quarta-feira, 9 de julho de 2014

3546) "O Livro das Provas" (9.7.2014)



A história de detetive é chamada de “whodunit” (por girar em torno de “quem fez”, quem praticou o crime) ou “howdunit” (“como fez”, como o crime foi praticado – entram aí todas as histórias de crimes impossíveis, crimes de quarto fechado, etc.). E existe também o chamado romance policial psicológico, o “whydunit”. Por que fez? Qual a razão do crime? O que se passa no interior da mente de quem mata?

The Book of Evidence de John Banville (O Livro das Provas, Ed. Record, 2002, tradução de Maria Alice Máximo) é um romance curto e denso (220 páginas), e se apresenta como o testemunho de um criminoso, Freddie Montgomery, que se dirige ao juiz e ao júri para explicar as razões do crime que cometeu. Banville é um estilista rico em recursos, e o criminoso vai brotando de frase em frase, de parágrafo em parágrafo, numa narrativa autoexplicativa que nos deixa perplexos.

Freddie é um exemplo consumado de “narrador não-confiável”, não porque minta, mas porque, como acontece com todo narcisista, seu entendimento das coisas é deformado pelo gigantesco campo gravitacional do seu ego. “Nunca imaginei que aconteceria algo tão vulgar quanto uma investigação policial”, diz ele em plena preparação do crime.  Quando uma vítima o atrapalha um pouco, ele reclama: “Não é justo que uma coisa assim aconteça!”.

A história tem alguns aspectos improváveis, mas foi baseada em fatos reais, um crime célebre na Irlanda nos anos 1980, uma série de acontecimentos que alguém na época definiu como “grotescos, sem precedentes, bizarros e inacreditáveis”. O lado exterior dos fatos foi bastante comum; mas todos se perguntavam: “Afinal de contas, para que diabo ele fez isso tudo?”  Um desses crimes cuja gratuidade desconcerta qualquer análise. Crimes sem propósito nos fascinam. Somos capazes de entender quem mata por dinheiro, por ódio ou por ciúme, mas crimes sem razão aparente nos aterrorizam com o abismo espantoso do absurdo.

O livro de Banville é uma espécie de O Estrangeiro de Camus sem aquela aridez de xilogravura em preto e branco. Ao invés de Meursault, que quase nada diz de si mesmo, Freddie escancara seus pensamentos com volúpia diante do leitor, soterra o leitor com seu exibicionismo, sua vaidade, sua pose de dândi que acha que o mundo lhe deve tudo, suas inseguranças de menino mimado que arranca asas das moscas. Banville faz isso com uma prosa brilhante, nítida, cheia de símiles inesperados e vívidos, de revelações indiretas que nos fazem ver o assassino (e a humanidade) com receio, com pena, com revolta e com uma incômoda sensação de familiaridade. Todos nós conhecemos meia dúzia de pessoas como Freddie Montgomery.


terça-feira, 8 de julho de 2014

3545) Torcida de Copa (8.7.2014)



De quatro em quatro anos, um curioso fervilhar de criaturas emerge das dobras do tecido social da Nação: os torcedores de Copa. Pouco entendem de futebol. Assistem aquilo como eu assisto hóquei-sobre-patins. Em todos os lares brasileiros brotam tias, avós, cunhados, vizinhos, a criançada, aquelas legiões de leigos sem clube que na Copa se lembram de que é preciso torcer pela Pátria.  Com a gentrificação do futebol, a cada década um comércio mais caro e mais ferrenhamente imposto à população, essa torcida passou a invadir os estádios onde as Copas do Mundo são disputadas.  É gente que jamais pisaria numa geral do Maracanã. (Como somos velhos, todos nós... somos do tempo em que havia geral no Maracanã.)

