terça-feira, 20 de janeiro de 2015

3715) "No Sertão onde eu vivia" (20.1.2015)



Diz-se que a crônica é um gênero literário tipicamente brasileiro e sempre são invocados os nomes de Rubem Braga, Fernando Sabino, Luís Fernando Verissimo, além de outros, hoje menos lidos, como Carlos Eduardo Novaes ou Henrique Pongetti.  O que nem sempre se comenta é que dentro do gênero crônica existem subgêneros, e um deles é a crônica rural, que se confunde com a anedota e o “cáuso”.

No Sertão Onde Eu Vivia de Zelito Nunes (Recife, editora do autor, 2014) é um bom exemplo da crônica que, ao invés de descrever os mil e um aspectos da rica e multiforme vida urbana descreve os mil e um aspectos da rica e multiforme vida rural.  Digo assim para combater o conceito equivocado de que a vida urbana é de uma multiplicidade inesgotável de tipos humanos, interações sociais, formas de comportamento, demonstrações de humor, inteligência, presença de espírito, etc., e que a vida rural é uma pasmaceira uniforme ao som de mugidos de gado.

Ledo engano. Sem falar em Leonardo Mota etc., aqui mesmo na Paraíba tivemos o inesgotável José Cavalcanti e seus livrinhos recheados de tipos populares e linguagem pitoresca. A vida nos sítios, fazendas e vilarejos do interior pode, sim, ser tão rica e variada quanto a vida que fervilha em torno do Mercado Modelo ou na Praia de Copacabana. Precisa apenas de gente com olhos e ouvidos atentos, excelente memória, e capacidade para colocar no papel esses episódios que, também no interior, mal cabem no estreito espaço das 24 horas de um dia.

Zelito Nunes, nascido em Monteiro e radicado no Recife, tem uma série de coletâneas de crônicas nessa veia (uma delas, Folha de Boldo: Notícias de Cachaceiros, em parceria com Jessier Quirino), retratando a vida do Cariri e do Pajeú.  Seria, mal comparando, a mesma riqueza de tipos (só que no meio rural) que encontramos na Zona Norte carioca da Rua dos Artistas e Transversais de Aldir Blanc. Além dos versos de cantadores que anota há décadas, Zelito Nunes conta histórias de camelôs, fazendeiros, vaqueiros, confusões entre bêbos e donos de bodegas, soldados de polícia, arruaceiros.  Aventuras mirabolantes ou desastradas vividas por gente com um parafuso a menos na cabeça e uma vida mais interessante do que a nossa. Sem falar nas recordações de uma infância vivida na fazenda, como a história da cabra com medo de lanterna elétrica ou o dia em que ele fugiu de casa e ninguém da família percebeu.  São memórias de uma vida rústica e aventurosa, evocada nesta sextilha de Manoel Filó: “Namorar em Mundo Novo / todas as noites eu ia / voltava de madrugada / quando o sono me tangia / molhando a barra da calça / na rama da melancia.”




domingo, 18 de janeiro de 2015

3714) Dicas de literatos (18.1.2015)



(Susan Sontag)

Parece que cada escritor deixa, antes de morrer, um documento em que repassa para as gerações futuras as lições que aprendeu durante a vida. Sou um leitor atento de qualquer matéria que se intitule “Dicas Literárias” ou “Conselhos de um Escritor Profissional”. Não porque imagine descobrir ali a meia dúzia de fórmulas mágicas que irão me tirar dos meus próprios atoleiros: por definição, um atoleiro literário é um lugar de onde só se sai sozinho.  Mas me consola pensar que os lamaçais onde encalho já foram visitados por gente melhor do que eu.

Nem todo conselho de escritor se refere a sintaxe ou estilo.  Um dos mais úteis que conheço é o da desconhecida (para mim) Helen Dunmore: “Um problema num texto geralmente fica mais claro se você faz uma longa caminhada.”  É uma grande verdade, embora estilisticamente confusa, pois ela devia ter dito: “Sua mente fica mais apta a resolver problemas de texto se estiver recebendo a irrigação sanguínea e os hormônios positivos que uma boa caminhada costuma produzir.”  Chico Buarque diz que costuma compor suas letras cantarolando mentalmente enquanto caminha, e a prova é que as letras dele são tão boas quanto as minhas.

