domingo, 13 de julho de 2014

3550) "Sunset Boulevard" (13.7.2014)



Dizem que este filme de Billy Wilder, em sua primeira versão, começava com vários cadáveres conversando num necrotério. Cada um dizia como tinha morrido, e então era a vez de Joe Gillis (William Holden) contar sua história.  As audiências-teste acharam a cena ridícula, o diretor teve que refazê-la, e ficou um dos melhores começos de filmes hollywoodianos. A voz em off acompanha a chegada da polícia à mansão, mostra ironicamente o cadáver boiando na piscina, e diz: “Esse cara morto aí sou eu. Agora vou contar como tudo começou.” (Não exatamente assim; é um texto excelente.)

O filme sobre a estrela decadente Norma Desmond é contado pelo roteirista desempregado e a-perigo Joe Gillis. É um bom sujeito, meio malandro mas fundamentalmente um cara que quer apenas arranjar trabalho para pagar as dívidas e não perder o automóvel. Ele começa como “script doctor” para dar uma organizada no roteiro faraônico escrito pela ex-atriz, e termina como playboy teúdo e manteúdo. Prisioneiro, como se fosse um personagem de Twilight Zone, de uma mansão parada no tempo, de onde quem ousa entrar não consegue sair.

A estrela, que aparece com um turbante que não deixa de lembrar Carmen Miranda, o contrata porque ele é de Sagitário.  As portas internas da casa não têm fechaduras. “Madame tem crises de melancolia, e já tentou o suicídio”, diz o mordomo (que parece um general prussiano) Max von Mayerling, interpretado por Erich von Stroheim.  Aconselho ver a versão comentada do DVD, onde um crítico mostra todas as intrusões da vida real no filme, desde a lanchonete onde o pessoal de Hollywood comia e bebia na madruga até aparições rápidas de Cecil B. de Mill e Buster Keaton interpretando a si mesmos. O filme, aliás, faz referências visíveis ao passado dos próprios atores, que interpretam caricaturas de si mesmos.

É um dos filmes mais cáusticos já feitos sobre Hollywood, e é de admirar que tenha sido feito nos mesmos estúdios (no caso, a Paramount) cuja vida ilha-da-fantasia ele se propõe a criticar. Algumas cenas estão a um passo do surrealismo de Buñuel em L’Âge d’Or: o baile de reveillon para duas pessoas, o velório do macaco, o jogo de baralho dos ex-atores. É a Hollywood de baixo vingando-se com sarcasmo da Hollywood de cima.

De modo cruel, o único sopro de vida normal, de ar puro, é a paixão de Gillis por uma roteirista jovem, com quem ele começa a escrever um filme às escondidas. Por trás da Hollywood das estrelas egocêntricas e dos produtores superpoderosos, Wilder enxerga o que ele considera a Hollywood boa-praça, a dos roteiristas e diretores como ele mesmo, envolvidos na briga-de-cachorro-grande dos egos alheios.


sábado, 12 de julho de 2014

3549) Escritores futebolistas (12.7.2014)




(João Cabral, no Santa Cruz, aos 15 anos)


Na juventude, Sir Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes, jogou de goleiro pelo Portsmouth, um clube amador de Southsea, sob o pseudônimo de A. C. Smith.  Doyle era um entusiasta dos esportes; seus Contos do Ringue e de Guerra têm histórias ótimas sobre o tempo em que o boxe era praticado sem luvas e sem limite de assaltos. A Curiosa História de Rodney Stone, que retrata essa época, é um dos seus melhores romances históricos.

Albert Camus, Prêmio Nobel de Literatura, autor de O Estrangeiro, jogou como goleiro num time universitário na sua Argélia natal, o Racing Universitaire Algerios (RUA). Teve que interromper sua carreira esportiva em 1930, devido à tuberculose. “Logo aprendi que a bola nunca vem na direção que a gente espera,” disse ele. “Isso me ajudou na vida, acima de tudo na metrópole, onde as pessoas nunca são o que parecem ser.”  

Outro Prêmio Nobel, desta vez de Física, o dinamarquês Niels Bohr, foi goleiro no Akademisk Boldklub em 1906; conta-se que ele certa vez deixou passar uma bola fácil porque estava distraído, resolvendo um problema de matemática.