Disse na semana passada Bob Fernandes, no websaite Terra: “Dúvidas, muitas dúvidas. Como essas senhoras e senhoritas conseguirão pular, saltar, vibrar nas arquibancadas com tanto salto 12? Sob o escaldante sol do Ceará resistirão as maquiagens, o gel dos rapazes e dos senhores?” Os neo-torcedores são incapazes de reconhecer um time pelo seu escudo, mas adoram comemorar gols. Gostam de se fantasiar, de dançar, de tirar fotos. São as meninas lindas e esfuziantes que passam o ano inteiro voando Brasil afora, de norte a sul, para participar de carnavais fora de época; a turma que pode dar não-sei-quantos-mil reais num abadá de bloco. Não vão à arquibancada para torcer, vão na esperança de aparecer no telão, de receber tuítes: “Amiga, arrasou nesse modelito!!!”.  Para a turma-que-pode-pagar-mais-caro, o país é uma festa móvel, um réveillon sem fim, e agora, vejam só, Copa do Mundo no Brasil, a possibilidade de fazer parte de uma coisa que está sendo assistida com inveja de Miami a Bariloche! 

No extremo oposto, temos os torcedores calejados, que entendem de futebol sim, que torcem sim, que conhecem até o roupeiro do time, que podem recitar de cor cinquenta escalações diferentes de seu clube, até mesmo de antes deles próprios terem nascido. E olhe, não me refiro aos “hooligans”, aos que vão para brigar; me refiro aos torcedores que apenas torcem, que estão lá sinceramente por amor ao time, mas é um amor meio shakespeariano, que corre o risco de transbordar em sangue derramado. Viajam passando fome, se endividam, dormem na rua, levam garrafada na cabeça, mas torcem, gritam, ululam, enrouquecem e enlouquecem durante 90 minutos porque é sua forma de entrar em campo e ajudar a bola a transpor a linha fatal.

Claro, são duas caricaturas, dois extremos da escala. Mas qual dos dois está certo, qual está errado? Qual dos dois deveria ser extinto para que só o outro prevalecesse?  Qual dos dois é o Brasil?


domingo, 6 de julho de 2014

3544) Parcerias literárias (6.7.2014)



A literatura é uma atividade individual, solitária. Em nossa cultura, um romance com dois autores chama a atenção, tanto quanto um quadro pintado por dois pintores diferentes.  Há um consenso de que a criação artística se dá num recesso tão íntimo e remoto que não há como duas pessoas acessarem as mesmas idéias ou emoções, ou as mesmas habilidades técnicas.

Sempre me perguntei por que a literatura não faz como a música popular. Fulano faz uma melodia, e quando está pronta ele a entrega a Sicrano para que coloque ali uma letra. Ou, no caso inverso, Beltrano escreve uma letra e dá para Fulano musicar. Assim trabalharam duplas famosas de músico/letrista, não só da MPB (João Bosco / Aldir Blanc, Baden Powell / Paulo César Pinheiro, etc.) como da música internacional (Rodgers / Hammerstein, Gilbert / Sullivan, etc.).

Há também o caso das duplas versáteis, em que ambos fazem música e letra, como Lennon / MacCartney. O que não se altera é o senso de criação compartilhada, de um trabalho conjunto que nem por isto deixa de ser individualíssimo.  Claro que é preciso haver um entendimento e um respeito muito grandes, para superar todo o desgaste da criação conjunta (“não gostei disso que você fez, é melhor tirar e fazer de novo”), mas em música ninguém estranha a criação em parceria.

Penso nisto sempre que vejo alguém tocar na eterna dicotomia da prosa de ficção: os escritores de enredo e os de estilo.  Os primeiros são grandes inventores de histórias interessantes, mas escrevem de maneira pobre, fosca, cheia de clichês, etc.  Os segundos têm uma criatividade verbal impressionante, mas são incapazes de imaginar uma história que não seja repetição banal do déjà-vu e do déjà-lu.

Por que não trabalham em parceria, um inventando e o outro escrevendo?  Roteiristas de cinema fazem isso o tempo todo. Parece que esse tipo de parceria só vinga na ficção popular, como o romance policial, e volto ao meu exemplo preferido. Ellery Queen é o pseudônimo de uma dupla de autores, onde Frederick Dannay preparava resumos detalhadíssimos, de 20 ou 30 páginas, com todos os detalhes importantes da história, e os entregava a Manfred Lee, que de posse deles dava vida aos personagens, aos diálogos, às situações, às emoções.

