quinta-feira, 5 de novembro de 2015

3964) Caminhos do cinema (6.11.2015)



Muitos anos atrás, Michelangelo Antonioni observava que cinema e televisão estavam ficando cada vez mais parecidos. As salas e telas de cinema ficavam cada vez menores, e as telas da TV (e os correspondentes aparatos sonoros) cada vez maiores. 

Note-se que ele disse isso em 1985, muito antes das nossas TVs digitais de não-sei-quantas polegadas, dos nossos poderosos “home-theatres”, das nossas salinhas especiais para 60 espectadores. Isso era num tempo em que um cinema mediano tinha mil lugares.

A essência do cinema (seja lá o que isto for) muda a cada ano, a cada década. A experiência cinematográfica da minha adolescência não tem nada a ver com a da adolescência dos meus filhos. 

Lumière disse que o cinema era uma invenção sem futuro; Thomas Edison achou que o disco fonográfico iria servir para o estudo de idiomas. Inventores, em geral, estão examinando sua invenção quase tocando-a com a ponta do nariz, e não fazem a menor idéia das consequências que aquilo pode ter.

Meio século atrás, nos EUA, filmes estreavam em circuitos secundários, periféricos, e os produtores iam avaliando a reação do público e direcionando aquele título rumo aos mercadores mais promissores. Hoje, vigora a cultura do “first week-end”: toda uma verba gigantesca, e a logística correspondente, se volta para o fim-de-semana em que o filme será exibido simultaneamente em 3 mil ou 4 mil salas, no país inteiro. 

É um super investimento de risco. Um filme que não vai bem nesses três dias de lançamento raramente se recupera. É tudo ou nada. Em breve inventarão “cinemas sensíveis”, capazes de aferir a resposta emocional do público ao longo da sessão e editar o filme (suprimindo ou acrescentando cenas específicas) durante a própria projeção.

Nos subúrbios do império, a coisa é diferente. Em breve teremos em nossos smartphones não apenas os aplicativos de câmera mas também os de ilha de edição. Será possível filmar e editar o filme no celular, e depois distribuí-lo via WhatsApp, email, inbox do Facebook, o escambau. Curta-metragens serão distribuídos quase como spam, para milhares de telefones ao mesmo tempo.

A cultura do “mash-up”, da reedição e remontagem de material alheio pré-existente, vai se difundir cada vez mais. O uso de webcam e de transmissões ao vivo tipo “Mídia Ninja” vai fornecer um gigantesco copião em crescimento constante e acelerado; por trás dos que filmam virão os que editam, e esse gigantesco acervo de material produzirá filmes coletivos de todo tipo, desde cinema-verdade até colagem-dadaísta. 

"Se for algo já presente na cultura, for tecnicamente possível e não for economicamente inviável, provavelmente irá acontecer."




3963) As mulheres na FC (5.11.2015)




("James Tiptree, Jr.")

Em suas entrevistas, Ursula K. Le Guin diz envergonhar-se de um momento no início da carreira quando, para publicar em revistas de FC quase exclusivamente masculinas, usou o nome “U. K. LeGuin” para que os leitores pensassem que ela era um homem, e lessem seus contos. A FC norte-americana foi sempre um domínio de nerds anglo-saxões; eu mesmo me surpreendo até hoje com o fato de alguém como Isaac Asimov ter feito sucesso sem precisar de pseudônimo.

Ursula não foi a única, coitada, a usar esse joão-sem-braço das iniciais para esconder seu gênero. Lembro de C. L. Moore (1911-1987), autora das aventuras espaciais de Northwest Smith, entre as quais o clássico “Shambleau” (1933). Esposa e parceira de Henry Kuttner, Catherine L. Moore disfarçou sua identidade feminina através de várias colaborações com o marido e pseudônimos como “Lawrence O’Donnell” e “Lewis Padgett”. 

