quinta-feira, 12 de junho de 2014

3523) Pessoas desaparecidas (12.6.2014)



(ilustração: José Oiticica Filho, 1953)

Por mim, podia ser um gênero literário à parte. Nítido, com um conjunto de situações essenciais, de premissas capazes de abrir para o autor um infinito de possibilidades para a exploração de lugares, pessoas, tipos, situações bizarras ou patéticas.  Estou me referindo ao Romance da Pessoa Desaparecida, que tanto pode acontecer do ponto de vista dos que procuram esse indivíduo quanto do ponto de vista do próprio desaparecido, em sua nova condição.

Desaparecer significa sumir sem deixar rastro nem notícia, sumir sem ser mais alcançado por nenhuma das pessoas com quem se tinha vínculos (família, amigos, trabalho).  Às vezes, a pessoa aproveita uma circunstância fortuita para trocar de identidade e se fingir de morto (O Passageiro: Profissão Repórter, de Antonioni). O conto “Wakefield” de Nathaniel Hawthorne (que incluí na minha antologia Contos Fantásticos no Labirinto de Borges) fala de um homem que some de casa e fica vigiando a esposa durante anos, às escondidas.

Não vou incluir, neste capítulo, pessoas que foram simplesmente assassinadas e seu corpo nunca foi localizado.  Meu interesse é por pessoas que tomaram a decisão de sumir, sumiram, estão vivas e incógnitas.  Sumiram por dívidas, por desespero, por problemas familiares, por aventura, por desorientação mental, não importa. É a famosa pessoa que sai para comprar cigarros e nunca mais se sabe dela, que pegou um ônibus e não chegou ao destino, que limpou a conta no Banco e evaporou-se.

O romance Quarenta Dias de Maria Valéria Rezende cria sua variante: uma mulher começa a tentar localizar, numa cidade que mal conhece, uma pessoa de quem só sabe o nome e que parou de dar notícias à família.  E nessa busca, ela própria, que está vivendo uma vida meio troncha, de expectativas cortadas, numa meia-idade meio sombria, percebe que para tentar achar um desaparecido é preciso desaparecer também. 

Nossas cidades são cheias de desvãos, de espaços baldios, de territórios públicos para onde são empurrados milhares de pessoas sem rosto e sem nome diante do mundo.  Quem entra naquele espaço torna-se tão invisível quanto um porteiro, um ascensorista, uma doméstica. É o mundo dos sem-teto, dos sacoleiros, das pessoas que dormem em rodoviárias ou salas de espera de hospitais, que lavam e secam a roupa nas fontes das praças. Quem são?  Não sei, nunca parei para conversar com esses ETs.  Podem ter desaparecido como a Luísa Porto de Drummond,  como a Anastasia da família do czar, ou simplesmente como alguém que quis deixar para trás um nome sujo na praça, um rosto desprezado por alguém, uma vida que chegou a um beco-sem-saída e o jeito foi pular o Muro.


quarta-feira, 11 de junho de 2014

3522) Doukipudonktan (11.6.2014)



(Zazie no Metrô, Cosac Naify, 2009)

Raymond Queneau, um dos meus autores mais queridos (ver aqui: http://tinyurl.com/lprpneb) escreveu de tudo e refletiu sobre tudo. Um dos seus assuntos preferidos era a diferença (para ele gigantesca) entre o francês escrito e o falado.  Francês é uma língua invocada, cheia de partículas enigmáticas, letras mudas, hífens e acentos e sinais diacríticos eriçados em todas as direções. Parece aqueles apartamentos de viúvas idosas e chiques, repletos de bibelôs, adereços, quinquilharias ornamentais preservadas a todo custo.

Queneau sugeriu a criação de um “neo-francês”, depilando o idioma de todas essas franjas descartáveis. Não colou, claro. É mais fácil a Vigilância Sanitária de lá proibir certos queijos. Queneau comentava a tendência do francês a uma “coagulação fonética” em que os sons tendem a se fundir e as letras a se multiplicar. No texto “Écrit em 1937” (em Bâtons, Chiffres et Lettres, 1965), ele faz longos comentários sobre este tema e conclui: “On népa zabitué, sétou. Unfoua kon sra zabitué, saira toussel.” (Estas palavras exóticas, ditas em voz alta, serão entendidas por quem as ouvir; é o neo-francês fonético, mandando a etimologia às favas.)