Acontece também no que a gente chama brincando de “FC da quarta idade”, onde um autor veterano e já idoso, sem fôlego para escrever um romance de 400 páginas, prepara uma escaleta para ser desenvolvida por um autor mais novo.  Mas na literatura mainstream esse conceito ainda vai demorar. No Brasil, a única dupla de romancistas em parceria que conheço é a de José Roberto Torero & Marcus Pimenta.


sábado, 5 de julho de 2014

3543) Como ser realista (5.7.2014)



(Philip K. Dick)

Uma vez eu estava num ambiente só de norte-americanos, cercado de amigos que discutiam com veemência algum item da cultura-de-massas deles, algum troço que nem eu, o sujeito mais americanizado da minha geração, tinha ouvido falar.  Era como um norueguês em Campina Grande, ouvindo a gente recordar trechos do “Forró de Zé Lagoa”.  

E tive uma sensação repentina de que aquilo ali (era um programa de TV qualquer dos anos 1960, que nunca deve ter chegado no Brasil) era extremamente real para eles, fazia parte do mundo, e qualquer explicação do mundo teria que ser capaz de explicar também aquilo, de maneira tão natural quanto um de nós explicando a existência do “Forró de Zé Lagoa”.

Realismo, para uns, é isso: um realismo científico, porque se uma experiência científica produzir dez resultados diferentes, a teoria certa é a que explica de maneira cabal a todos. (Isso não impede nenhuma das teorias científicas vigentes de ter catálogos inteiros de coisas que tentaram explicar e não conseguiram.)

Os norte-americanos (pensei naquela ocasião) são “reality believers”, eles acreditam que o mundo real existe de verdade.  Por isso que um Philip K. Dick incomodava tanto em vida, com suas puxadas-de-tapete metalinguísticas, em que nada é o que a gente pensava ser.  PKD furava um buraco no balão do mundo. Antes, escritores como Clarke ou Asimov produziam epifanias, “sense of wonder”, numa expansão do espaço conhecido. Criavam universos extraordinários, mas isso não fazia a vida humana no século 20 da Terra deixar de existir ou de ter importância.

A mente humana aceita olhar para a correnteza fatal do fantástico, se tiver alguns rochedos de realidade a que se agarrar.  PKD fornecia esses rochedos ao leitor, mas a certa altura via-se que eram de papel machê. "O Real Não Existe"; os manuscritos da Exegese, o conjunto de reflexões e anotações que ele escreveu nos últimos anos de vida, discutem o tempo inteiro essas questões infinitas.

O leitor precisa de realismo aparente, de uma história que pareça verdadeira, não de trapaças. Ninguém tem muita paciência, hoje em dia, para histórias bizarras ou feéricas que depois de mil aventuras terminam dizendo que “aquilo não passara de um sonho”.  Dizer que foi um sonho é o mais baixo dos golpes, é como querer fazer uma canastra com sete melés. 

No século 19, em muitos contos de Machado inclusive, era uma espécie de bater-na-madeira com que todo escritor sério se obrigava a concluir uma história meio fantasiosa demais.  Era como ele levasse o leitor para um passeio e quisesse na última linha trazê-lo de volta para o lugar de onde decolou.



sexta-feira, 4 de julho de 2014

3542) O mundo acaba hoje? (4.7.2014)



E lá vai entrar em campo mais uma vez a coitada da Seleção Brasileira, carregando o peso das nossas expectativas, do nosso “complexo de viralatas”, do nosso valor de “gente bronzeada”, do nosso jeitinho, da nossa “grandiosa missão histórica”, do “nosso papel no concerto das nações”... Ganhe ou perca, esse grupo de rapazes vai para o sacrifício. Se perderem, virarão os bodes expiatórios de todas as nossas frustrações. Se ganharem, virarão (como dizia Paulo Emílio Salles Gomes) “bodes exultórios”, indivíduos meio que pegados no laço e transformados em heróis desmedidos, símbolos da Pátria, modelos de cidadania e de bravura guerreira.