Não propriamente um escritor, embora tenha publicado livros, Karol Wojtyla (Papa João Paulo II) foi outro que jogou como goleiro de clubes universitários na juventude, e era um torcedor do Cracóvia. Fã de futebol, ele acompanhava os jogos do Liverpool quando seu conterrâneo polonês Jerzy Dudek era goleiro do time do rio Mersey, e tornou-se sócio honorário do Barcelona depois que rezou uma missa no estádio Nou Camp. 

João Cabral de Melo Neto foi outro goleiro que defendeu as cores do América e do Santa Cruz do Recife, pelo qual foi campeão juvenil em 1935, e escreveu alguns belos poemas tendo o futebol como tema.

Vladimir Nabokov também jogou no gol, em São Petersburgo e depois em Cambridge, e em suas memórias (Fala, Memória!) disse: 

“Eu era louco pela posição de goleiro, uma arte galante que na Rússia e nos países latinos é cercada de um halo singular de glamour. Distante, solitário, impassível, o goleiro é seguido nas ruas por garotos maravilhados. Assim como o toureiro e o piloto de provas, ele é objeto de uma adulação emocionada. Seu suéter, seu boné, suas joelheiras, suas luvas enfiadas no bolso traseiro do calção, tudo o distingue do restante da equipe. Ele é a águia solitária, o homem misterioso, o derradeiro defensor. Fotógrafos ajoelhados em reverência o captam num mergulho espetacular, desviando com a ponta dos dedos um chute relâmpago, e o estádio estronda em aplausos enquanto ele se deixa ficar caído no chão por alguns segundos, tendo mantido intocada a sua baliza.”







sexta-feira, 11 de julho de 2014

3548) 7x1 (11.7.2014)




A catastrófica derrota do Brasil para a Alemanha, na semifinal da Copa, foi um desses pesadelos que já tive inúmeras vezes na vida, sempre que nossa Seleção ia enfrentar um time bom e estava mal das pernas. Vinha o jogo, e acontecia uma surrazinha normal de 2x0 ou 3x1, que todo mundo lamentava e eu comemorava com alívio, pensando na hecatombe que tinha sonhado na véspera.  Mas é mania dos pesadelos baterem em tantas portas que um dia encontram uma que se abre. Foi assim com a porta deste 8 de julho. Paciência.

Parece que há um ciclo de dezesseis anos nos trazendo essas derrotas tão dolorosas. Começou com 1950 no Maracanã, 2x1 para o Uruguai (o jogo de Ghiggia).  Dezesseis anos depois, em 1966, tivemos os 3x1 para Portugal (o jogo de Eusébio). Com mais dezesseis, veio o 3x2 para a Itália em 1982 (o jogo de Paolo Rossi). Dezesseis anos depois, em 1998, veio a decisão dos 3x0 para a França (o jogo de Zidane). E com mais dezesseis, agora em 2014, veio essa histórica goleada alemã, e desta vez não houve um carrasco específico, o time quase todo fez gol. Vamos abrir o olho com a Copa de 2030, portanto.

O futebol é tão imprevisível que se o time de Felipão tivesse derrotado esta Alemanha de Joachim Löw não nos faltariam razões. Diríamos que Fulano e Sicrano confirmaram as boas atuações, que Beltrano desencantou, que os alemães suaram para empatar com Gana e vencer a Argélia... Nunca sabemos quando o time vai desencantar. Afinal, já houve tantas vezes em que vínhamos catando cavaco, ganhando mal de equipes pequenas, e de repente o sapo virou príncipe.,, Já fomos campeões assim. (Em 1994 e 2002, para ser mais preciso.)

Triste não é perder um jogo, é perder o próprio futebol.  O Brasil inventou o que os gringos chamam de “Beautiful Game”, exportou-o para Espanha, Alemanha, Holanda, e o trocou domesticamente pelo futebol truculento e retranqueiro de Felipão e Parreira. Até admiro as qualidades dos dois, que afinal de contas nos deram Copas, mas quando se juntaram agora parece que houve uma soma dos defeitos e um cancelamento das qualidades.  A Seleção de 2014, pelo meu gosto, jogou bem apenas no segundo tempo contra Camarões e no primeiro contra a Colômbia.