Seu romance mais famoso, Zazie no Metrô (1959) começa com uma palavra mágica: “Doukipudonktan?”. É a pergunta que se faz o personagem, incomodado pelo odor corporal das pessoas amontoadas na estação à espera do trem. A palavra é a coagulação de “D’où qu’il pue donc tant?”.  Virou um teste para os tradutores.  Em inglês (o romance foi traduzido por Barbara Wright) encontrei “Holyfart watastink?” e “Howcanaystinksotho?” (o segundo é citado num saite, sem atribuição).

 Em português, a tradução lusitana de Alexandre Rodrigues (Círculo de Leitores, Lisboa, 1974) simplifica: “Donde parte este cheirete?”.  Em 1985 saiu pela Rocco a tradução de Irène Monique Harlek Cubic, que diz: “Pômakifedô!”.  A versão mais recente (2009) é a de Paulo Werneck para a Cosac Naify: “Dondekevemtantofedô?”. 


Só a análise dessas versões, das opções possíveis, das escolhas feitas, das pequenas infidelidades e dos volteios criativos, daria um artigo imenso.  Mas é um bom exemplo daqueles momentos em que dificilmente, em cem traduções, teremos duas iguais. A aglutinação sonora e semântica duma palavrinha assim é de tal porte que ela vira um nó indeslindável. É preciso inventar outra palavra, e nesses momentos a tradução se torna meio psicografia. É preciso entender como Queneau pensava, imaginá-lo tendo nascido no Brasil e como ele inventaria em português essa palavra de abertura. Que equivale a um “provocativo movimento”, a uma declaração de princípios, a um manifesto estético e social.



terça-feira, 10 de junho de 2014

3521) Meu São João (10.6.2014)



Meu São João espiritual começou na quarta-feira dia 4, no XIII Forum de Forró em Aracaju.  Três dias de palestras, debates e shows, tendo como homenageados este ano Antonio Barros & Cecéu (PB), Zé Calixto (PB), Edgard do Acordeon (SE) e Rogério (SE).  O Forum se realiza todos os anos na capital de Sergipe, e foi lá, em edições anteriores, que tive a alegria de bater longos papos com Almira Castilho (ex-parceira de Jackson do Pandeiro), Carmélia Alves (a Rainha do Baião), Dominguinhos, Onildo Almeida, D. Iolanda (viúva de Zé Dantas), o pesquisador cearense Nirez, o compositor João Silva e muitas outras pessoas ligadas ao mundo da música nordestina.

O São João para nós, nordestinos, é uma espécie de Copa do Mundo musical que dura um mês inteiro. Uma febre de festas que se estende por trinta dias e que no fim nos larga numa cama, extenuados e felizes.  A festa é a festa e se justifica por si só; mas a vida não é somente a festa. É trabalho também, e não devemos esquecer que quando estamos bebendo e dançando, bem satisfeitos, aqueles músicos em cima do palco estão trabalhando.  Estão se divertindo, também, mas sobrevivem daquilo (ao contrário de nós) e é do interesse deles todos que, assentada a poeira da festa, tenha havido algum tipo de proveito profissional para isso tudo. 

Vai daí que o Forum do Forró é um espaço onde se discutem as questões artísticas e profissionais do forró. O que é o forró?  Quais os estilos musicais que ele inclui?  Quem são os grandes criadores, e que tipo de parâmetros eles deixaram para nós?  O forró pertence ao ano inteiro ou só ao São João?  O forró de hoje ainda é rural ou já é todo urbano?  Como conviver com as “bandas de forró eletrônico” que arrancam cachês milionários das prefeituras do interior?  O que fazer com instrumentistas geniais que não arrastam multidões gigantescas mas são os responsáveis pela manutenção da tradição e pelo alto nível técnico do gênero?