Nesta Copa está dando tudo ao contrário. Otimistas com a vitória na Copa das Confederações, ano passado, dissemos: “O time tá pronto, é esse aí, e vai entrar arrasando.”  Nosso medo era com relação à Copa em si – os estádios, os transportes, a rede hoteleira, os assaltos, as manifestações... Na hora H, virou: bem ou mal, a Copa está acontecendo, os problemas são os normais de qualquer megaevento em qualquer país, e há um certo consenso da imprensa de que é uma Copa muito boa do ponto de vista esportivo e logístico. O problema agora é o nosso time.

No jogo contra o Chile, as crises nervosas, o chororô, as chances perdidas, o evidente nervosismo dos jogadores nos deixaram perplexos.  Mesmo jovens, são atletas experientes que jogam em grandes clubes, ganham fortunas, estão acostumados a grandes decisões. Como sempre, no entanto, botamos nas costas deles um peso desproporcional ao de uma competição esportiva, e só continuamos na Copa graças a duas bolas chilenas na trave. Nem a torcida escapou: quem tem dinheiro para pagar os ingressos caríssimos da Fifa é (ao que parece) gente que nunca pisou numa arquibancada. Não sabem torcer, não sabem incentivar o time. Vão esperando a goleada e contando com a festa. Quando o time adversário faz um gol, eles fazem beicinho e pedem o dinheiro de volta.

O time pode ganhar hoje? Pode ser campeão? Claro que pode, porque seu potencial é o mesmo dos candidatos de sempre (Alemanha, Holanda, Argentina, França, etc.).  Pode também dar adeus hoje ou no próximo jogo, pelos mesmos motivos. O que ele quer todos também querem. O brasileiro, sem perder o Complexo de Viralatas, adquiriu um Complexo de Liga da Justiça, de achar que qualquer seleção nossa é feita de super-heróis, que somos “o país do futebol” (não somos), que temos a obrigação de ganhar sempre (não temos). Vamos relaxar, pessoal. Relaxado se joga melhor, se torce melhor. Se ganharmos, festa. Ser perdermos, mais meio século no divã. Pode ajudar a forjar a consciência incriada da nossa raça.




quinta-feira, 3 de julho de 2014

3541) Histórias policiais (3.7.2014)



(G. K. Chesterton)

Será que o leitor de literatura policial (especialmente a do que chamamos de “mistério detetivesco”) é um leitor diferente de todos os outros?  Jorge Luís Borges dizia que sim, dizia que foi a literatura de Edgar Poe e Conan Doyle que criou esse leitor desconfiado, que não havia antes na tradição literária. Um leitor em-guarda, de pé atrás, meio paranóico, que desconfia de tudo que lhe é contado. (Nesse sentido, o leitor de livro policial é o contrário do leitor de literatura fantástica, do qual o que se espera é justamente uma “voluntária suspensão da descrença”).

Chesterton dizia algo parecido com o escritor de romance policial, que para ele não era um escritor como os outros.  Seu detetive, o Padre Brown, às vezes parece uma fotografia de Cartier-Bresson convivendo com gravuras em metal de romances antigos. Disse ele uma vez que escrevia para esquentar o mercado da literatura policial (a expressão é minha, não dele) e fazer com que fossem escritos muitos outros livros (diz ele), porque na verdade o que ele queria era ter muita coisa do gênero para ler. (Aqui: http://tinyurl.com/o6jar5n).

Porque (continua Chesterton) o escritor de romance policial deixa de desfrutar do maior prazer do leitor do gênero, que é defrontar-se com um mistério inexplicável, e sair deslindando tudo, fio por fio. O escritor foi quem criou o mistério, portanto ele já sabe como o mistério acaba. Ele é o Guardião do Spoiler Terminal. Ele sabe tudo, portanto ele não consegue se encantar com nada. Daí precisar de livros alheios.

“Não posso me mostrar pasmo,” diz Chesterton, “no fim do livro, com uma revelação que eu já estava planejando desde o início, nem posso me mostrar desconcertado e questionador quanto à ocultação de algo que eu próprio me esforcei para ocultar.”  Ler e escrever um romance policial é como jogar xadrez consigo mesmo, de ambos os lados do tabuleiro, tentando esquecer o que acabou de planejar, enquanto dá a volta à mesa. Alguém pode chegar a esse ponto, de ignorar coisas que acabou de pensar?