Foi uma Seleção violenta, quase desleal, que só ganhou da Colômbia criando um clima de pancadaria que acabou se voltando contra Neymar. Uma seleção militarizada, que entrava em campo com mãozinha no ombro, como cadetes sob o olhar do sargento. Uma seleção onde o marketing, os contratos publicitários, e a convivência com os vips (essa turma de sanguessugas do talento alheio) acabaram amordaçando o Jogo Bonito. Vamos em frente.  E, como sempre, que ganhe o que jogar melhor.


quinta-feira, 10 de julho de 2014

3547) Ser goleiro (10.7.2014)




(Harry Gregg, do Manchester United)


Digam o que disserem (“No lugar onde ele pisa não nasce mais a grama”), o goleiro é o jogador mais visível de um time de futebol, o mais personalizado.  Talvez só o centroavante o supere em “pathos” e como possível fonte de inspiração literária. Um artigo de Benjamin Healy (http://tinyurl.com/kt6w2or) dá um balanço na complexa mitologia dessa posição, citando alguns dos seus praticantes mais famosos (Albert Camus, Vladimir Nabokov) e uma dúzia de livros escritos por ou sobre goleiros. Uma massa de informações que daria um ótimo tema para uma tese de mestrado.

Healy faz um passeio por alguns grandes nomes da História e também comenta o drama de alguns já esquecidos. (O nosso Barbosa, da seleção de 1950, ganha um retrato compassivo e honesto.) Outro brasileiro citado é Sérgio Sant’Anna com seu conto barbosiano “No último minuto”, em que um goleiro fica zapeando de canal em canal, revendo o gol que sofreu, na esperança de que em algum daqueles universos paralelos a bola não tenha entrado.

O autor lembra O medo do goleiro antes do pênalti, livro de Peter Handke filmado por Wim Wenders em 1972, e cita The Outsider de Jonathan Wilson, uma história abrangente dessa posição: “O livro de Wilson está cheio de histórias de goleiros que beberam até morrer (Arthur Wharton), morreram em acidente de avião (Frank Swift), foram feridos com uma garrafa quebrada (Robert Mensah), ficaram paralíticos sem razão aparente (Toni Turek) ou levaram um chute na cabeça e foram enterrados na vala comum (Jaguaré)”.  Ele lembra que Gordon Banks perdeu a visão de um olho e que Bert Trautmann jogou os últimos 16 minutos de uma decisão com o pescoço quebrado.

Alguns goleiros parecem personagens de ficção, como David Icke, que jogou no Coventry e depois tornou-se um personagem conhecido na mídia inglesa, defendendo teorias da conspiração e sugerindo que a família Bush e a família real inglesa são compostas de alienígenas reptilianos. Lembra também os goleiros mais espalhafatosos da História: o paraguaio José Luis Chilavert, o mexicano Jorge Campos, o colombiano René Higuita. Há histórias trágicas, como a de John Thomson que morreu com o crânio fraturado, ou o alemão Robert Enke (ex-Borussia, Benfica, Barcelona) que depois de uma série de derrotas e de depressões acabou se suicidando.

O goleiro talvez seja em todo o time o personagem mais sujeito à tragédia grega, mas sei lá, talvez até isso seja melhor do que o anonimato de ser volante ou cabeça-de-área. Num esporte como o futebol, onde há espaço tanto para o brilho coletivo quanto para o individual, ele parece flutuar numa dimensão diferente dos demais, como o cavalo no xadrez.


quarta-feira, 9 de julho de 2014

3546) "O Livro das Provas" (9.7.2014)



A história de detetive é chamada de “whodunit” (por girar em torno de “quem fez”, quem praticou o crime) ou “howdunit” (“como fez”, como o crime foi praticado – entram aí todas as histórias de crimes impossíveis, crimes de quarto fechado, etc.). E existe também o chamado romance policial psicológico, o “whydunit”. Por que fez? Qual a razão do crime? O que se passa no interior da mente de quem mata?

