quinta-feira, 21 de agosto de 2014

3583) 9 últimas frases (21.8.2014)



“Vocês dois me dão cobertura enquanto eu rodeio a casa e ataco a porta dos fundos.” (Bradley Coulton, 25 anos, soldado norte-americano, quarterback dos Kalamazoo Bats, para dois companheiros de batalhão que sobreviveram, durante a tomada da vila de Ancozzo, Itália, 1944.)

“Eu sabia que não dava para confiar em nenhum de vocês.” (François Cuvillier-Dessange, 78 anos, ex-senador da República, multimilionário, no leito do hospital, na presença dos seis filhos e de quatro médicos perplexos que não conseguiram conter a inexplicável reação alérgica que o vitimou de súbito, 1962.)

“Procurem meu filho. Eu tenho um filho chamado Pablo. Nasceu em 1975, registrado em Vitória da Conquista. Não sei o nome da mãe dele, eu conhecia ela por Babete. Digam a ele que a culpa não foi minha.” (Denilson Lucena, 55 anos, baterista, para a camareira do hotel onde se sentiu mal de repente, São Paulo, 2011.)

“Vamos ter calma, o barco ainda aguenta uma meia hora, já que vocês não sabem nadar eu vou buscar socorro, é menos de dois quilômetros daqui até a praia.” (Kim Sin-Nyeng, 31 anos, coreano de nascimento, piloto de barco, filatelista amador, após uma explosão no motor que os deixou à deriva, Japão, 1999.)

“Fique de olho no forno, é pra tirar o empadão daqui a dez minutos. Vou correndo ali na praça, antes que o banco feche, vai dar quatro horas, é só atravessar a rua.” (Paula Mesquita, 41 anos, dona de casa, distraída como sempre, apressada como sempre, cheia de coisas para fazer como sempre, Porto Alegre, 2005.)

“Só mais uns dois, e a gente volta para almoçar.” (Ilya Rostov, 33 anos, capricorniano, sniper russo, acreditando pela primeira vez que seria capaz de bater seu próprio recorde de vinte e seis inimigos derrubados numa semana, Ucrânia, 2014.)

“Eu estava pensando se não era melhor refazer esses exames todos, as contagens não estão batendo, e cada vez que eu venho aqui preciso me estressar para ser atendido.” (Pavel Rotski, 55 anos, agricultor, atormentado por um mal estar que não o deixava em paz,  e cada vez mais irritado com a lentidão e a má vontade do sistema estatal de saúde, no qual não confiava nem um pouco, Varsóvia, 1953.)

“Que porra é essa ali na frente?...” (Grant Malloy, 31 anos, caminhoneiro, viajando desarmado numa noite de neblina, porque achava suficiente ter dois metros e cento e oitenta quilos, avistando um tronco atravessado na pista, nos arredores de San Diego, Califórnia, 1987)

“Hoje é terça-feira? Eu pensei que era quarta. Que diferença faz.” (D. Adelma Ribamar Neves, 91 anos, assistente social aposentada, agnóstica, num hospital de Campina Grande, 2010 ou 2011).


terça-feira, 19 de agosto de 2014

3582) Histórias absurdas (20.8.2014)


Tem Firricriz, por exemplo.  Firricriz era um cão (=um diabrete), numa história que eu ouvi quando era pequeno e acho que nunca vi escrita em lugar nenhum.  Ele aprontava traquinagens, era um “trickster” meio gremlin, meio saci. Às folhas tantas, todos o perseguiam e ele entrava pelo ouvido dum cara e se refugiava lá dentro. O cara doido, gritando de agonia com aquele diabrete desorganizando o juízo dele, e ninguém conseguia puxar o diabo pra fora. Aí alguém mandou a família à cozinha, trazer panelas e conchas e percussões de todos os tipos, e mandou todo mundo bater e gritar com toda força. Firricriz lá dentro espantou-se, chegou perto da orelha e perguntou o que era aquilo. Aí gritaram que era o mundo que estava se acabando e que todo mundo ia morrer.  Firricriz apavorou-se, saiu do juízo do cara e assim que saiu foi preso.