R. L. Stevenson conta em seu “Episódio sobre Sonhos” que em sonho imaginou uma história melodramática de amor e crime, e que no momento do desfecho jamais poderia ter esperado a reviravolta que houve na situação. “Mas como pode ser,” pergunta ele, “como pude ignorar essa surpresa, se era a minha própria mente que estava criando o que eu estava assistindo?”.  Em todo caso, a capacidade de ler um parágrafo que a gente acabou se escrever com os olhos de alguém que nunca leu aquilo é algo que se desenvolve, se exercita. Ajuda a escrever, ajuda a deixar as coisas da página com um certo 3D.


quarta-feira, 2 de julho de 2014

3540) O passeio dos mortos (2.7.2014)



Conta-se que no ano de 1647 os habitantes de uma cidade na Itália (Venzone, na província de Udine) tiveram um dia uma surpresa macabra.  Escavações no cemitério local revelaram o corpo de um homem que resistira à decomposição, mesmo morto há muitos anos. Era (diz-se) um dos membros da família Scala, a mesma que estava patrocinando aquelas escavações e obras de reforma no cemitério. Deram-lhe o nome de O Corcunda, porque tinha a espinha fortemente curvada.  Logo alguém começou a dizer que o defunto era mágico, fazia milagres, etc.  Esse culto durou até 1797, quando a invasão das tropas de Napoleão atingiu aquelas bandas. Soldados arrancaram com faca pedaços do corpo e das partes do Corcunda, por terem ouvido dizer que eram afrodisíacas.

A explicação científica é que a rocha calcária, atravessada por centenas de correntes subterrâneas muito alcalinas, deixa o terreno propício à conservação dos tecidos, dependendo de outros fatores. Depois disso tudo, os habitantes começaram a praticar um ritual.  Num dia festivo e de homenagem, o morto é retirado do esquife, vestido com roupas e enfeites da moda do momento, e é trazido à luz do sol, até a viúva. Ela o conduz, passeia e conversa com ele, conta-lhe novidades, fala da saudade que sente; no fim, ele é levado de novo para a cripta. Em dias festivos, veem-se numerosas famílias passeando ao sol, entrecruzando-se nas alamedas ao lado dos seus mortos queridos.

As fotos no saite mostram (em preto e branco) uma espécie de pátio externo, e uma fila dupla de pessoas, o vivo mantendo de pé o morto, diante de si, às vezes tendo que usar as duas mãos para mantê-lo erguido. O sol é forte, faz com que os vivos contraiam o rosto, mas eles sorriem para a câmera, não demonstram estar horrorizados ou incomodados. Os mortos têm a cara devastada e arenosa de todas as múmias. Numa foto mais próxima, um homem de meia idade segura um corpo cujo rosto parece dizer “eu sou você amanhã”.

“Nós que aqui estamos, por vós esperamos”.  É uma antiga inscrição nos cemitérios; serviu de título a um belo poema-documentário brasileiro.  Os mortos só não contavam com o imperialismo da vida, a ditadura da vida, essa força expansionista e dominadora que quer tudo manter dentro de si. É preciso trazer o morto à vida, dedicar-lhe um sábado de sol cheio de cerimônias e rezas, cachorros-quentes e bandeirolas, orações contritas, reencontro, ritual.  De nada adianta os mortos esperarem por nós, porque nós é que estamos invadindo seu reino, descobrindo e inventando a pedra-filosofal que um dia nos permitirá trazê-los de volta, intactos, saudáveis, conscientes, todos eles, ao mesmo tempo ou de um em um.


terça-feira, 1 de julho de 2014

3539) Literatura e biografia (1.7.2014)





Uma das coisas que gosto é ler biografias de escritores, cineastas, etc.  Quando me interesso pelo trabalho de um artista, fico curioso em conhecer aquela figura por trás de livros tão interessantes, canções tão bem feitas. “Quem é o camarada que escreveu um livro tão genial, tão maluco, tão imprevisível?”  Acho isso uma expansão natural da nossa curiosidade por alguém.