Algo parecido se deu com a carreira de Leigh Brackett (1915-1978), a formidável roteirista de filmes como “Rio Bravo” (1958), “The Long Goodbye” (1973) e “O Império Contra-Ataca” (1980). O prenome unissex certamente a ajudou em sua carreira literária. Rola uma história de que Howard Hawks leu um livro dela e mandou contratá-la para trabalhar no roteiro de “The Big Sleep” (1946, adaptando Raymond Chandler), pensando que se tratava de um homem.

O caso mais notório é o de Alice Sheldon (1915-1987), que usou o pseudônimo de “James Tiptree Jr.” para entrar no mercado de FC e conseguiu manter esse segredo durante dez anos. Durante esse período alguns críticos notaram um certo viés feminino na ideologia de seus contos, que produziram um tremendo impacto entre os leitores, sendo ainda hoje um exemplo de tratamento diferenciado das questões de gênero na FC.  Em 1977 Gardner Dozois publicou uma extensa análise de sua obra, ainda acreditando tratar-se de um homem. Talvez o disfarce tenha sido necessário à autora por questões pessoais: ela foi agente da CIA entre 1952-1955, e depois teve uma carreira acadêmica (era doutora em Psicologia Experimental) que preferia manter à parte de sua atividade literária.

Exemplos como estes (certamente há outros) são uma ilustração a mais das dificuldades que uma mulher encontra ao disputar vaga num mercado onde os homens predominam, não somente como leitores, mas também como editores, ou seja, as pessoas que decidem o que vai ser publicado. Hoje, mais de 40 anos depois, nomes disfarçados dessa forma são desnecessários, mas as recentes polêmicas envolvendo o Prêmio Hugo (onde se debateu ferozmente a legitimidade de uma FC escrita por “minorias”) mostra que a briga continua.



quarta-feira, 4 de novembro de 2015

3962) Ursula Le Guin (4.1.2015)



Recentemente os leitores e críticos andaram comemorando os 86 anos de Ursula K. LeGuin, para muita gente “a maior escritora de FC de todos os tempos”. Esses títulos são meio bombásticos e pomposos, não fazem muito o meu estilo, mas se eu tivesse que escolher apenas uma autora mulher no gênero escolheria ela, que escreveu Os Despossuídos (1974), A Mão Esquerda da Escuridão (1969), O Nome do Mundo é Floresta (1976), The Lathe of Heaven (1971) – cada qual melhor do que o outro, além de dezenas de contos brilhantes e da famosa série de fantasia (desta não li muita coisa) de Terramar (“Earthsea”, vários volumes).

LeGuin é uma pessoa tranquila e sensata (tenho a excelente tradução inglesa dela para o Tao Te King – o Livro do Caminho Perfeito de Lao Tsé), uma argumentadora implacável, uma feminista ponderada e cheia de argumentos. Filha de um antropólogo, ela trouxe para a FC da época em que estreou um conhecimento refinado de ciências sociais e psicologia, o que deu aos seus livros uma textura humana ausente de grande parte da FC da época, mesmo a de melhor qualidade.

Le Guin é um dos grandes nomes de uma linha de FC chamada justamente de “humanista”, por ser uma literatura onde a tecnologia está presente de forma crucial, mas em segundo plano. O primeiro plano é ocupado pelos conflitos e aventuras de indivíduos em situações sociais muito claras, e muitas vezes com profundas discussões e questionamentos sobre questões de gênero, raça, ideologia, classe social, etc. Seria (para usar a expressão brincalhona atual) uma “ficção científica de Humanas”, e envolve autores como ela, Kim Stanley Robinson, Frank Herbert, Ray Bradbury, Samuel R. Delany, Walter M Miller e muitos outros.