Esta história, por sua vez, me lembra uma anedota meio ionesca, sobre uma mulher que estava grávida e nada de parir. Nove meses, dez, onze, já estava pra inteirar um ano e nada do menino se manifestar. O médico disse ao casal: “Só tem um jeito de obrigar ele a sair. Vamos apertar o espaço lá de dentro.  Pra desalojá-lo. Vamos empurrar pra dentro da barriga da senhora essa poltrona.”  Aí empurraram a poltrona do consultório pra dentro da mulher, mas o menino teimou em não sair. O médico disse: “Vamos empurrar aquele violão ali!”  Empurraram o violão na mulher, e nada. Em desespero de causa, o médico disse: “Vamos enfiar uma garrafa de cana! Quero ver se ele não sai!”  Fizeram, e coisa nenhuma. Aí o médico pediu arrego e disse: “Prepara a cesariana.”  Abriram a mulher e o menino estava sentado na poltrona, tomando cana, tocando violão e cantando: “Daqui não saio / daqui ninguém me tira...”

A primeira história (que não é anedota) parece fazer mais sentido do que a segunda, até porque parece ter (e não tem) uma mensagem moral.  A segunda não parece significar nada. Numa mesa de bar as pessoas riem, mas se lerem algo assim num livro de contos, p. ex., acham que não entenderam.  A anedota, o episodiozinho surreal com “punchline” acachapante, não tem obrigação de fazer sentido, nem tem compromisso com algum código moral, nem intenção de parecer um retrato realista da vida. A anedota é por um lado o mais livre dos gêneros, porque a rigor trata-se apenas do episodiozinho, mas nem todos são capazes de apreciá-lo, e menos ainda são capazes de criar material original dentro duma fórmula tão presa. Porque de uma coisa a anedota jamais pode prescindir: da gargalhada incontível ao ouvir a última linha e ver espoucar o flash do humor rápido, que é como porre de lança, dá um zuín e logo passa.


3581) O que é a vida (19.8.2014)




Reza a lenda que numa certa tarde sombria e invernal, na cidade de Göttingen, o filósofo Arthur Schopenhauer vinha caminhando lentamente pela avenida, mergulhado em metafísicas inquietações. Chuviscava, o chão estava cheio de poças dágua, e o filósofo se deteve perto do meio-fio, esperando que diminuísse um pouco o entrecruzar de cabriolés e tílburis sobre as pedras da rua. 

O espetáculo do mundo passava, alheio à sua presença, e o filósofo deixou-se embalar por pensamentos, sem notar sequer, em torno dos seus pés, uma poça dágua, visto que a chuva continuava a cair, molhando seus cabelos e o seu casaco. 

Vendo aquela cena, e notando as roupas puídas do transeunte, um policial de cassetete em punho aproximou-se e o interpelou: “Quem é você?  De onde vem, para onde vai? O que está fazendo aqui?”  

Schopenhauer voltou-se lentamente para ele e respondeu: “Que coisa interessante. Eu estava justamente perguntando a mim mesmo: Quem sou eu? De onde venho, para onde vou?  O que estou fazendo aqui?"

Os filósofos e os soldados de polícia fazem as perguntas essenciais da razão de nossa presença na Terra. Todos temos a obrigação de fazer essas perguntas, embora ninguém que seja sensato espere respondê-las em algum momento. São perguntas que não procuram descobrir “a resposta”, como numa charada ou numa adivinhação. O que essas perguntas pretendem é, sendo formuladas a sete bilhões de pessoas, produzir sete bilhões de respostas. Nenhuma delas mais verdadeira ou mais equivocada do que as outras.

Jean-Paul Sartre contava em suas memórias que durante a vida toda se sentiu um fingidor, uma fraude, um cara sem direito de estar no mundo. Ele usava a imagem do sujeito que está viajando num trem mas não tem o bilhete. “Passei a vida escrevendo livros,” dizia ele, “porque se um dia o fiscal do trem viesse me pedir o bilhete, que continuo não tendo, eu lhe mostraria os livros e diria: Estou na Terra com esta função.” 