Isso modifica nossa visão da obra? Depende. Há leitores que só sabem pensar em termos de pessoas, e para eles a obra é apenas um caminho para saber o que Shakespeare achava do amor, o que Drummond pensava do Brasil, quais as raízes das neuroses de Kubrick ou quais as preferências sexuais de Nelson Rodrigues. 

Às vezes chamo esses leitores de “leitor Contigo”, porque o ideal para eles seria a existência de uma Revista Contigo da literatura, revelando fofocas sórdidas (“Leia aqui: a verdadeira razão das brigas de Scott e Zelda”), as especulações indiscretas (“Hemingway era mesmo impotente?”) ou uma miríade de factoides irrelevantes (“Não perca: a cor preferida de todos os ganhadores do Nobel”).

O outro tipo de leitor é mais fácil de encontrar entre escritores, críticos, professores de um modo geral, pessoas que pela sua formação (ou deformação) tendem a ver a obra de arte como o ponto final de tudo (“o mundo existe para resultar num livro”, como dizia Mallarmé). Ele não se interessa muito pelo autor, no que sua vida e sua pessoa têm de extra-obra. Ele procura na vida os ecos da obra, e não na obra os reflexos da vida.  

Biografias lhe servem para procurar feito um detetive tudo que ajudou na concepção de tal cena do filme, de tal verso do poema. O resto é irrelevância que vai para o porão da memória após a leitura. Eu sou assim.

Numa biografia, nada me intriga mais do que o processo criativo. Por isto gosto também do “making of” de um filme, ou dos relatos sobre as semanas de gravação de um CD, explicando o passo-a-passo dentro do estúdio. Como foi criada aquela pintura, aquela sinfonia, aquele curta-metragem?  

O processo criativo da arte (e o da ciência também, que é irmão do outro) é fascinante porque é imprevisível. Como sou também um artista criativo aos olhos de muita gente, recebo às vezes a pergunta: “Como foi feita a música X, o poema Y, o conto Z?” 

Respondo, quando posso, descrevendo o processo concreto: idéia inicial, quanto tempo levou, em que circunstâncias foi feito. Mas a maior pergunta, a que faço sempre ao abrir uma biografia ou estudo, é: “Como aquilo brotou na mente de uma pessoa?”. É a mais importante, que não sei responder nem sobre mim mesmo, e acabo indo procurar a resposta na mente dos outros.








domingo, 29 de junho de 2014

3538) O esporte Breton (29.6.2014)



(ilustração: Chema Madoz)

Por que chamamos o futebol de “o esporte bretão”? Aliás, chamamos não, chamávamos, porque faz tempo que não vejo um coleguinha da imprensa escrever isto sem que seja “em contexto” (ironicamente, etc.).  Falar assim a cru, a sério, é para quem diz “o escrete canarinho”, “a número cinco”...  Um estilo em extinção.  Houve uma época, no entanto, em que dizia-se isso a três por dois, provavelmente para lembrar a todos que era uma arte vinda da Inglaterra.

Então, por que não dizermos “o esporte inglês”?  Porque a Inglaterra também é chamada de Grã-Bretanha.  Isso deixa uma curiosidade: esses dois nomes de país são sinônimos?  Não, explica um videozinho didático que vi por aí na web, explicando a complicadíssima relação jurídico-institucional-hierárquica entre as Ilhas Britânicas (olha o nome aí) e suas atuais e antigas colônias. É um negócio mais complicado do que a partilha do espólio do Império Romano.  

Acontece que quando eu ouvia falar “Bretanha” meu ouvido não me arrastava para a Inglaterra. Bretanha para mim era aquela região mágica do litoral da França, em forma de triângulo mineiro truncado ou leão ruginte, apontando para noroeste em pleno Atlântico. Uma região mística, pau-a-pau com São José de Belmonte e a Área 51.  A Bretanha francesa de Nantes, onde Julio Verne criou um futuro que só aconteceria retroativamente em forma de steampunk.  Bretanha de Ernest Renan, que botou sob o microscópio da História o DNA de Cristo. De Pierre Souvestre, o homem que criou Fantomas. 