O forró pé-de-serra é como a Lua: míngua, míngua, e quando parece que vai desaparecer começa a crescer de novo.  Já aconteceu antes e vai continuar acontecendo: e mais, a mesma coisa aconteceu e acontece com o cordel, a cantoria de viola, o samba de raiz e tantas outras formas de arte espontâneas e populares que precisam concorrer com formas industriais e planejadas. O São João está começando; que seja um momento de festa e também um momento de reflexão sobre os rumos da festa. Porque a festa é do povo, que fica, e não dos poderes, que passam.  Somos nós, os artistas, cantores, compositores, que devemos tomar a frente para manter vivo esse tipo de música. O resto passará, como já passou.


domingo, 8 de junho de 2014

3520) A Defenestração (8.6.2014)



Defenestramos o vereador Romualdo Bimbim, notório apostador de brigas-de-galo, administrador de uma camuflada rede de cambistas de ingressos de futebol e de shows de axé, devorador de picanhas gratuitas no restaurante Panela Cheia, cujo dono chantageava mercê de uma obscura transação de alvarás falsificados, comedor de menininhas selecionadas a dedo nas favelas por duas ou três assistentes sociais cuja mão ele molhava com perfumes de contrabando, notório incomodador da vizinhança em dias de jogos do Real Madrid cujos gols eram celebrados com foguetório e balbúrdia.

Defenestramos o dr. Aristarco Pompeu, rábula de porta de delegacia, rabiscador de habeas-corpus de emergência para playboys que reagem com bafafá à menor ameaça de bafômetro, assacador de consumidores inadimplentes, meeiro de indenizações fraudulentas despachadas na calada da noite mediante segredo de justiça e propinas pontuais, calígrafo-forjador emérito de chancelas e rubricas, viciado compulsivo em café, cigarros, baralho e rivotril.

Defenestramos a Dra. Vanessa Kamylla, socialite militante, perua por questão de foro íntimo, professora doutora em alguma coisa que ela nem lembra mais, futura herdeira de terrenos devolutos que abrigam parte da cracolância local, patronesse de feiras, quermesses, leilões, bazares e festivais de caridade, enóloga intuitiva com má memória para nomes e datas, aliciadora de conluios políticos à sorrelfa, colecionadora de cartões de crédito, habituê de shoppings de Miami e de cruzeiros no Caribe, esposa acarinhante e langorosa do septuagenário Dr. Cordeiro.

Defenestramos Deda Cambão, empresário no ramo de import-and-export, colecionador de Rolexes e de iPhones, candidato à perda da barriga mediante jet-ski e piscina térmica, membro do conselho de onze sociedades patronais, cognominado Narina de Titânio pelos colegas do clube Quintas Sem Lei, embolsador-sênior de comissões, percentagens e por-foras, campeão inconteste de cavalo-de-pau na madruga em pleno retão.

Defenestramos Mariinha Itajari, matriarca encanecida de edis e de sicários, de burgomestres e de atravessadores, de sinhazinhas maquiavélicas e de implacáveis viragos, três-parcas-numa-só bordando o bilro dourado e sangrento da fortuna da família, anotadora das datas de morte na mesma Bíblia e com a mesma letra onde anotara a do nascimento, esfinge em si mesma protegida por carranca e silêncio, octogenária de artérias frias, medusa bórgia, palavra final nas sentenças sem volta, gárgula de carne e osso contempladora da cidade indefesa através da mesma janela por onde a defenestramos, e por onde, vigor havendo, defenestraremos todos.


sábado, 7 de junho de 2014

3519) Dicionário Shakespeare (7.6.2014)



O mundo da literatura está cheio de proezas ociosas, como calcular a percentagem de trissílabos na prosa de Graciliano. Uma dessas empreitadas quiméricas está sendo levada a efeito pelos caras que encontraram um dicionário inglês cheio de anotações manuscritas, e cismaram que era o dicionário que William Shakespeare usava como  referência ao escrever suas peças.