Escrever é na verdade uma tarefa complexa, que levou Susan Sontag a dizer que ela é exercida por quatro “pessoinhas” que temos dentro de nós: 1) o maluco ou obcecado; 2) o idiota; 3) o estilista; 4) o crítico. Segundo ela, o maluco fornece o material, o idiota o executa, o estilista fornece o bom gosto e o crítico fornece a inteligência.  Ela chega a aduzir que, na falta do 3 e do 4, mesmos os dois primeiros são capazes de produzir um texto publicável.

Samuel Delany diz: “A boa escrita é clara. A escrita talentosa é energética.  A boa escrita evita os erros. A escrita talentosa faz com que aconteçam coisas na mente do leitor, coisa vívidas, poderosas, coisas que a escrita meramente boa, que se detém nos aspectos de claridade e de lógica, não consegue produzir.” 

Ou seja: não basta a correção, o “seguir o Manual”.  É preciso injetar na escrita uma energia extra, uma descarga além-da-conta de força criativa. Isso não significa, de modo algum, uma superabundância de palavras ou de efeitos. Às vezes, basta uma frase com grande concentração de sentido para produzir um efeito que seria diluído, por um escritor menos hábil, em um parágrafo inteiro de redundâncias. A escrita energética brota muitas vezes de conflitos entre as palavras, de um texto cheio de elementos contraditórios ou inusitados, que faça o leitor pensar, que obrigue o leitor a uma parceria, que produza na mente do leitor um efeito de excitação semelhante ao que ele teria fazendo uma longa caminhada.




sábado, 17 de janeiro de 2015

3713) Revolucionários (17.1.2015)




(ilustração: Pierre-Adrien Sollier)

Eu tenho um amigo meu que é contra a Revolução Francesa.  Seu propósito na vida é provar que aquilo foi um equívoco gigantesco, uma catástrofe.  Está com uns 45 anos e dedica todas as horas vagas (é bancário) ao estudo da RF e à publicação de textos minuciosos, cheios de notas de rodapé, provando por a+b que... O que ele prova?  Não entendi até hoje, porque tudo que sei daquela conflagração aprendi no curso ginasial.  Depois, só me lembrei dela no filme Scaramouche e nos romances do Pimpinela Escarlate.

Nada pode demover Danilo (nome dele) da sua campanha.  Ontem estávamos em turma, tomando cerveja, falando de França e de humorismo, e no primeiro remanso da conversa ele se virou pra mim e disse: “Você já leu A História da Guilhotina, de Kershaw?”.  Eu não sou homem de dar o braço a torcer, e driblei a questão: “Tenho, mas não li ainda.”  Ele agarrou o mote como quem agarra uma bola de beisebol tacada rumo à torcida: “Este é o problema, as pessoas não se informam.  Ficam repetindo clichês feito papagaios, e não vão às fontes primárias.”

Aí entrou no discurso de sempre, que todo revolucionário na verdade só quer derrubar o rei pra sentar no trono, que todas as revoluções terminam do mesmo jeito, Robespierre era um paranóico, Danton um bunda-mole, e que isso que aquilo; nem Lecomte de Lisle escapava, porque para ele a Marselhesa era “um dos poemas mais sanguinolentos e totalitários já escritos”, só se salvava por causa da melodia, e olhe lá, porque o Hino Nacional Brasileiro, visivelmente plagiado dela, a tinha estragado para sempre.

Diga-se, por justiça, que ele também condenava com veemência a Revolução Americana (“Thomas Jefferson era um escravocrata, um demagogo, pior do que Joaquim Nabuco!”), a Revolução Russa (“uma quadrilha de barbudos fedendo a vodka, invadindo os palácios mais bonitos da Europa!”) e a Revolução Mexicana (“essa nem intelectuais teve, era só povo e carnificina”).  Mas a nêmese dela era a Francesa, e todo este relato é para chegar num dos seus axiomas.