Sem querer insistir demais nessa divisão (pois na verdade em literatura tudo se mistura, o humano e o científico nunca estão ausentes de qualquer obra de FC), é importante ter em mente que muitos leitores (falo de leitores adultos, maduros, com conhecimento razoável de literatura mas zero em FC) desgostam do gênero apenas porque pegaram para ler obras famosas e elogiadas mas que não correspondem ao seu temperamento. Um leitor fanático por tecnologia e especulações científicas pode achar um livro de Kim S. Robinson sem graça, e o mesmo pode ocorrer com um leitor de perfil mais humanista que se depare com uma obra de Arthur C. Clarke. Em todo caso, a obra de Le Guin, ainda lúcida, ativa e escrevente aos 86 anos, tem espessura e substância para merecer o respeito de qualquer leitor que se interesse de fato não só pelo destino da humanidade no cosmos mas pelo destino de um grupo de pessoas dentro da casa onde moram.




segunda-feira, 2 de novembro de 2015

3961) Leandro High Tech (3.11.2015)



Dias atrás participei da VI Feira Literária de Boqueirão (Flibo), o principal evento literário da Paraíba, realizado à força de idealismo e de trabalho voluntário numa cidade pequena e sem muitos recursos. Um exemplo para cidades maiores, no Brasil inteiro, que vivem jogando dinheiro fora e queixando-se de que não têm verbas para a cultura. Dividi uma mesa com Astier Basílio, o qual apresentou um notável trabalho de pesquisa sobre a presença de Leandro Gomes de Barros (o homenageado da VI Flibo) na imprensa do seu tempo. Fiquei surpreendido ao ver como Leandro (1865-1918) era uma figura conhecida no Recife da época, publicando poemas nos jornais e sendo citado nas colunas como um tipo popular, pitoresco, de temperamento satírico e bem-humorado, ainda que (segundo os jornalistas) sua poesia fosse rude e tosca, sem obedecer aos “padrões literários” da época. Pior para os padrões da época, porque ninguém os conhece hoje, e a poesia de Leandro está mais viva do que nunca.

Leandro foi um exemplo notável do encontro daquilo que os escritores da ficção científica cyberpunk usaram como definição de seu gênero: “High tech + low life”. Alta tecnologia e baixa classe social. O computador nas mãos de um favelado. Um gravador nas mãos de um índio. Um piano europeu nas mãos de um negro de Nova Orleans. Um microfone e uma caixa de som nas mãos de um cantor de hip-hop do Harlem. As rádios e gravadoras de discos do Rio de Janeiro nas mãos de um sanfoneiro do Exu. A confluência inevitável entre a cultura dos despossuídos e os produtos da transbordante cornucópia de uma tecnologia que produz maravilha atrás de maravilha e as derrama no mercado sem atentar para suas possíveis consequências, e até mesmo sem meios para impedi-las. (Veja-se como a cópia digital afundou a indústria fonográfica.)

No caso de Leandro, foi o encontro das modestas prensas tipográficas manuais, tornadas obsoletas pela invenção do linotipo, com a poesia oral que se agigantou a partir da Serra do Teixeira por volta de 1850 – uma poesia composta no papel mas transmitida de boca em boca, de memória em memória, ou nos famosos “versos de traslado”, copiados com capricho em folhas de papel almaço por pessoas de boa caligrafia.

Leandro cresceu nessa cultura, e ao se transferir para o Recife usou as prensas tipográficas agora obsoletas (mas que para ele eram “alta tecnologia”) para criar o cordel nordestino ao modelo do cordel português, mas já um cordel distinto em temática, em ambientação, em fraseado, em sonoridade. Cada vez que uma tecnologia nova chega às mãos do Povo, os resultados são imprevisíveis, inevitáveis e irreversíveis. Viva Leandro!



domingo, 1 de novembro de 2015

3960) Contracapa de podcast (1.11.2015)

(desenhos de Guillermo del Toro)

&  a vida é muito curta para que nela possa caber uma missão cumprida  

&  depois que a gente aprende a desligar a TV, começa o curso de aprender a não ligar de novo  

&  o corpo é o cafetão da mente, e bota a pobrezinha em cada roubada  

&  pra que tanto livro de colorir, se de acordo com a gramática eu não coloro  

&  a verdade é que tem certos autógrafos que a gente só pede para ser gentil  

&  o governo produz marginais para ter um pretexto para produzir mais polícia  

&  um dia de um velho vale um mês de um jovem  

&  a vida da gente deveria ser tão cheia de realizações que a morte fosse recebida com alívio  

&  o artista precisa ter em mente o tempo todo que está sendo observado por 10% de especialistas e 90% de leigos absolutos  