Fui lá no saite (http://tinyurl.com/oreosrz) dar uma olhada. Existe todo esse friquitício (lamento, leitores não nordestinos – explico depois) a respeito das palavras que o dono do dicionário sublinhou e que aparecem em peças do dramaturgo. Há uma visível mão-grande na direção de tentar comprovar a hipótese, mas é isso mesmo, afinal hipóteses são para isso, para a gente sugerir, propor e vê até onde consegue fazer as pessoas apostarem nela.  Existe uma dramaturgia da História, um gênero que consiste em relatar que “as coisas aconteceram assim”.

Vejam esta matéria: http://tinyurl.com/lzjme9r. Não sou um grande leitor de Shakespeare, na verdade só conheço bem duas peças dele (“Hamlet”, “Macbeth”), não li as exegeses de Harold Bloom, seu laudador maior, mas falando de poeta para poeta o interessante de Shakespeare é a aparente facilidade de suas imagens. Ele faz um símile ou uma alegoria qualquer e você pensa: “É exatamente isso”. Talvez pareçam óbvias a leitores do século 21, mas pode ser que leitores do século 17 pensassem: “Meu Deus, nunca me ocorreria dizer isso assim”. Para mim, o Poeta diz as coisas de uma maneira que parece a única possível para descrever aquilo.

O dicionário de Shakespeare não difere muito da camisola de Marilyn Monroe ou do biquíni de Brigitte Bardot, que colecionadores arrematam. Este objeto é precioso, porque esteve em contato com alguém precioso, predestinado, extraordinário. A criação cultural envolve leilões de opiniões, de teses, de explicações do mundo. “Minha tese é de que Fulano foi o dono deste livro, baseado em tais e tais indícios. Se discordar, beleza, apresente suas informações que conflitam com as minhas.”  Um dia a ciência vai estar tão avançada que a gente vai mostrar um manuscrito do século um e provar que foi escrito por alguém do século dez.

Achar o dicionário de Shakespeare seria tão útil (ou tão inútil) quanto achar a bússola quebrada que foi usada por Américo Vespúcio, ou a Bíblia que Lutero violentou com tinta negra e letra gótica.  Achar o mapa da ilha do tesouro.  Achar o resíduo sagrado de um personagem sagrado.  Cada novo farrapo de texto que se descobre de um autor parece estar disfarçadamente zombando de tudo que o precedeu, parece saber que seria lido por último.


sexta-feira, 6 de junho de 2014

3518) "Histórias da Velha Totônia" (6.6.2014)




Veio parar nas minhas mãos um livro de José Lins do Rêgo que eu nunca tinha lido: Histórias da Velha Totônia (1936), uma coletânea de histórias de Trancoso que Zé Lins diz ter escutado, quando era menino, dessa velhinha que andava de engenho em engenho, contando suas histórias.  A 21a. edição de José Olympio é de 2010; como o livro é curtinho, sobre espaço para vários textos explicativos e para as ótimas ilustrações de Tomás Santa Rosa, da edição original.

Esse livro parece ter sido o inspirador de outro publicado no ano seguinte: Histórias de Tia Nastácia de Monteiro Lobato, muito mais conhecido, até porque Lobato tem um público infantil historicamente estabelecido, ao contrário de Zé Lins.  Presumir influências é sempre arriscado – pode ser que Zé Lins tenha ouvido falar que Lobato estava preparando um livro de histórias de Trancoso e resolveu adiantar-se, lançando primeiro o seu.  Em todo caso, o de Zé Lins tem apenas quatro histórias, contra 43 do livro de Lobato. (E há duas em comum: “O Sargento Verde” e “O príncipe pequeno”/”O homem pequeno”).

Comparando as histórias vê-se que Monteiro Lobato reproduz o conto da maneira mais despojada possível, mas Zé Lins (talvez por dispor de menos material) capricha no enchimento. O que em Lobato se resolve com “Um dia apareceu um moço, também muito lindo, querendo casar com ela”, dá a Zé Lins assunto para uma página inteira (em “O Sargento Verde”).  O autor literário, em geral, quando pega esse tipo de narrativa aumenta os diálogos, as descrições, etc. – aumenta somente o material acessório, até por um certo pudor de mexer no esqueleto, na estrutura narrativa.