Diz Danilo que quem sobe ao Poder pelo sangue só pode ser apeado dele pelo sangue. E que a conquista sangrenta mancha indelevelmente esse Poder, porque o ser humano é como aqueles tigres mansos criados em cativeiro, alimentados com uma chã-de-dentro qualquer, e que quando sentem o cheiro de sangue humano eriçam os bigodes e espetam as orelhas.  Políticos e militares são como tigres, diz ele. Subir ao trono matando desperta neles uma memória primordial de quando nossos tataravôs cortavam gargantas sem prestar contas ao Judiciário. Sentem-se não apenas capazes de tudo, mas dispostos a tudo para se manter ali. “Son jour de gloire est arrivé.”


sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

3712) "Leandro, Vida e Obra" (16.1.2015)



Já me bati muito aqui nesta coluna por biografias de autores importantes, não para saber fofocas da vida pessoal deles, mas para entender melhor seu processo de formação literária, suas leituras e assimilações (prefiro este termo a “influências”), o ambiente cultural onde viveram, as idéias com que interagiram.  

E também o modo como passaram (quando foi o caso) de autor diletante para autor profissional.  Como lidaram com as reações (boas ou más) de editores e leitores, da crítica, da censura, dos colegas.  Como encararam seu eventual sucesso ou fracasso.  

Uma biografia criteriosa e bem pesquisada nos ajuda a ver como os acidentes de percurso foram dando forma ao jorro de criação do autor, assim como o terreno e as pedras dão forma à correnteza de um rio.

Arievaldo Vianna produziu agora a biografia Leandro Gomes de Barros – vida e obra, publicação conjunta das editoras Queima-Bucha (Mossoró) e Fundação Sintaf (Fortaleza). 

Pode não ser a primeira biografia do criador da Literatura de Cordel, mas é a primeira que encontro, e seu grande mérito é o levantamento de dados pessoais de Leandro, através de documentação bem fundamentada.  O trabalho solitário e por-conta-própria do autor o levou aos descendentes do poeta, principalmente a sua sobrinha-bisneta Cristina Nóbrega, que deu acesso a uma documentação preciosa.

Arievaldo traça a cronologia básica da vida de Leandro, nascido em Pombal (1865), criado em Teixeira até os 15 anos, e depois indo para o Grande Recife, onde ficou até sua morte em 1918. Sem forçar a barra, ele mostra os aspectos autobiográficos dos seus folhetos, inclusive um interessante paralelo entre o anti-clericalismo do seu personagem mais famoso, Cancão de Fogo, e a difícil relação de Leandro, garoto, com seu tutor e tio pelo lado materno, o padre Vicente Xavier de Farias.

O livro tem fotos e reproduções de documentos, citações precisas dos versos de Leandro, e aborda suas relações com outros criadores do cordel como Chagas Batista e João Martins de Athayde.  

A história editorial dos seus folhetos (que Ruth Terra havia abordado em Memórias de Lutas, Ed. Global, 1983) é um tema fascinante, e difícil de reconstituir depois de mais de um século.  

O livro de Arievaldo tem tudo para ser encorpado com novas informações e análises em edições futuras, visto que pesquisas dessa natureza nunca se esgotam. No ano do sesquicentenário do nascimento de Leandro, este livro dá o pontapé inicial para as comemorações de uma explosão da cultura nordestina que só teria paralelo meio século depois, nos anos 1940, com a criação do baião por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira.




quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

3711) A Vida e os Tempos de King Mariola (15.1.2015)



Cap. 1 – De como a professora da creche deu um grito agudíssimo de terror que fez todas as crianças começarem a chorar ao mesmo tempo, numa tarde pacífica de abril, na cidade de Vila Irmã, quando Anistaldo Setúbal, de oito anos, bradou, de pé em cima de uma carteira da sala, empunhando o extintor de incêndio que acabara de arrancar da parede do corredor: “Meu nome é King Mariola!  King Mariola, nessa butina!  Quem me chamar desse outro nome horroroso eu torrarei com este meu lança-chamas!” – após o que, constatando o deslize retórico, ele próprio se dobrou na gargalhada.