Todo mundo está aqui para fazer alguma coisa. Mesmo o viciado da cracolândia sente que precisa fumar crack todo dia, para justificar sua presença no mundo. Mesmo um monge indiano que vive de jejum e meditação usa os dois como um bilhete para exibir ao fiscal do trem. 

Bob Dylan dizia: “You gotta serve somebody”. Não existe almoço grátis, e a vida é um banquete caríssimo e você tem que deixar algo em troca.  Vamos ter que fazer alguma coisa para responder aquelas quatro perguntas. Podemos até nos recusar a respondê-las. Mas nenhum ser humano consciente as ignora, nenhuma pessoa capaz de pensar escapou de fazer essas perguntas a si mesmo em algum momento, e elas são perguntas para as quais é preciso inventar respostas.








domingo, 17 de agosto de 2014

3580) Borges e Cortázar (17.8.2014)





(ilustração: Chelo Candia)


Parece que nunca existiu uma amizade de fato entre esses dois grandes escritores argentinos, que frequentemente são citados na mesma frase.  Havia quinze anos de diferença etária entre eles, e é natural que o mais novo visse no outro o seu mestre. Ambos produziram uma literatura fantástica de matriz urbano, cosmopolita, com inspiração literária e filosófica.  Bem diferente da literatura fantástica de matriz rural ou interiorana (Márquez, Astúrias, Rulfo, Scorza, p. ex.), com matriz indígena e mitológica.  Ambos livrescos e um tanto tímidos, ainda assim são diferentíssimos. Cortázar um sujeito afetuoso mas auto-suficiente, que ousou deixar a pátria e viver em terra estranha. Borges morou com a mãe até que ela morreu, embora depois de cego e famoso tenha corrido o mundo inteiro. (Talvez um cego se canse menos em viagens internacionais. Nossa memória visual exige muito do processamento central.)

Em 1956 Cortázar estava na Índia e ao conversar sobre Borges veio-lhe a idéia para um poema, que ele acabou publicando muito tempo depois, em seu “almanaque” A Volta ao Dia Em Oitenta MundosO título é em inglês: “The smiler with the knife under the cloak”. E diz: “Bem no meio da ensaimada /ele se plantou e disse: Babilônia. / Muito poucos entenderam / que queria dizer o Rio da Prata. / Quando se deram conta já era tarde, / quem detém esse potro que galopa / de Patmos a Gotinga a meia rédea. / Começou-se a falar em vikings / no Café Tortoni, / e isso curou a alguns de Juan Pedro Calou / e fez os fracos adoecerem com as runas e David Hume. // Enquanto isto ele lia / romances policiais.”

Nos comentários que faz após o poema, Cortázar observa que só viu Borges pessoalmente “duas ou três vezes na vida”, mas que Borges foi para a geração dele uma lição de escrita. Mais do que temas e idéias, a literatura de Borges lhes passou a sensação de uma lâmina afiada até o limite. Uma frase refeita dezenas de vezes, começando longa e tortuosa, e se limando por dentro até se tornar concisa, sonora e perfeita. Uma antítese classicista ao derramamento verbal dos românticos.

Ambos gostavam de romances policiais, mas tinham dificuldade de escrevê-los levando-os literariamente a sério. Borges se orgulhava de “O jardim das veredas que se bifurcam”, o primeiro conto que publicou nos EUA, nas páginas do Ellery Queen’s Mistery Magazine.  Depois mandou para lá “A Morte e a Bússola”, que foi recusado (talvez por seu excesso de artificialismo), e quando produziu seu terceiro conto detetivesco (“Abenjacan, o Bokhari, morto em seu labirinto”), ele mesmo achou que aquilo mais parecia uma paródia do que qualquer outra coisa.


sábado, 16 de agosto de 2014

3579) Singularidade Absurda (16.8.2014)




A Singularidade, segundo os cientistas e os escritores de FC, será aquele momento em que todos os processos de inteligência artificial que estamos criando irão convergir para a formação de um estado supra-biológico de consciência humana/cibernética.  Como um piloto automático que se apossasse do avião e impedisse os pilotos humanos de entrar na cabine. 

O que acontecerá então?