No seu livro, Zé Lins se queixa se que “as velhas Totônias estão desaparecendo”.  O livro é de quase 80 anos atrás, e como o Nordeste ainda é cheio, hoje, de velhinhas contando histórias, podemos imaginar que no momento exato em que Zé Lins escrevia havia algumas Totônias (ou Nastácias) nascendo por toda parte.  A maior contadora-de-histórias paraibana, Luzia Tereza (1909-1983) tinha 27 anos quando o livro dele saiu, e certamente ainda não tinha aprendido a maior parte do repertório que a tornaria famosa.

O número dessas pessoas tende a diminuir, mas mesmo que diminua é possível fazer com que elas não desapareçam. Não se trata apenas de amparar e documentar as velhinhas que passam adiante as histórias da memória oral.  Mas fazer com que elas não falem só para os pesquisadores e os gravadores – falem para as meninas e meninos de hoje, as mocinhas e os rapazinhos de hoje.  Alguns deles, quem sabe, estarão daqui a 70 anos recontando a histórias de Luzia Teresa, de Tia Nastácia e da velha Totônia.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

3517) As perseguições (5.6.2014)




(O Bode Gaiato)

Basta ser nordestino para ser, de alguma maneira, superior a quem o não é. Estou sendo preconceituoso ou arrogante ao dizer isto?  Espero que não, porque o digo com a consciência tranquila de que o que os nordestinos são, filosoficamente falando, é algo
que independe tanto da minha opinião quanto da do meu interlocutor. Mas eu tenho, sim, o direito de falar que os nordestinos são superiores a todos os demais, assim como o torcedor do Bambala ou do Arimatéia pode dizer o mesmo de seu time, e qualquer filho de Deus pode dizer o mesmo sobre o Deus de quem é filho.

Gozações regionalistas muitas vezes se dão em paz quando feitas entre iguais, de parte a parte, cada qual ironizando as pretensões do outro e afirmando a grandiosidade de sua própria pátria.  Vira uma forma brincalhona de convívio, uma troca amigável de alfinetadas.  O perigo existe quando se dá numa relação vertical de poder, quando o que está por cima não apenas explora o trabalho do outro, mas, para manter esse estado de coisas, esmaga o seu amor próprio, faz com que ele primeiro despreze e depois odeie suas origens. Já vi muitos casos de nordestinos exilados que assimilaram sotaque, hábitos, cultura, valores, e apagaram da memória tudo que houvera antes.  Alguns por um verdadeiro trauma, por tática de sobrevivência.

Você manda um projeto para um órgão público ou para um edital de empresa no Sudeste, o projeto não passa, aí você diz: “Claro, eles não vão deixar um nordestino passar na frente dos outros.” Como existe o precedente de mil pequenas situações de preconceito, o sujeito insatisfeito expande isso para qualquer situação. Recusa-se a admitir que podem ter aparecido projetos melhores que o dele, por motivos totalmente diversos.  Recusa-se a admitir que o projeto dele pode não ser tão interessante assim para a empresa ou o órgão a que foi submetido, independente da origem geográfica.

O preconceito existe, como existe contra qualquer grupo que pareça exótico e possa vir a ser um antagonista; mas ele não está em todo lugar.  Às vezes ocorre mais por desinformação do que por antipatia. Às vezes a pessoa preconceituosa nem está em posição de produzir grandes estragos (embora os produza quando está).  A paranóia persecutória do nordestino o faz achar que nunca estão vendo a pessoa dele, estão reduzindo sua individualidade a um clichê pejorativo. É o problema de todas as minorias. O mundo inteiro não está fazendo uma grande Conspiração para marginalizar, exterminar, deletar os nordestinos da História e da Geografia.  A não ser... a não ser... que nós sejamos mesmo superiores a todos eles, e é por isso que não nos aguentam.


3516) Lovecraft e a vanguarda (4.6.2014)



(ilustracao de Abigail Larson)

H. P. Lovecraft, mestre das histórias de horror, foi um sujeito de perfil conservador até quase a caricatura. Ele dizia que era um homem do século 18 perdido no século 20.  Suas opiniões literárias, contudo, são em geral bastante ajuizadas.  Numa carta de 2 de outubro de 1928 para sua amiga Zealia Brown-Reeed Bishop, ele comenta a moda do fluxo de consciência (“stream of consciousness”) que vinha tomando conta da literatura.