Cap. 2 – De como o time de vôlei do 2º. grau do colégio Paulo VI, antes do jogo decisivo contra o colégio Pio XII, se quedou perplexo quando, na hora da fala motivacional antes de entrar em quadra, momento em que o entusiasmo guerreiro inspira frases como “Bora lá, moçada!”, o levantador King Mariola provou por a+b que o Papa Pio XII tinha sido colaborador dos nazistas, e bradou: “Bora lá, galera, vamos esmagar os subterrâneos do Vaticano, desmascarar os títeres do Reichstag, repensar o Ocidente!”, uma chamada-na-chincha com tal poder persuasivo que o time ganhou por 3 sets a zero, coisa que jamais acontecera em sua história.

Cap. 3 – De como rapidamente nos transportamos para dez anos à frente, numa reunião na Universidade Metodista do município  de Coronel Valdano (Tocantins), onde King Mariola se tornara o mais jovem chefe do Departamento de Artes, e ao questionar a escassez de verbas remetidas por um relutante Ministério da Educação ele deu um murro na mesa e propôs: “Pois então vamos mandar pro Ministério o relatório dizendo o que eles querem ouvir, e vamos fazer na vida real aquilo que a gente quer fazer, e pronto, eles nunca vão ficar sabendo, até porque eles estão todos naquele cu-do-mundo que é Brasília e não têm tempo de vigiar esse vice-cu-do-mundo que é o município de Coronel Valdano!”—e não é que deu certo?!

Cap. 4 – De como em seguida King Mariola deitou e rolou nos cifrões federais, e o Delegado local se achegou pensando em faturar alguns trocados, mas logo considerou que se fosse pêgo não teria tal poder de argumentação para se safar. 

Cap. 5 – De como talvez se encontre, um dia, um equilíbrio ameno, uma interligação sem imposição hierárquica, entre o impulso criativo de uma figuraça como King Mariola e o interesse coletivo da comunidade, mas isto não aconteceu ainda, então sua cidade que se cuide, amigo velho, ainda mais depois que ele encheu o saco desse ridículo apelido de King Mariola (onde já se viu?!) e está hoje agindo, sob um outro nome, bastante civil e comum, em algum ponto deste imenso Brasil.



quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

3710) 13 coisas que eu vi (14.1.2015)



Eu era pequeno e vinha chegando de ônibus em João Pessoa e naquela pontezinha do rio Sanhauá vi uma menina se equilibrando na passarela de uma palafita, e ela escorregou sem querer e caiu com tudo dentro da água.

Num hotel em Campos (RJ), eu esperava no estacionamento o carro que vinha me buscar, quando vi um hóspede parar junto de um carro todo empoeirado e escrever no vidro com o dedo: LAVA-ME POR FAVOR.

No metrô de Paris eu vi uma mulher de seus 75 anos de pé, vestindo roupas surradas, com o braço estendido e a mão em concha. Quando alguém lhe dava uma moeda, ela fechava os olhos de vergonha, e abaixava a cabeça.

Eu estava na rua olhando uma construção, e um pedreiro, do chão, jogava tijolos para outro no segundo andar, ambos ocultos por paredes, de modo que eu só via os tijolos se elevando no ar e sumindo dentro do prédio.

No ônibus para ir à rodoviária de Salvador eu passava por um campo de pelada onde bem no meio tinha um toco de árvore com um metro de diâmetro, a galera inclusive tabelava a bola no toco pra driblar os adversários.

Eu estava mexendo nos livros na estante de nossa casa na Rua Padre Ibiapina e vi uma lagartixa morta, ressecada. Ela ficou presa embaixo de um livro e morreu de fome, e o livro era a Bíblia Sagrada.

Numa rua do Flamengo eu vi, da janela do ônibus, dois caras discutindo na calçada. Um deles, mais alto, segurava pela mão o filhinho de 3 ou 4 anos. O outro era quem gritava mais, e a certa altura esbofeteou o mais alto no rosto. O cara não reagiu, e o filho não olhava para o agressor, olhava apenas para o rosto do pai.

Num lago congelado no centro de Amsterdam, vi a queda estrondosa de um patinador que devia pesar uns 200 quilos, e só depois criei coragem para atravessar o lago a pé.

Voltando de uma viagem ao Vale do Jequitinhonha, o ônibus parou para o almoço num restaurante de beira de estrada, e eu vi no quintal um papagaio, amarrado por uma correntinha a um bujão de gás no terreiro.