&  tudo que você escuta significa o mundo tentando lhe dizer alguma coisa  

&  a cidade vive cheia de luzes que só iluminam a si mesmas  

&  mais ensina uma queda do que dez conselhos 

&  a arte de bombardear cidades para reinar sobre ruínas  

&  o transatlântico afunda enquanto a tripulação se engalfinha e a primeira classe saracoteia no convés  

&  um planeta que tivesse várias luas desenvolveria facilmente esquemas complexos de presságios e superstições  

&  estou com uma casa pronta, mas só quero colocá-la num lugar que pareça um Cariri à beira-mar  

&  um vingador mascarado que executa banqueiros com uma bala de ouro  

&  o inferno dos tímidos é uma festa num apartamento pequeno cheio de gente desconhecida  

&  ela é daquele tipo de mulher que somente homem inteligente acha bonita  

&  palavras escritas servem para formatar a mente de quem as decifra e interpreta  

&  meus antepassados talvez se envergonhassem de mim, mas mesmo assim me orgulho deles  

&  em muitos guarda-bagagens deve haver malas não-reclamadas, contendo bombas que falharam sem explodir  

&  um sebo onde livros aleatórios estariam marcados: “este é de graça, pode levar ao caixa”  

&  romance qualquer um escreve, quero ver é inventar um provérbio que fique  

&  não há coisa mais patética do que um patife falando de ética  

&  todas as vezes que botei a mão no fogo por alguém nem o fogo escapou  

&  a melhor coisa da praia é olhar para ela de dentro do ar condicionado  

&  o Facebook é uma torre-de-marfim cheia de altofalantes  

&  um paraquedista caindo em parafuso e se encravando chão adentro  

&  toda xenofobia é seletiva  

&  um escritor cuida das palavras da língua do mesmo jeito que um caixa de banco cuida do dinheiro alheio  

&  estudos comprovam que o mundo está cheio de indivíduos que sobrevivem ao próprio caráter  

&  quando adormecemos a mente joga a âncora no fundo de si mesma e começa a captar tremores   &




sábado, 31 de outubro de 2015

3959) A lei do linchamento (31.10.2015)



Bob Dylan falava sobre os cartões-postais com fotos de linchamentos sendo postos à venda, e virando itens de colecionadores. Naquele tempo, principalmente lá no Sul dos EUA, linchavam-se negros e migrantes, que depois eram fotografados em encenações grotescas. Outras fotos são meros retratos crus dos corpos pendentes, como a “estranha fruta” cantada por Nina Simone. E as pessoas colecionavam isso. Por que? Bem, primeiro porque gostavam, segundo porque não era proibido, e terceiro porque colecionador é alguém que tem que colecionar alguma coisa, então eles escolheram aquilo.

“As pessoas passaram a achar que têm mais direitos do que realmente têm,” disse José de Souza Martins (“Revista e”, Sesc-SP); só que “a relação social, no dia a dia, é uma negociação permanente.”  Repito que nada no mundo se compara à intensidade com que um rico exerce seus direitos e um pobre os seus deveres. E o direito de vida ou morte é a distopização final.

Tremam, míseros mortais, diante de qualquer grupo de pessoas com certeza absoluta de uma total impunidade e do mais inviolável segredo! O mundo está cheio delas. Existem, sim, e agem como se fossem a mais mefistofélica Camorra dos Bórgias.  De situações assim estão cheios os techno-thrillers cyber-conspiracionistas. Elites intocáveis de homens de terno preto decolando em helicópteros e falando em cifras. Os superóis do lumpen. A mitologia do século corporativo criou tais poderes, e a impenitência desses poderes, para que um bilhão de zés-ninguém se catapultem como super-homens, e tomara que algum saiba aterrissar.