The Book of Evidence de John Banville (O Livro das Provas, Ed. Record, 2002, tradução de Maria Alice Máximo) é um romance curto e denso (220 páginas), e se apresenta como o testemunho de um criminoso, Freddie Montgomery, que se dirige ao juiz e ao júri para explicar as razões do crime que cometeu. Banville é um estilista rico em recursos, e o criminoso vai brotando de frase em frase, de parágrafo em parágrafo, numa narrativa autoexplicativa que nos deixa perplexos.

Freddie é um exemplo consumado de “narrador não-confiável”, não porque minta, mas porque, como acontece com todo narcisista, seu entendimento das coisas é deformado pelo gigantesco campo gravitacional do seu ego. “Nunca imaginei que aconteceria algo tão vulgar quanto uma investigação policial”, diz ele em plena preparação do crime.  Quando uma vítima o atrapalha um pouco, ele reclama: “Não é justo que uma coisa assim aconteça!”.

A história tem alguns aspectos improváveis, mas foi baseada em fatos reais, um crime célebre na Irlanda nos anos 1980, uma série de acontecimentos que alguém na época definiu como “grotescos, sem precedentes, bizarros e inacreditáveis”. O lado exterior dos fatos foi bastante comum; mas todos se perguntavam: “Afinal de contas, para que diabo ele fez isso tudo?”  Um desses crimes cuja gratuidade desconcerta qualquer análise. Crimes sem propósito nos fascinam. Somos capazes de entender quem mata por dinheiro, por ódio ou por ciúme, mas crimes sem razão aparente nos aterrorizam com o abismo espantoso do absurdo.

O livro de Banville é uma espécie de O Estrangeiro de Camus sem aquela aridez de xilogravura em preto e branco. Ao invés de Meursault, que quase nada diz de si mesmo, Freddie escancara seus pensamentos com volúpia diante do leitor, soterra o leitor com seu exibicionismo, sua vaidade, sua pose de dândi que acha que o mundo lhe deve tudo, suas inseguranças de menino mimado que arranca asas das moscas. Banville faz isso com uma prosa brilhante, nítida, cheia de símiles inesperados e vívidos, de revelações indiretas que nos fazem ver o assassino (e a humanidade) com receio, com pena, com revolta e com uma incômoda sensação de familiaridade. Todos nós conhecemos meia dúzia de pessoas como Freddie Montgomery.


terça-feira, 8 de julho de 2014

3545) Torcida de Copa (8.7.2014)



De quatro em quatro anos, um curioso fervilhar de criaturas emerge das dobras do tecido social da Nação: os torcedores de Copa. Pouco entendem de futebol. Assistem aquilo como eu assisto hóquei-sobre-patins. Em todos os lares brasileiros brotam tias, avós, cunhados, vizinhos, a criançada, aquelas legiões de leigos sem clube que na Copa se lembram de que é preciso torcer pela Pátria.  Com a gentrificação do futebol, a cada década um comércio mais caro e mais ferrenhamente imposto à população, essa torcida passou a invadir os estádios onde as Copas do Mundo são disputadas.  É gente que jamais pisaria numa geral do Maracanã. (Como somos velhos, todos nós... somos do tempo em que havia geral no Maracanã.)

Disse na semana passada Bob Fernandes, no websaite Terra: “Dúvidas, muitas dúvidas. Como essas senhoras e senhoritas conseguirão pular, saltar, vibrar nas arquibancadas com tanto salto 12? Sob o escaldante sol do Ceará resistirão as maquiagens, o gel dos rapazes e dos senhores?” Os neo-torcedores são incapazes de reconhecer um time pelo seu escudo, mas adoram comemorar gols. Gostam de se fantasiar, de dançar, de tirar fotos. São as meninas lindas e esfuziantes que passam o ano inteiro voando Brasil afora, de norte a sul, para participar de carnavais fora de época; a turma que pode dar não-sei-quantos-mil reais num abadá de bloco. Não vão à arquibancada para torcer, vão na esperança de aparecer no telão, de receber tuítes: “Amiga, arrasou nesse modelito!!!”.  Para a turma-que-pode-pagar-mais-caro, o país é uma festa móvel, um réveillon sem fim, e agora, vejam só, Copa do Mundo no Brasil, a possibilidade de fazer parte de uma coisa que está sendo assistida com inveja de Miami a Bariloche! 