Vi na porta de um banheiro da Universidade Católica de BH a frase escrita a caneta, “Che Guevara não morreu”, e logo abaixo: “Deve estar comendo sua mãe agora.”

Perto de Triunfo (PE) eu vi um sítio cuja cerca de arame estava cheia de CDs pendurados, talvez para refletir o sol e afugentar os bichos.

No interior da Paraíba eu atravessei uma ponte sobre um rio seco, em cujo leito se via uma porteira, pois tinha virado caminho de gado.

Em Campina, perto da Faculdade de Filosofia atrás da catedral, eu ia andando com Leopoldo, um datilógrafo, e ele viu o salto de um sapato emergindo da terra e o arrancou, aí disse que sempre que via aquilo pensava que tinha um cara enterrado ali de cabeça pra baixo.



terça-feira, 13 de janeiro de 2015

3709) Benjamin Black (13.1.2015)



“Benjamin Black” é o pseudônimo adotado por John Banville para assinar uma série de romances policiais iniciada em 2006 com Christine Falls, e que nestes oito anos já produziu sete romances.  Fiquei prestando atenção em Banville quando vi uma palestra dele na Flip 2013 e Sérgio Flaksman (que já o traduziu) me disse que ele estava escrevendo um romance com Philip Marlowe, autorizado pelos herdeiros de Raymond Chandler.  Banville já ganhou um caminhão de prêmios literários, inclusive o Booker Prize, o mais importante da Grã-Bretanha.  Já comentei aqui o outro livro dele que li, o ótimo The Book of Evidence: http://tinyurl.com/pmepokg.

Christine Falls (2006) é o primeiro dos romances centrados em Quirke, um patologista de Dublin que depois de anos dissecando cadáveres começa a querer saber o que os trouxe ali. É uma Dublin dos anos 1950, chuvosa, depressiva, cheia de gente religiosa e inflexível. Já ia dizer que parece um “filme noir”, mas não são os altos contrastes entre preto e branco que dão o clima ao livro. Seria um “filme gray”, porque tudo é cinzento: a chuva, os prédios, os sobretudos, a moral das famílias tradicionais em cuja medula acontecem crimes inomináveis. Investigando a morte casual de uma moça, Quirke começa a descobrir uma rede de tráfico de bebês sob a proteção de organizações religiosas.

Banville tem uma prosa rica, concentrada, extrato literário puro para se tomar em gotas; Benjamin Black tem o mesmo extrato diluído numa prosa narrativa mais convencional.  Banville já declarou que se sente mais realizado com seus “thrillers” sob pseudônimo do que com os livros “sérios”, pois estes são obras de arte frustradas (como toda obra de arte), e os romances policiais acabam chegando mais perto do que queriam.  Christine Falls é um livro cruel, uma dessas histórias onde no fim todo mundo saiu perdendo alguma coisa.

“Black” descreve com conhecimento de causa a banalidade do Mal, como nessa cena em que Quirke é espancado à noite por capangas: “Quando os dois caíram sobre ele, com seus sapatos de bico de metal, parecia-lhe agora que agiam como trabalhadores comuns, carregadores de carvão, por exemplo, ou açougueiros manobrando uma carcaça desajeitada, ambos vingativamente ressentidos daquela tarefa, grunhindo, suando, atrapalhando um ao outro e doidos para que aquilo acabasse logo”.  Quirke bebe e fuma sem parar, vive sozinho (é viúvo) num apartamento minúsculo, é sarcástico, antissocial, um Philip Marlowe desencantado com o mundo. “Quando gente ruim,” diz um personagem, “acha que tem o dever de praticar o que se diz ser o Bem, a gente começa a sentir um cheiro de enxofre.”

domingo, 11 de janeiro de 2015

3708) A Gréia e a Zuêra (11.1.2015)



(foto: Christopher McKenney)

Todo humorista que trabalha e publica num país sob ditadura sabe que se falar mal do Grande Irmão pode ir para a cadeia, o hospital ou o cemitério.  Mesmo assim, humoristas do mundo inteiro topam correr esses riscos, e muitos se dão mal.  Tiro o chapéu para esses caras, porque se eu vivesse (como já vivi) num país sob ditadura eu provavelmente iria sair pela tangente e satirizar Nabucodonosor ou Calígula. 