“O linchamento,” diz o professor da USP, “se desenrola em um quadro mental de absoluta loucura, é uma loucura súbita. (...) As pessoas não sabem o que estão fazendo, e não é que elas estejam fingindo.”  Isso deve valer para esses linchamentos brutais de rua, uma pessoa sendo atacada por um grupo, e os dois acompanhados por uma multidão. Às vezes se verifica, depois, que foi tudo meio por acaso, um ladrãozete passou correndo e deu azar de ser pegado, somente isso. “Olhe, doutor, minha vida pra mim é tudo, mas eu sei que pra sociedade a minha vida não vale nada, então vida nenhuma pode valer mais do que a minha,” disse um que por enquanto escapou.

Já escrevi aqui sobre os postais do linchamento (aqui: http://tinyurl.com/kcfhpop). Em “Desolation Row”, “... os postais de linchamento estão à venda, o salão de beleza está cheio de marujos, e o circo chegou na cidade”. O circo vislumbrado por Dylan nessas livres-associações não é o de Chaplin nem o de Fellini, pode ser algo como o Circo do Dr. Lao, que presenteava tanto a vida quanto a morte aos seus espectadores.






quinta-feira, 29 de outubro de 2015

3958) A ditadura do chiclete (30.10.2015)



George Orwell previu a TV onipresente e vigilante; Aldous Huxley previu as drogas recreativas. Disse ele que mais importante do que praticar violências contra a população é dar-lhe pão e circo. Hoje, as ditaduras eletrônicas cobram caro pelo pão e pelo circo, e todo mundo paga feliz. A publicidade vive a bradar: “Não se reprima! O mundo lhe deve todos os seus sonhos! Você está aqui para satisfazer seus desejos, e seus desejos são estes produtos que oferecemos aqui! Quem tentar impedir você de se divertir é um fascista.”  

Esta é a linguagem da publicidade, idioma preferencial do capitalismo de consumo. O desejo é o desejo de possuir alguma coisa que está à venda. A felicidade está mais no ato de comprar do que no de consumir, porque é o primeiro que é estimulado, e assim que ele se cumpre percebemos (meio inconscientemente) que o segundo não nos era tão indispensável assim. Na verdade eu não queria ler esse livro, queria comprá-lo.

O discurso publicitário pós-anos 1960, pós-contracultura, apoderou-se de todas essas senhas dirigidas à juventude: desejo, vontade, aventura, afirmação de independência, de liberdade, individualidade. “Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada”. 

Como previu Huxley, as ditaduras do Super Ego repressor foram substituídas no Ocidente pelas ditaduras do Ego gratificado. O chiclete é mais eficaz do que o chicote. Em vez de reprimir, melhor manipular e direcionar os impulsos da multidão. Dar aos prisioneiros conflitos localizados e estanques, onde possam descarregar suas energias: o esporte, as eleições. A alternância de vitórias e derrotas que não mudam nada serve para dar a sensação de que “agora vai ser diferente”.

O próximo estágio é a participação eletrônica, interativa (vide as votações do “Big Brother”), que produz uma sensação de consulta democrática, “aqui quem decide é o povo”. Além de ser uma boa fonte de renda repartida entre a TV e as telefônicas, esse sistema serve de termômetro de opinião que ajuda o sistema a fazer correções de rumo, e um treinamento para que no futuro questões políticas como plebiscitos de mudança na Constituição venham a ser realizadas dessa forma (aposto como o Legislativo ainda vai permitir isso um dia).

A ditadura do chiclete e a democracia eletrônica se baseiam na infantilização do público e dos meios de comunicação, na brutalização dos conteúdos (para efeito de choque e catarse) e na perpétua reciclagem de preconceitos contraditórios, que nunca se resolvem porque são construídos exatamente para promoverem uma queima contínua de energia psíquica que se dirigida de outra forma poderia colocar em risco o sistema.






quarta-feira, 28 de outubro de 2015

3957) Mosaico Andaluz (29.10.2015)



Ele comprou o troço pela Internet numa madrugada, durante o paraíso da entressafra, aquele período mágico em que um dinheiro de um serviço ainda não acabou e o trabalho do próximo não começou ainda. Na terceira cerveja descobriu dez saites novos de animações pornô, na quarta baixou a obra completa de um trumpetista egípcio elogiado por um filósofo romeno, na quinta torrou 21 dólares e 99, frete incluso, no tal do puzlo.