Temos a tendência de projetar um perfil antropomórfico, ou uma essência semelhante à humana, em todo fenômeno que nos transcende, sem atentar para essa contradição. Se nos transcende, não é como nós. Não parece conosco. Não pode ser descrito em nossos termos. Deus não é um homem de barbas brancas sentado num trono. 

A Super Inteligência Artificial do futuro não será um cientista (benigno ou psicótico) dando ordens que não conseguiremos desobedecer.

É bastante possível que estejamos criando não uma, mas uma série de Semi-Inteligências Artificiais, e que a Singularidade, o momento irreversível em que esse processo escapará das nossas mãos, não tenha uma consciência central. Não será um computador gigantesco dizendo: “Agora, vocês vão ter que me obedecer”. 

Fico até incomodado quando penso nisto, mas acho que a Singularidade não vai parecer nem com uma Divindade nem com um Super-Cérebro, vai parecer com um Doido.

Milhares, milhões de processos eletrônico-digitais controlando nossas finanças, nossas identidades sociais (documentos, senhas, acesso a tudo), nossos bancos, nossos meios de transporte, nossas formas de comunicação. Quem me garante que a Singularidade não será capaz de produzir pastiches perfeitos do meu texto e do meu estilo, postar em redes sociais, mandar emails para minha família dizendo o que bem entender – e fazer-se acreditar?

Isso, no entanto, não acontecerá com intenções malévolas, pois não há uma personalidade humana por trás. Será a combinação multiplicada de processos automáticos que se somarão uns aos outros para produzir efeitos aleatórios, não projetados por ninguém (e não desejados por ninguém, inclusive pelas “máquinas”). 

A Singularidade será um universo beckettiano ou douglasadamsiano. A vida no planeta correrá o risco de ser destruída justamente pela falta de um ditador antropomórfico em busca do poder. Serão mil ditadores algorítmicos, conflitantes, contraditórios, tentando se sobrepujar por mero determinismo de programação. 

E o mundo se transformará num pesadelo surreal-cubista, numa peça de Ionesco montada pelos loucos do Asilo de Charenton, e a vida humana se tornará finalmente um conto contado por um louco, cheio de som e de fúria e significando rigorosamente nada.


sexta-feira, 15 de agosto de 2014

3578) Robin Williams (15.8.2014)



Tem atores que são capazes de se concentrar num personagem real ou imaginário e recriá-lo com competência: o Hamlet de Laurence Olivier, o Hitler de Bruno Ganz, o Gandhi de Ben Kingsley, o Gonzaguinha de Júlio Andrade, o Aguirre ou o Fitzcarraldo de Klaus Kinski. Ele cria um personagem como quem ergue uma catedral, com tudo que isso envolve de planejamento a longo prazo e de improviso instantâneo, com tudo que isso implica de filigrana milimétrica e de megalomania estrutural.

Não era o caso de Robin Williams, e não porque ele não fosse um excelente imitador. Imitou competentemente desde Theodore Roosevelt até Oliver Sacks e o marinheiro Popeye.  É que Williams era mais capaz de reproduzir os tiques exteriores de alguém do que de se transformar naquele alguém, com memórias profundas e tudo o mais. As pessoas e os personagens não lhe despertavam tanto interesse assim, a ponto de fazê-lo dizer: “Passarei dois anos estudando e compondo esse personagem”. Não, acho que era mais aquela coisa do cômico de vaudeville, do rádio e do cinema mudo, que abre uma folha: “Qual é o próximo papel? Ah, pirata decadente. Já sei.”

Vi duas ou três entrevistas de Williams na TV e ele era aquele tipo não-entrevistável, porque ele nunca é ele mesmo, ele está sempre fazendo um personagem, e nunca é o mesmo personagem por mais de vinte segundos consecutivos, às vezes um pouco mais, quando a piada que está inventando se prolonga. Me lembra o que disse uma vez uma esposa de Peter Sellers: que era impossível conversar com ele, porque não havia “ele”, havia milhares de personagens que ele imitava quando precisava dizer alguma coisa. Eram mil máscaras sem um rosto por trás.

Williams sempre caminhou naquela linha difícil dos atores careteiros, a que também pertencem Jerry Lewis e Jim Carrey.  Sabem que estão sempre a um milímetro de resvalar no mau gosto, no patético, no cafona, no escatológico, mas é algo mais forte do que eles.  Fariam assim mesmo que a lei proibisse. Só sabem fazer se for assim.

