareceu perplexo: “James o quê?”.

Segundo Irving Wallace, o prêmio ficava às vezes dependente do entusiasmo de um único jurado, como foi o caso de Hjalmar Gullberg, que traduziu para o sueco toda a poesia de Gabriela Mistral e lutou por ela até conseguir o prêmio. Ou no sentido oposto, como na campanha do dr. Carl David Wirsen contra Tolstoi, Ibsen e Strindberg, que ele detestava por diferentes razões.

No campo da ciência, Wallace confirma que no Prêmio Nobel de Física concedido a Einstein em 1921 a Academia faz menção específica à descoberta do efeito foto-elétrico, sem citar a Teoria da Relatividade, com receio de que esta viesse a ser desmentida. A impressão de espanto e de incerteza diante da nova cosmologia proposta era muito forte.

Tudo isto, é claro, são fofocas de 1946, que Wallace pode ter usado para dar verossimilhança ao seu livro de espionagem. Não importa. Qualquer prêmio concedido por um júri é uma tentativa de transformar o qualitativo em quantitativo. É como a diferença entre esportes olímpicos. Nos esportes como basquete, futebol, vôlei, há uma contagem de pontos obtidos de forma inequívoca e quem faz mais desses pontos ganha. Em outros, como a ginástica, a contagem é subjetiva, mas fica distribuída por um corpo de jurados.

Isso faz com que toda reunião de prêmio artístico (inclusive festivais de música, cinema, teatro) tenha um pouco aquele clima de “Doze Homens e Uma Sentença”, discussões acaloradas entre jurados, com pressões e concessões de todos os lados, até que o resultado final é proclamado como se fosse o resultado de uma decisão unânime. Uma tentativa de criar um equilíbrio dinâmico de doze subjetividades, para valer como uma forma de objetividade.