E não me refiro apenas às ditaduras convencionais. O massacre do Charlie Hebdo em Paris, onde morreram vários desenhistas e funcionários do jornal, foi realizado por um tipo especial de ditadura que está crescendo no mundo.  Não é mais o ditador cuja estátua e efigie estão por toda parte, é o ditador oculto e às vezes anônimo, que quase ninguém ouviu falar. Não é a ditadura dos tanques de guerra na rua, é a ditadura de bomba na mochila.  Uma não é menos ditadura do que a outra.

Que o diga Salman Rushdie, perseguido durante anos por ordem de um aiatolá. O simples fato dele ainda estar vivo mereceria ser comemorado diariamente (inclusive porque é um ótimo escritor). A ditadura terrorista não é menos cruel nem menos absurda do que a Ditadura de Estado.  Não é onipresente como ela, mas por ser invisível parece estar a ponto de brotar em qualquer canto.

Todos devemos ter direito à Gréia (a deusa grega da Galhofa e da Esculhambação) e à Zuêra (a deusa africana da Gozação e do Escárnio). Sem elas, não poderíamos viver. Saber aguentar uma piada sem perder o sorriso e a pose é uma prova de traquejo social e de segurança íntima.  Quando o camarada reage com violência a uma piada, revela de pronto seu calcanhar de Aquiles.

Sendo o mundo o que é, porém, a piada é vista (e às vezes é feita) como mera ofensa sem humor, desaforo gratuito.  Humoristas vêm catucando onças com varas curtas desde que o mundo é mundo. Os humoristas deviam ser mortos, pelo que diziam?  Não. Deveriam ser proibidos de dizê-lo?  Não.  Mas todo humorista sabe que caminha em terreno minado; aceita o risco como o soldado que vai pra guerra está aceitando o seu. Que um cara tenha a coragem suicida de fazer isso é uma coisa admirável. Extremismos e fanatismos estão recrudescendo por toda parte. Esse humor demolidor e de escracho com símbolos alheios está sendo feito num contexto de guerra, mesmo uma guerra declarada unilateralmente, como a dos terroristas. Nosso verniz de democracia é tênue; às vezes basta o peso de um cartum para rachá-lo, e aí a verdadeira natureza do Poder se revela. Porque o país pode até ser uma democracia formal, mas o mundo, como um todo, continua sujeito à Ditadura do Terror.





sábado, 10 de janeiro de 2015

3707) Wolinski (10.1.2015)



E os extremistas mataram Wolinski, o único cartunista francês cujo nome e cujo traço eu sabia de cor.  Conheci a obra dele lá por 1980, em Olinda, quando eu me asilava na casa de Paulo Santos de Oliveira, perto do Alto da Sé.  Paulo era cartunista (hoje é romancista: A Noiva da Revolução) e junto à sua prancheta havia uma estante cheia de álbuns trazidos das andanças européias. Wolinski tinha aquele traço minimalista e acelerado que Henfil, entre nós, levou aos píncaros mais delirantes. Seu personagem típico era um cara careca de nariz batatudo, queixo noel-rosa, sempre cercado por sereias vulcânicas que ou se recusavam ao sexo com ele ou se ofereciam sem que ele percebesse. A sacanagem de Wolinski nada tinha da nossa sacanagem moreno-tropical, era o mundo daqueles magrelos e branquelos franceses, discutindo Godard ou Sartre mas pensando o tempo todo naquilo.  Me identifiquei no ato.

Depois saíram álbuns dele aqui, pela Editora Três, se não me engano. Foi um alívio, porque o francês daqueles baluns era um dialeto críptico muito diferente do francês do “Cahiers do Cinéma”, que eu conseguia decifrar às apalpadelas. O humor era escrachado, e, pro meu temperamento cauteloso, ousado demais.  Nem a turma do Pasquim pegava tão pesado quanto o daquelas publicações, o Charlie Hebdo, o Canard Enchainé, o Echo des Savanes, outros nomes que agora me vêm brotando na memória, por entre a fuzilaria.