Williams parece ter sido um desses caras que começou a inventar personagens-de-si-mesmo para se relacionar com os outros, e depois ficou dependente deles, porque não tinha uma voz central, um Eu principal que se responsabilizasse. Não faço idéia de como era conviver no dia-a-dia com alguém como ele ou Sellers, mas eu não gostaria, porque de um instante para outro ele seria capaz de desdizer ou desfazer tudo que tinha dito ou feito antes e dizer: “Tava brincando!”  Parecia não haver nenhum Robin Williams capaz de surgir entre as máscaras e dizer: “Rapaz, tou com um negócio sério pra te falar.”



quinta-feira, 14 de agosto de 2014

3577) "O Mistério dos MMM" (14.8.2014)




Este romance policial de 1964, editado por João Condé, é um dos nossos mais famosos exemplos de “round-robin”, romance em que cada autor escreve um capítulo e passa a bola para o próximo.  No presente caso, eram dez. 

A história de um crime violento durante o Carnaval, no apartamento de um milionário em Copacabana, foi começada por Viriato Corrêa, que narrou o crime inicial e propôs o mistério básico sobre três mulheres não identificadas, cujos nomes começam pela mesma letra.

Os capítulos, se não me falha a memória, eram publicados semanalmente em O Cruzeiro. Lembro das páginas duplas com ilustrações, carros, homens empunhando armas, parecendo a revista X-9 ou algum outro pulp magazine nacional. 

Do segundo capítulo em diante colaboraram, pela ordem, Dinah Silveira de Queiroz, Lúcio Cardoso, Herberto Sales, Jorge Amado, José Condé, João Guimarães Rosa, Antonio Callado, Orígenes Lessa, com o último capítulo cabendo a Rachel de Queiroz.

Há vários crimes violentos, um grande número de personagens, o enredo tão claro ou tão confuso quanto o de qualquer pulp fiction. 

O curioso é que os estilos desses escritores tão diferentes convergiram na direção de um esperanto comum a todos.  Aqui e acolá reconhece-se o autor num diálogo, num nome de personagem, numa alusão geográfica ou literária. Mas vozes tão dissímiles quanto as de Jorge Amado, Guimarães Rosa e Antonio Callado estão quase intercambiáveis, na sua capacidade de entrar no diapasão feito soar por Viriato Corrêa.

Rosa contribuiu com uma detetive, a Tia Maria, que tem com o comissário Dr. Brasil uma relação parecida com a da Miss Marple de Agatha Christie com seu sobrinho.  A personagem foi adotada pelos autores dos capítulos finais, e traz uma certa ajuda para o delegado Rocha Novais, o velho investigador Soares e o próprio Dr. Brasil, que no auge do desespero com a investigação que não progride desabafa com a melhor frase do livro: “Esse negócio de crime devia ser proibido!” (episódio de Orígenes Lessa).

O enredo é cheio de reviravoltas, nenhuma delas excepcional, mas essa obra coletiva produziu um décimo-primeiro indivíduo a que todos se amoldaram e para o qual todos contribuíram. Se fosse assinado com um nome qualquer, poderia passar pelo romance de estréia de alguém. 

Ele faz a ponte entre o Dr. Leite de Luiz Lopes Coelho e o Espinosa de Garcia-Roza, passando pelo Mandrake de Rubem Fonseca.  Sem ser um grande enredo policial, não faz feio.  Houve nos autores um certo interesse em ir solucionando os vários crimes aos poucos, ao invés de ir acumulando tudo (atitude bem pulp fiction) para ser resolvido pelo infeliz encarregado do derradeiro episódio.


quarta-feira, 13 de agosto de 2014

3576) Um autor novo (13.8.2014)




Descobrir um autor novo (novo pra mim, claro) me remoça. Mesmo quando eu já supervisionava o tráfego da literatura universal do alto dos meus vetustos 50-e-tantos anos, era extraordinário o quanto o mundo voltava a ficar grande quando eu fazia uma nova descoberta.  