HPL reconhece o fato, uma relativa novidade na época, de que “nossas mentes estão cheias, o tempo todo, de milhares de linhas de imagens e de idéias irrelevantes e dissociadas; e nossos atos na verdade são determinados pela soma total desses farrapos heterogêneos e inconscientes, mais do que por uma única linha de idéias conectadas que nós, publicamente, reconhecemos em virtude de sua posição no nível superior da consciência.” Ele louva a maneira como a literatura tenta reproduzir no texto esse entrechoque de elementos quase aleatórios, e vê James Joyce (na prosa) e T. S. Eliot (na poesia) como os principais expoentes dessa tendência. (Mais adiante, ele a define melhor ao enumerar os nomes de E. E. Cummings, Hart Crane, Aldous Huxley, Wyndham Lewis, Dorothy Richardson, os Sitwells, D. H. Lawrence, Virginia Woolf, Gertrude Stein, Kenneth Burke, Ezra Pound e Marcel Proust).

HPL levanta a questão: uma tal escrita pertence ao domínio da arte literária ou do mero registro psicológico de impressões? Ele dá generosamente o benefício da dúvida aos escritores, dizendo: “Os métodos extremos destes autores transcendem, sem dúvida, os limites da verdadeira arte, embora eu acredite que eles estão destinados a produzir uma poderosa influência sobre a arte propriamente dita. A arte literária, creio, deve continuar aderindo à prática de registrar fatos exteriores [à consciência], em ordem consecutiva; mas de agora em diante deve perceber as motivações complexas e irracionais desses acontecimentos, e deve se abster de atribuir-lhes causas simples, óbvias e artificialmente racionalizadas.”

Com uma razoável abertura, HPL diz que a decisão sobre o quanto de material inconsciente deve afetar a criação da obra “deve ser decidida independentemente em cada caso particular pelo julgamento do próprio autor, e pelo seu senso estético”. Lovecraft, o escritor, me parece pesado demais, preso demais ao próprio estilo; mas é bom ver que como leitor ele era capaz de avaliar com simpatia, num momento de transição (o ano é 1928) uma mudança gigantesca por que estava passando a literatura. E sua crítica às histórias com “causas simples, óbvias e artificialmente racionalizadas” me parece atualíssima.


terça-feira, 3 de junho de 2014

3515) Batatas e dragões (3.6.2014)



Li num websaite a respeito da série Game of Thrones, ambientada num continente chamado Westeros, que não tem nada em comum com a nossa Terra.  Não há nesse gigantesco épico planetário um só nome próprio que aluda às culturas da Terra, às religiões da Terra, às civilizações da Terra, à geografia da Terra.  Os nomes, mesmos compreensivelmente dóceis às formas ocidentais de pronunciar, são nomes sem história terrestre. (Se bem que muitos dos sobrenomes, desde Stark até Tyrell, são bem americanozinhos.)

Os fãs discutem a propriedade ou não das armas e das táticas de batalhas. (Isto é uma qualidade inerente ao ofício da guerra, ou é apenas um cacoete herdado de videogames onde “items”, etc são entesourados?)  Discutem os deuses (eles têm uma religião baseada no Sete, e não na Trindade, como nós), os idiomas (o domínio seguro de um idioma estrangeiro, ou a ausência disso, surge em momentos cruciais desta história). A certa altura (foi o que li), alguém questionou: “Eles dizem que comem carne com batatas. Ora, batatas não pertencem á Europa. A batata é da América. Como eles poderiam conhecer a batata, no grau de evolução tecnológica em que aparentam estar?”   E o autor do artigo comenta: “Peraí, pessoal.  Os caras estão escrevendo uma história com dragões, e vocês questionam a verossimilhança da batata?”.