É a terra dos bretões, nome dado pelos romanos: Britannia. Os bretões da Inglaterra (“britons”) tinham sua língua, seus costumes, e foram encurralados pelos romanos ilha adentro. Depois veio a briga-de-cachorro-grande, a batalha dos normandos contra os anglo-saxões, mas eles, sempre ali.  O mais famoso que herdou seu selo, foi, na minha discreta opinião, André Breton, mais em nome e espírito do que em berço (nasceu na Normandia francesa, outra mina de ouro pra quem faz minisséries de aventuras).  Breton foi o inventor do surrealismo, esse terremoto psíquico que liquefaz a consciência disciplinar que nos foi imposta e deixa o inconsciente de fogo falar suas palavras de fogo. O criador da escrita automática, das enquetes eróticas, da hipno-imaginação.

“Esporte bretão” porque é um esporte místico, misterioso, apocalíptico, supersticioso, ocultista, cortejador dos deuses venais e das vestais do mistério. O futebol é um balé coreografado por escritores assim. Uma coreografia de dois grupos de bailarinos em cima de um tabuleiro de xadrez, onde de vez em quando uma casa explode e leva consigo um craque-dançarino para o além. Ou um time inteiro.


sábado, 28 de junho de 2014

3537) Vilões do passado (28.6.2014)



Se um cara é um grande artista, estou falando de artista grande mesmo, será que somos capazes de perdoar qualquer coisa politicamente incorreta que ele tenha feito no seu passado? (Esse conceito de politicamente correto/incorreto, aliás, está se expandindo exponencialmente, o que é um perigo.)  Na lista dos escritores politicamente apedrejados sempre aparecem Ezra Pound que teve simpatias pelo fascismo, Louis-Ferdinand Céline que era antissemita, e meia meia-dúzia de espantalhos habituais, que, como Guy Fawkes, conhecem a fama e o opróbrio na mesma medida.

Por exemplo: os escritores franceses colaboracionistas, cúmplices dos nazistas que invadiram o país e o sujeitaram durante alguns anos vergonhosos.  A Resistência Francesa foi uma coisa notável, mas ao mesmo tempo fomos ensinados a não achar que era tudo assim tão simples.  Em Hiroshima meu Amor, de Alain Resnais, vemos a violência e a humilhação a que é submetida uma mocinha que fica amante de um soldado alemão. Precisava mesmo, fazer aquilo tudo com ela?

As lealdades políticas já serviram para inflar carreiras artísticas ou literárias. e no mundo da esquerda isto já foi visto muitas vezes. O Partido decidia investir em determinados artistas e sufocar outros. Em alguns casos, tudo dava com os burros nágua, os exaltados resvalavam para o Limbo, os reprimidos explodiam em girândolas de idiomas. Vitória do Mercado?  Não, porque o mercado, como sempre, apenas corria a faturar um sucesso pré-existente.

Talvez no futuro nossos bisnetos vejam a briga ideológica entre a França de De Gaulle e a França da República de Vichy como uma mera dissensão entre iguais. Iremos todos para a mesma vala comum, misturando nosso DNA ao dos sacripantas contra quem lutamos a vida inteira. Estávamos todos (considerarão nosso bisnetos, à luz dos “ismos” em voga) no mesmo barco, o Titanic. Da literatura que produzimos só virá a se salvar o que ela tiver de literário, porque politicamente nos olharão com a mesma incompreensão com que olhamos os cristãos europeus da Renascença ou os fetichistas da natureza.

Chegará um momento em que será irrelevante dizer que Jorge Amado, George Orwell e David Siqueiros eram de esquerda; deles só ficará o que era seu e de mais ninguém. Pouco importa a linha ideológica a que se julgassem pertencentes. Tudo isso retrocederá para segundo plano à medida que os séculos passarem e eles forem vistos com outros olhos. Pouco importa o que acreditaram. Quem pode dizer para quem rezava Shakespeare quando não estava escrevendo?  Do ponto de vista de quem o lê, faz diferença se Fernando Pessoa acreditava mesmo em Deus ou não?