Às vezes era um autor de quem eu só conhecia o nome, vagas referências. Um dia, eu começava a folhear um volume na livraria, sem muito interesse, dava uma conferida no que vinha logo abaixo de “Capítulo 1”, e quando voltava a mim estava na página 35, sob os olhares suspicazes dos atendentes. Em casos assim, já me ocorreu ir no caixa, pagar, sair da livraria e continuar a leitura de pé, na calçada, por entre os transeuntes, figurantes involuntários da epifania.

Ou então o cara está lendo uma antologia, ou uma revista literária, vê 2 ou 3 poemas de um(a) desconhecido(a), lê, relê, entende, desentende, pergunta de novo, acaba constatando uma espécie de fenômeno. Vai ao Google, depois à Estante Virtual ou à Abebooks... Tá fisgado. 

O primeiro indício de estar fisgado é se flagrar tentando escrever parecido com a figura. “Pronto,” pensa o cara, “era só o que me faltava, ser influenciado por uma poetisa senegalesa que tem idade pra ser minha avó, ou minha neta, tanto faz.”

Muita gente, quando descobre um autor novo, vira propagandista. Xeroca texto, escaneia texto, compra livros na ponta-de-estoque e distribui entre os amigos, vira “cabo leitoral”. Vira tiete e militante de um autor falecido no século passado, ou de um novato que está publicando lá nas brenhas e que ninguém se interessa. 

Por que?  Talvez porque um autor novo é como um bar novo que a gente descobre. O bar é ótimo, mas a gente não quer ficar lá sozinho, ou entre desconhecidos indiferentes. Quer levar a turma de amigos para usufruto em comum.

Há também quem descubra e esconda. Eu já fiz isso. Descobri um novo contista de FC, ou um novo curtametragista polonês, ou uma nova poetisa sulamericana, e não falei pra ninguém, apaguei meus passos, não deixei vestígios de minhas repetidas peregrinações ao pé de suas páginas. 

Por que? Talvez pra não quebrar o encanto, não correr o risco de ouvir um dos meus gurus dizer: “Ah, conheço, sim... Mas já passei essa fase...” Eu descubro e escondo. 

Fico com a ilusão benigna de que só eu conheço, só eu gosto, só eu plagio em vão e depois queimo por saber que é plágio, mas no momento de copiar experimento o prazer vicário de todo ator que desdobra no palco uma grande cena e, enquanto joga pra fora aquelas palavras, tem a certeza íntima (por isso a cena é grande) de que tudo aquilo foi ele quem pensou, de que tudo aquilo acaba de ali nascer.






terça-feira, 12 de agosto de 2014

3575) "Bar Don Juan" (12.8.2014)





A história da guerrilha comunista no Brasil já foi contada em livros, filmes, reportagens. Os romances, que eu me lembre, são poucos, mas o primeiro que li, e que mais me marcou, foi Bar Don Juan (1971) de Antonio Callado. É o livro do meio de uma espécie de trilogia que ele iniciou com o imenso e épico Quarup (1967) e concluiu com o multilingue e compacto Reflexos do Baile (1976). 

Callado tinha talvez o equilíbrio necessário para escrever sobre a guerrilha. Um equilíbrio que não vinha da neutralidade, mas do seu envolvimento ideológico e pessoal, que lhe permitia ser simpático a algumas intenções do movimento, e crítico quanto ao seu modo de atuação.


Por volta de 1968, na Zona Sul do Rio, um grupo de jornalistas, cineastas, escritores, junto com alguns de origem militar ou religiosa, se reúne para criar um foco de guerrilha na região de Corumbá. Seria uma ponte para a guerrilha que Che Guevara estava implantando (aos trancos e barrancos, na verdade) na Bolívia. 

Uns já tem experiência de combate, outros são “verdes”, alguns são claramente porraloucas, mas estão decididos ao sacrifício: “Em épocas como a nossa a vida particular é um vício. Um maconheiro que procura mudar o mundo é mais virtuoso do que um atleta ou um santo.”

Callado bebia uísque com aqueles jovens, presenciava suas discussões, entendia seu entusiasmo, e a crônica daquela derrota sangrenta é narrada com um distanciamento melancólico. 