No extremo oposto, temos os torcedores calejados, que entendem de futebol sim, que torcem sim, que conhecem até o roupeiro do time, que podem recitar de cor cinquenta escalações diferentes de seu clube, até mesmo de antes deles próprios terem nascido. E olhe, não me refiro aos “hooligans”, aos que vão para brigar; me refiro aos torcedores que apenas torcem, que estão lá sinceramente por amor ao time, mas é um amor meio shakespeariano, que corre o risco de transbordar em sangue derramado. Viajam passando fome, se endividam, dormem na rua, levam garrafada na cabeça, mas torcem, gritam, ululam, enrouquecem e enlouquecem durante 90 minutos porque é sua forma de entrar em campo e ajudar a bola a transpor a linha fatal.

Claro, são duas caricaturas, dois extremos da escala. Mas qual dos dois está certo, qual está errado? Qual dos dois deveria ser extinto para que só o outro prevalecesse?  Qual dos dois é o Brasil?


domingo, 6 de julho de 2014

3544) Parcerias literárias (6.7.2014)



A literatura é uma atividade individual, solitária. Em nossa cultura, um romance com dois autores chama a atenção, tanto quanto um quadro pintado por dois pintores diferentes.  Há um consenso de que a criação artística se dá num recesso tão íntimo e remoto que não há como duas pessoas acessarem as mesmas idéias ou emoções, ou as mesmas habilidades técnicas.

Sempre me perguntei por que a literatura não faz como a música popular. Fulano faz uma melodia, e quando está pronta ele a entrega a Sicrano para que coloque ali uma letra. Ou, no caso inverso, Beltrano escreve uma letra e dá para Fulano musicar. Assim trabalharam duplas famosas de músico/letrista, não só da MPB (João Bosco / Aldir Blanc, Baden Powell / Paulo César Pinheiro, etc.) como da música internacional (Rodgers / Hammerstein, Gilbert / Sullivan, etc.).

Há também o caso das duplas versáteis, em que ambos fazem música e letra, como Lennon / MacCartney. O que não se altera é o senso de criação compartilhada, de um trabalho conjunto que nem por isto deixa de ser individualíssimo.  Claro que é preciso haver um entendimento e um respeito muito grandes, para superar todo o desgaste da criação conjunta (“não gostei disso que você fez, é melhor tirar e fazer de novo”), mas em música ninguém estranha a criação em parceria.

Penso nisto sempre que vejo alguém tocar na eterna dicotomia da prosa de ficção: os escritores de enredo e os de estilo.  Os primeiros são grandes inventores de histórias interessantes, mas escrevem de maneira pobre, fosca, cheia de clichês, etc.  Os segundos têm uma criatividade verbal impressionante, mas são incapazes de imaginar uma história que não seja repetição banal do déjà-vu e do déjà-lu.

Por que não trabalham em parceria, um inventando e o outro escrevendo?  Roteiristas de cinema fazem isso o tempo todo. Parece que esse tipo de parceria só vinga na ficção popular, como o romance policial, e volto ao meu exemplo preferido. Ellery Queen é o pseudônimo de uma dupla de autores, onde Frederick Dannay preparava resumos detalhadíssimos, de 20 ou 30 páginas, com todos os detalhes importantes da história, e os entregava a Manfred Lee, que de posse deles dava vida aos personagens, aos diálogos, às situações, às emoções.

Acontece também no que a gente chama brincando de “FC da quarta idade”, onde um autor veterano e já idoso, sem fôlego para escrever um romance de 400 páginas, prepara uma escaleta para ser desenvolvida por um autor mais novo.  Mas na literatura mainstream esse conceito ainda vai demorar. No Brasil, a única dupla de romancistas em parceria que conheço é a de José Roberto Torero & Marcus Pimenta.


sábado, 5 de julho de 2014

3543) Como ser realista (5.7.2014)



(Philip K. Dick)

Uma vez eu estava num ambiente só de norte-americanos, cercado de amigos que discutiam com veemência algum item da cultura-de-massas deles, algum troço que nem eu, o sujeito mais americanizado da minha geração, tinha ouvido falar.  Era como um norueguês em Campina Grande, ouvindo a gente recordar trechos do “Forró de Zé Lagoa”.  