Alguém diria que é em momentos assim que se dá a bifurcação entre quem gosta de ficção científica “hard” (o que cobra rigor nas batatas) e quem gosta de fantasia (para quem está tudo muito bem, desde que pareça fazer sentido).  Pra mim, não se trata de dois gêneros diferentes (embora estes existam), trata-se de duas mentalidades.  Os que veem uma história como um mecanismo onde tudo tem que se ajustar e precisa de justificativa; e os que veem uma história como uma reprodução de algo que acontece na vida.

A primeira impõe a exigência da necessidade, da exatidão, da inquestionabilidade, da obrigatoriedade de perfeição em cada detalhe e no conjunto da obra. A segunda é a mentalidade que é meio negligente, difusa, imprecisa, toda sujeita a falhas, autocorrigindo-se incessante e infatigavelmente, tendo sempre dez alternativas para cada gargalo estatístico que lhe surge à frente. Esta não precisa ganhar nota dez redonda; a história pode-se estragar, pode-se desperdiçar, pode raspar a pintura e amassar a lataria, o que importa é que, sendo história, a história aconteça, veemente, evocativa, com rasgos de grandiosidade e de aventura. Com dragões impossíveis ou batatas improváveis, é fantasia porque tem espadas, podia ser FC se assumissem que é outro planeta; mas sem história não tem história.


domingo, 1 de junho de 2014

3514) Castelo de Drácula (1.6.2014)



O Castelo de Bran, na Romênia, está à venda por 73 milhões de euros.  Se eu tivesse o dobro disso sobrando, era negócio fechado, na certa.  É um castelo interessante, a julgar pelas fotos da matéria num saite português (aqui: http://tinyurl.com/q94ho8a). Duas imagens de um pátio interno lajeado, com um poço circular a céu aberto, para onde convergem claustrofóbicos cubículos, lembram o castelo de Drácula no Nosferatu (1979) de Werner Herzog. O castelo de Bran certamente serviu como modelo cenográfico a Herzog, porque é “o” castelo associado à figura histórica do sequioso Conde.  Havia outro, mas virou areia.

O castelo atrai 500 mil turistas por ano mas a manutenção é cara. Talvez ele valesse hoje apenas um quinto desse assombroso total, se não fossem os pesadelos que o semi-inválido (na infância apenas) Bram Stoker suportou, e o livro, em que ele os transfigurou em algo mais deliberadamente inventado e mais real.  O Drácula do romance de Stoker tem só uma beirinha factual em comum com o Conde Vlad histórico, mas tal como nos casos de Lampião, Alexandre e outros heróis, o vulto histórico é uma mera isca, um ímã inicial para produzir o primeiro movimento da imaginação.  Um indez de idéias.

Sabemos mais fatos históricos a respeito do Vlad Tepes real do que do Jesus Cristo real, do Homero real, do D. Sebastião real, e nem por isso estes todos são menos reais para nós.  Seria interessante se um Magomante da Crisoféia Sagrada daquela época pudesse ter chamado o conde Vlad ao Porão Encantatório, onde lhe mostraria na bola de cristal que seu nome no futuro estava associado a um dos maiores mitos satânicos daquele século não muito distante.  O Conde veria passarem no hipnoscópio todos aqueles rostos de dentes arreganhados, virar-se-ia para o Mago, diria apenas: “Isso não sou eu”. E o inocente do cientista seria empalado.

Vlad era um guerreiro cruel. Iria estranhar aquilo, porque não quereria ser outra pessoa (se pudermos pelo menos aceitar dando-de-ombros a premissa de uma tecnologia futurista para que ele tivesse tal acesso: aos dráculas dos quadrinhos, do cinema, do cartum, da pornografia, do gibi juvenil, da pulp fiction de operário e comerciário, dos videclips milionários, dos games humorísticos ou sadomasoquistas, etc.)  Vlad era um guerreiro rude, quase um urso armado.  Repeliria com brutalidade essa imagem dândi.  Ele era capaz de pôr abaixo a machado um pequeno bosque, e fazer dele um cemitério de prisioneiros empalados, mas não entendia que um homem pudesse ser tão capacho a ponto de cortejar uma mulher, efeminado a ponto de morder-lhe o pescoço, anormal a ponto de beber seu sangue.