Essa era a grafia proposta por ele no ensaio que estava escrevendo sobre os jogos de quebra-cabeças com paisagens, etc., daqueles grandes, tipo mil peças. O ensaio era erudito mas despretensioso, misturava citações de Georges Perec, Robert Altman, Orson Welles. O pacote chegou pelo correio um mês depois e ele já tinha esquecido. Uma caixa com rótulos cheios de ficha técnica, nenhuma ilustração, e dentro um saco enorme com pecinhas soltas de um plástico maciço, fosco, agradável às pontas dos dedos.

Quem não tem uma mesa imensa pode ter duas mesas de ping-pong numa ex-garagem, que não são usadas há anos e por isso podem ser arrastadas para o centro, sob a luz, forradas com um tecido escuro, para que ali comece a ser encaixada a paisagem. Ele começou a separar por cor, depois foi tateando, descobrindo, juntando umas vinte pecinhas para mostrar uma estátua com a garganta mordida por um macaco, ou um sol oblíquo revelando um rosto numa parede de barro.

Usou como referência o horizonte ao fundo. A separação entre o verde de um e o azul do outro parecia aquelas telas luminosas de Sérgio Lucena onde céu e mar formam um tecido de uma só luz inconsútil. Dali ele situou as bordas, encheu-as de imagens, resolveu essa moldura retangular e veio compondo o quadro de fora para dentro, rumo ao centro.

Ao chegar no meio, descobriu que restava um buraco – e a última peça, que era bem maior do que esse espaço. A última não se encaixava. Levou semanas, meses, anos? No dia em que varreu tudo ao chão com fúria ele teve a idéia. Recolocou e forrou as mesas, pôs no centro do espaço escuro essa última peça, sozinha, soberana. Percebeu que partindo dela como início havia encaixe, sim, desde que as demais peças em volta fossem inseridas numa ordem específica.

E daí o quebra-cabeças foi se rearmando. De dentro para fora. As imagens pareciam as mesmas e outras. Sáurios, arranha-céus, samovares, frutas, mecanismos infatigáveis, estelas dormindo na jângal. E quando colocou a última peça, ele entendeu que um quebra-cabeças que começa a partir do próprio centro não tem a menor necessidade de ter a forma final de um retângulo, ou mesmo qualquer forma que seja.



terça-feira, 27 de outubro de 2015

3956) Traduzir o poema (28.10.2015)


(poema de Mallarmé)

No Suplemento Literário Minas Gerais sobre tradução (maio), diversos tradutores fazem avaliações sobre a literatura traduzida entre nós: Ivo Barroso, Cláudio Willer, Augusto de Campos, Denise Bottmann e Guilherme Gontijo, entre outros. Tradução é aquela atividade onde geralmente se perde, na melhor das hipóteses se empata, e é proibido ganhar (=ficar melhor que o original).

A tradução de poesia tem dificuldades específicas, e não apenas pelo fato de que se pressupõe ser a linguagem poética mais concentrada, mais rica de nuances, etc. Grande parte da produção poética em qualquer cultura é rimada e metrificada. Obedecer de forma estrita à rima e à métrica do original em outro idioma, e além disso manter o sentido dos versos, é uma tarefa inglória. Rimas exatas poderiam ceder lugar a rimas toantes, por exemplo; o verso poderia variar minimamente de extensão.

No SLMG, o tradutor Álvaro Faleiros diz, sobre isso, que nas traduções poéticas brasileiras há uma “busca de estrutura isomórfica”, ou seja, de um poema que reproduza com rigor o conjunto de efeitos do original. Mas ele diz:

“O ritmo do poema não se devia apenas à distribuição acentual do verso, mas (...) a sintaxe, o léxico e o encadeamento das idéias eram tão determinantes quanto a rima e a métrica. Desde então, tenho procurado inverter a famosa máxima de Haroldo de Campos, para quem a tradução deve ser isomórfica (ou paramórfica) e o sentido deve ser uma ‘baliza demarcatória’. No jogo de perdas e ganhos da tradução, estou tentando tratar os aspectos formais como ‘baliza demarcatória’ e fazer da sintaxe e do encadeamento de imagens o meu ‘topo’”.