Quando o sujeito passa 50 anos satirizando Deus e o Mundo, um destes dois acaba reagindo. Em geral não é Deus.  Vi uma piada ótima na esteira do massacre, um twitter em inglês dizendo: “Eu sou Deus Todo Poderoso, sou Onisciente e Onipresente, o criador dos Tempos e dos Espaços, e posso muito bem aguentar uma porra duma piada”. Já o Mundo, infelizmente, não tem o mesmo senso de humor do Pai Eterno. Não sei ainda (alguém chegará um dia a saber?) se os assassinos são fanáticos ressentidos ou se são paus-mandados para apimentar uma crise geopolítica. Ou uma terceira coisa, ainda pior que estas duas. Mas é no meu artista que penso, o artista cujo rosto só vi, pela primeira vez, nos necrológios.

Disseram os sobreviventes que os Ninja-do-Mal entraram de rifles em punho na redação e “fizeram a chamada”, mandando que todos se identificassem para serem abatidos. Nas linhas que a tinta da História deixa em branco, todo mundo é capaz de rabiscar a lápis a lenda que mais lhe agrada. Criei para mim a fantasia consolatória de que ao ouvir seu nome, pronunciado com ódio pelos enviados do ódio, Wolinski, 80 anos, uma vida plena, uma vida ganha, ligou o “foda-se”, ficou de pé e disse: “Wolinski sou eu.  Algum problema?”




sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

3706) Tudo que reluz é Louro (9.1.2015)



(Instituto Lourival Batista, na antiga residência de Louro)

Acabo de chegar do Vale do Pajeú, onde passei cinco dias que pareceram durar cinco minutos mas valeram por um curso de cinco meses. A festa do Centenário de Lourival Batista (1915-1992), o velho e querido Louro do Pajeú, juntou centenas de poetas, cantadores, glosadores, cordelistas, pesquisadores, apologistas e estudiosos da poesia para comemorar os cem anos de um dos cantadores de viola mais amados, pelo cara talentoso, paternal, boêmio e inteligentíssimo que era.

Foram cinco dias de festa, com shows de numerosos artistas e grupos locais, além de Ednardo, Xangai, Maciel Melo, Vital Farias. A família de Louro também subiu ao palco com sua filha Bia Marinho e seus netos Tonfil e os integrantes do grupo Em Canto e Poesia. Tivemos lançamentos de livros sobre poesia popular, shows de MPB e forró, mesa de glosas (a primeira que vi ao vivo, uma coisa fascinante), e apresentações de violeiros. Tive a alegria de reencontrar cantadores amigos meus há quatro décadas, como Severino Feitosa, Moacir Laurentino e João Furiba (lúcido e alegre com mais de 90 anos).

“Tudo que reluz é Louro”, o lema do evento, foi criado por Ésio Rafael e imediatamente adotado por Antonio Marinho, organizador-chefe, motor de mil cilindradas, que bate o escanteio e faz o gol de cabeça. Louro reluz na memória de todos, pelas muitas qualidades como pessoa e como poeta.  Rei do trocadilho na poesia popular, aplicou nela seu talento de charadista capaz de desmontar e remontar uma palavra em questão de segundos, sem esforço aparente.  Dono de uma língua ferina muito temida pelos adversários, era ao mesmo tempo incapaz de uma maldade.  Boêmio inveterado, passava três dias seguidos na farra, cantando, bebendo, despranaviando, e há quem diga que (como fez o sol com o bíblico Josué) a lua passava três dias e três noites sem se mexer no céu, para acompanhá-lo na farra.

Essa poesia é a poesia que brotou na Serra do Teixeira por volta de 1850 e meio século depois começou a se derramar pelo verde do vale do Pajeú, unindo Paraíba e Pernambuco num país acima das fronteiras, onde a palavra “poeta” é forma de tratamento, e onde, se um menino de pés descalços se aproxima da gente na rua, não é para pedir dinheiro, é para oferecer um verso. Durante o evento desta semana, no centro da cidade uma multidão três vezes maior assistia shows de Pablo, Harry Estigado e Calcinha Preta. São dois Brasis, duas cidades que enxergam mundos diferentes, convivendo no mesmo espaço urbano, na mesma rede de relações civis. A gente não precisa combater a cidade dos outros. Basta fazer com que a nossa continue assim: viva, alegre, forte e reluzindo, chamando a atenção dos satélites da NASA.