E tive uma sensação repentina de que aquilo ali (era um programa de TV qualquer dos anos 1960, que nunca deve ter chegado no Brasil) era extremamente real para eles, fazia parte do mundo, e qualquer explicação do mundo teria que ser capaz de explicar também aquilo, de maneira tão natural quanto um de nós explicando a existência do “Forró de Zé Lagoa”.

Realismo, para uns, é isso: um realismo científico, porque se uma experiência científica produzir dez resultados diferentes, a teoria certa é a que explica de maneira cabal a todos. (Isso não impede nenhuma das teorias científicas vigentes de ter catálogos inteiros de coisas que tentaram explicar e não conseguiram.)

Os norte-americanos (pensei naquela ocasião) são “reality believers”, eles acreditam que o mundo real existe de verdade.  Por isso que um Philip K. Dick incomodava tanto em vida, com suas puxadas-de-tapete metalinguísticas, em que nada é o que a gente pensava ser.  PKD furava um buraco no balão do mundo. Antes, escritores como Clarke ou Asimov produziam epifanias, “sense of wonder”, numa expansão do espaço conhecido. Criavam universos extraordinários, mas isso não fazia a vida humana no século 20 da Terra deixar de existir ou de ter importância.

A mente humana aceita olhar para a correnteza fatal do fantástico, se tiver alguns rochedos de realidade a que se agarrar.  PKD fornecia esses rochedos ao leitor, mas a certa altura via-se que eram de papel machê. "O Real Não Existe"; os manuscritos da Exegese, o conjunto de reflexões e anotações que ele escreveu nos últimos anos de vida, discutem o tempo inteiro essas questões infinitas.

O leitor precisa de realismo aparente, de uma história que pareça verdadeira, não de trapaças. Ninguém tem muita paciência, hoje em dia, para histórias bizarras ou feéricas que depois de mil aventuras terminam dizendo que “aquilo não passara de um sonho”.  Dizer que foi um sonho é o mais baixo dos golpes, é como querer fazer uma canastra com sete melés. 

No século 19, em muitos contos de Machado inclusive, era uma espécie de bater-na-madeira com que todo escritor sério se obrigava a concluir uma história meio fantasiosa demais.  Era como ele levasse o leitor para um passeio e quisesse na última linha trazê-lo de volta para o lugar de onde decolou.



sexta-feira, 4 de julho de 2014

3542) O mundo acaba hoje? (4.7.2014)



E lá vai entrar em campo mais uma vez a coitada da Seleção Brasileira, carregando o peso das nossas expectativas, do nosso “complexo de viralatas”, do nosso valor de “gente bronzeada”, do nosso jeitinho, da nossa “grandiosa missão histórica”, do “nosso papel no concerto das nações”... Ganhe ou perca, esse grupo de rapazes vai para o sacrifício. Se perderem, virarão os bodes expiatórios de todas as nossas frustrações. Se ganharem, virarão (como dizia Paulo Emílio Salles Gomes) “bodes exultórios”, indivíduos meio que pegados no laço e transformados em heróis desmedidos, símbolos da Pátria, modelos de cidadania e de bravura guerreira.

Nesta Copa está dando tudo ao contrário. Otimistas com a vitória na Copa das Confederações, ano passado, dissemos: “O time tá pronto, é esse aí, e vai entrar arrasando.”  Nosso medo era com relação à Copa em si – os estádios, os transportes, a rede hoteleira, os assaltos, as manifestações... Na hora H, virou: bem ou mal, a Copa está acontecendo, os problemas são os normais de qualquer megaevento em qualquer país, e há um certo consenso da imprensa de que é uma Copa muito boa do ponto de vista esportivo e logístico. O problema agora é o nosso time.