Ele cobriu a Guerra do Vietnam e provavelmente entendia mais de vivência de guerra do que aquele grupo de jovens “que olhava o Banco como um terrorista árabe olhando uma sinagoga.” 

O bar e o livro podiam se chamar Bar Dom Quixote, porque a guerrilha rural planejada e arregimentada entre uísques nas noitadas do Leblon é também o resultado de leituras desordenadas, sentimentos nobres, ambições heróicas e leitura paranóica do Real. 

A arrogância ingênua da guerrilha se reflete no bordão com que os pretendentes a guerrilheiros se referem à conexão com a guerrilha boliviana do Che: “Com o Comandante a gente vence. É matemático.” 

É típico do desejo se fantasiar de necessidade. Quando queremos muito alguma coisa é forte a tentação de imaginar que o Universo inteiro conspira a favor daquilo.  Ou, para usar o jargão da época, dizemos que aquele evento será a consequência necessária da marcha inelutável da História, o resultado concreto de forças históricas objetivas.

Um personagem diz a certa altura que “no Brasil a pressão da vida particular das pessoas sobre a vida ideológica era provavelmente a mais alta do mundo”.  Que o resultado disto seja a opção pela luta armada só confirma a magnitude do choque entre essas duas realidades.






domingo, 10 de agosto de 2014

3574) Utopias totalitárias (10.8.2014)




(ilustração: Alessandro Bavari)


Embora o conceito e o nome tenham nascido no século 16 com a Utopia de Thomas Morus (1516), a utopia literária é um gênero típico do século 19. Antes disso, as utopias costumavam ser satíricas, ou meras fantasias literárias. No século 19 começaram as utopias científicas. O marxismo é produto desse tempo em que, num dos auges periódicos do capitalismo, a Razão mobilizou todos os seus instrumentos conceituais para criar o paraíso social na Terra.

Uma das utopias brasileiras mais curiosas é O Reino de Kiato (1922) de Rodolfo Teófilo, sobre o qual já falei aqui (http://tinyurl.com/qbomjfl). É a típica utopia positivista, baseada na higiene, no civismo, na obediência, na pontualidade, na estrita obediência às leis vigentes, na organização administrativa e burocrática, na tecnologia, na padronização das idéias e do comportamento.  Foi esse livro que me veio à memória ao ler Viagem (1954), o relato póstumo de Graciliano Ramos sobre sua visita à URSS no último ano de vida de Stálin.

Em Kiato, a história é narrada pelo ponto de vista de James Paterson, um visitante que vai parar naquele reino por acaso e que começa a se inteirar da revolução que pôs no trono o Rei Pantaleão III, a quem Kiato deve sua indescritível prosperidade e sua estabilidade política. Kiato, fantasia utópica, contemporânea de Stálin, não é uma república comunista, mas prefigura muitos dos aspectos que em 1922 (ainda em plena guerra pós-revolucionária) mal começavam a ser implantados na URSS.

John Paterson e Graciliano Ramos passeiam pelas avenidas, pelas fábricas, pelas praças e pelos centros cívicos de Kiato e da Rússia, conduzidos por cicerones que lhes explicam o impecável funcionamento das instituições burocráticas, a assiduidade infalível dos trabalhadores, o entusiasmo dos cidadãos diante de qualquer chance de manifestar sua lealdade ao regime. Não se vê um mendigo, um trombadinha, um monte de lixo, uma droga. As bibliotecas estão cheias de coleções encadernadas.

Toda utopia é um sonho centralizado, o mundo reformatado do ponto de vista de uma só idéia, um mundo onde tudo é possível para a mente que comanda. Já a democracia é esta bagunça que conhecemos, eleições, falcatruas, manifestações, todos mandam e ninguém obedece, grupos se alternam no poder, cada um desmonta o que o outro começou a construir, todos reclamam, saem à rua, quebram coisas. Não admira que em plena democracia muita gente sonhe com utopias centralizadas, assépticas, eugênicas, um povo sem pobres, um povo de operários bem vestidos e bem alimentados que leem os livros impressos pelo Estado e que vão dormir pontualmente às dez da noite quando soam as sirenes.