São opções opostas, ma não contraditórias; é só uma diferença de ênfase. Alguns poemas têm uma estrutura tão caprichada e original que traduzi-los sem reproduzi-las é deformar o poema: penso, p. ex., em “The Raven” de Poe ou “L’Aura Amara” de Arnaut Daniel. Em outros poemas, contudo, eu preferiria ter a liberdade de alternar versos com 9, 10, 11 linhas ou mudar a natureza e posição das rimas, desde que pudesse reproduzir com mais fidelidade o texto em si, as frases, as imagens, o discurso poético. Produzir uma estrutura isomórfica ao original e ainda manter-lhe o sentido não é impossível (muitos tradutores o fazem), mas equivale a andar numa corda-bamba jogando malabares. É uma façanha para tradutores muito cultos e experimentados. Colocar tão alto o sarrafo, como prova a ser ultrapassada todas as vezes, não pode ser regra obrigatória. Esse modelo é um teto de perfeição a ser alcançado, não é uma façanha a se exigir de qualquer um, e esse esforço nem sempre faz justiça ao original.



segunda-feira, 26 de outubro de 2015

3955) Borges nos EUA (27.10.2015)




Muita gente não sabe, mas a primeira publicação de Jorge Luis Borges nos Estados Unidos não foi numa revista acadêmica, e sim no popularíssimo (ainda que sofisticado, no gênero) Mistério Magazine de Ellery Queen, revista conhecida pelo público de literatura policial no Brasil. Não achei nenhuma publicação dele anterior a esta, e olha que procuro há tempos.

O texto foi “The Garden of Forking Paths” (nosso “O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam”), um dos melhores contos borgianos. Um conto que poderia figurar numa revista de FC (pela sua vertiginosa teoria dos universos paralelos) mas que também cabe numa revista policial, por descrever um crime cujo propósito o leitor só descobre no último parágrafo. Essa publicação deve ter alegrado o 49o. aniversário do argentino, pois ocorreu no mês de agosto de 1948, quando ele completou essa idade.

Tudo se deveu a Anthony Boucher, grande amigo de Ellery Queen. Boucher não apenas traduziu o conto para o inglês mas também (diz a introdução) “persuadiu o autor a submetê-lo ao Terceiro Concurso Anual” da revista. O conto de Borges apareceu num “Número com Todas as Nações”, ao lado de autores como Chekhov, Simenon, Ferenc Molnar, Karel Capek, Gabrielle d’Annunzio, Cornell Woolrich e outros.


Na introdução, Queen chama o conto de “uma obra-prima em miniatura”, e diz: “Señor [sic] Borges é uma importante figura literária argentina: poeta, crítico, ensaísta e antologista. Em toda sua obra, especialmente em sua ficção, o autor usa o tema do labirinto – é uma monomania persistente, que recorre em sutis variações.”

E adiante comenta: “Outra mania sua: ele tem um apego fora do comum pela erudição fictícia. Por exemplo: é capaz de inventar um autor ou uma escola literária completamente fictícia e em seguida escrever uma dissertação deliciosamente erudita sobre a esotérica importância dessa figura ou esse movimento imaginário; mas a fantasia e a sátira que ele sabe urdir às suas opiniões críticas não são sempre destituídas de significado factual.”

Ele cita, claro, a referência direta feita por Borges (sem citar o autor) ao Mistério dos Irmãos Siameses do próprio Queen (no conto “Exame da Obra de Herbert Quain”, nome que já lembra o de Ellery Queen). Borges admitia, em seus artigos de jornal, ser um leitor fiel do autor norte-americano. E este não foi o único conto dele a sair no EQMM. Também tenho aqui a edição brasileira de dezembro de 1962, com “Os dois reis e os dois labirintos”, certamente embarcando na súbita fama do argentino depois de receber em 1961 o Prêmio Internacional Formentor, quando deslanchou de fato a sua celebridade literária mundial.