No jogo contra o Chile, as crises nervosas, o chororô, as chances perdidas, o evidente nervosismo dos jogadores nos deixaram perplexos.  Mesmo jovens, são atletas experientes que jogam em grandes clubes, ganham fortunas, estão acostumados a grandes decisões. Como sempre, no entanto, botamos nas costas deles um peso desproporcional ao de uma competição esportiva, e só continuamos na Copa graças a duas bolas chilenas na trave. Nem a torcida escapou: quem tem dinheiro para pagar os ingressos caríssimos da Fifa é (ao que parece) gente que nunca pisou numa arquibancada. Não sabem torcer, não sabem incentivar o time. Vão esperando a goleada e contando com a festa. Quando o time adversário faz um gol, eles fazem beicinho e pedem o dinheiro de volta.

O time pode ganhar hoje? Pode ser campeão? Claro que pode, porque seu potencial é o mesmo dos candidatos de sempre (Alemanha, Holanda, Argentina, França, etc.).  Pode também dar adeus hoje ou no próximo jogo, pelos mesmos motivos. O que ele quer todos também querem. O brasileiro, sem perder o Complexo de Viralatas, adquiriu um Complexo de Liga da Justiça, de achar que qualquer seleção nossa é feita de super-heróis, que somos “o país do futebol” (não somos), que temos a obrigação de ganhar sempre (não temos). Vamos relaxar, pessoal. Relaxado se joga melhor, se torce melhor. Se ganharmos, festa. Ser perdermos, mais meio século no divã. Pode ajudar a forjar a consciência incriada da nossa raça.




quinta-feira, 3 de julho de 2014

3541) Histórias policiais (3.7.2014)



(G. K. Chesterton)

Será que o leitor de literatura policial (especialmente a do que chamamos de “mistério detetivesco”) é um leitor diferente de todos os outros?  Jorge Luís Borges dizia que sim, dizia que foi a literatura de Edgar Poe e Conan Doyle que criou esse leitor desconfiado, que não havia antes na tradição literária. Um leitor em-guarda, de pé atrás, meio paranóico, que desconfia de tudo que lhe é contado. (Nesse sentido, o leitor de livro policial é o contrário do leitor de literatura fantástica, do qual o que se espera é justamente uma “voluntária suspensão da descrença”).

Chesterton dizia algo parecido com o escritor de romance policial, que para ele não era um escritor como os outros.  Seu detetive, o Padre Brown, às vezes parece uma fotografia de Cartier-Bresson convivendo com gravuras em metal de romances antigos. Disse ele uma vez que escrevia para esquentar o mercado da literatura policial (a expressão é minha, não dele) e fazer com que fossem escritos muitos outros livros (diz ele), porque na verdade o que ele queria era ter muita coisa do gênero para ler. (Aqui: http://tinyurl.com/o6jar5n).

Porque (continua Chesterton) o escritor de romance policial deixa de desfrutar do maior prazer do leitor do gênero, que é defrontar-se com um mistério inexplicável, e sair deslindando tudo, fio por fio. O escritor foi quem criou o mistério, portanto ele já sabe como o mistério acaba. Ele é o Guardião do Spoiler Terminal. Ele sabe tudo, portanto ele não consegue se encantar com nada. Daí precisar de livros alheios.

“Não posso me mostrar pasmo,” diz Chesterton, “no fim do livro, com uma revelação que eu já estava planejando desde o início, nem posso me mostrar desconcertado e questionador quanto à ocultação de algo que eu próprio me esforcei para ocultar.”  Ler e escrever um romance policial é como jogar xadrez consigo mesmo, de ambos os lados do tabuleiro, tentando esquecer o que acabou de planejar, enquanto dá a volta à mesa. Alguém pode chegar a esse ponto, de ignorar coisas que acabou de pensar?

R. L. Stevenson conta em seu “Episódio sobre Sonhos” que em sonho imaginou uma história melodramática de amor e crime, e que no momento do desfecho jamais poderia ter esperado a reviravolta que houve na situação. “Mas como pode ser,” pergunta ele, “como pude ignorar essa surpresa, se era a minha própria mente que estava criando o que eu estava assistindo?”.  Em todo caso, a capacidade de ler um parágrafo que a gente acabou se escrever com os olhos de alguém que nunca leu aquilo é algo que se desenvolve, se exercita. Ajuda a escrever, ajuda a deixar as coisas da página com um certo 3D.