sexta-feira, 14 de março de 2014

3446) Os dois escorpiões (14.3.2014)




(Josef Stálin, Bernard Madoff)

O Comunismo era um escorpião feito de ferro, cimento, vapor, eletricidade, com duzentos milhões de células humanas. Karl Marx dizia que o comunismo só poderia ser estabelecido num país plenamente desenvolvido e industrializado, como a Inglaterra ou a Alemanha de seu tempo.  Por uma dessas ironias da História, Lênin tentou implantá-lo na Rússia, o país mais vasto do mundo, e um dos mais atrasados, embora tivesse uma elite refinada, cavalheiresca e culta. Confirmando a advertência de Marx, não deu certo. Lênin morreu no meio do caminho e foi substituído por Stálin, um dos exemplos mais rematados de gangster que a história já conheceu.  Questionar o comunismo alegando Stálin é como questionar o Islã alegando Saddam Hussein. Se Marx tivesse visto a Revolução Russa teria ficado furioso com as liberdades filosóficas e partidárias tomadas por Lênin. Se visse Stálin, daria um tiro nos miolos.  Lênin tinha muitos defeitos (inclusive caretice poética e cinematográfica) mas era um pensador de verdade e um ativista de verdade, numa só pessoa.  Já Stálin era um Al Capone  canastrão, cercado de ghost-writers.  Como todo gangster bem sucedido, tinha faro de fera e olho de rapina quando se tratava de guerras ou de intrigas palacianas.  O Stalinismo começou a afundar com sua morte, mas só terminou quando caiu o Muro de Berlim.  O Comunismo (sua versão soviética) suicidou-se ritualmente por excesso de concentração, de centralização, de fechamento e colapso em black-hole.

Já o nosso confortável Capitalismo está morrendo por excesso de Liberdade, ou melhor, pela enorme plasticidade com que esta importante palavrinha se encaixa em qualquer discurso. A atual mega-crise financeira cujo abalo mais forte foi em 2008 parece ser uma combinação de filosofias de lucro a qualquer custo e lealdades a qualquer preço.  Não o espectro comunista, mas o fantasma da liberdade: “o mercado tem que ser livre”.  Ou seja, eu devo ser livre para mudar as regras do jogo que meu time está disputando.  Houve um desmonte programado de fiscalizações, atividades de agências reguladoras, trocas de poder, vitórias pirotécnicas de um grupo de investidores sobre outros. Na América, a terra natal do dinheiro eletrônico, isso virou um jogo, onde até mesmo os bilhões ficam em segundo plano. Mais importante do que ser rico é ter desempenho nesse complicado RPG, um game que esses grandes investidores praticam a sério. A URSS morreu de concentração centrípeta, os EUA vão morrer de espiral centrífuga.  O Capitalismo é um escorpião feito de néon, silício, LCD, vapor browniano e filamento incandescente de carvão.





quinta-feira, 13 de março de 2014

3445) Nota Onze (13.3.2014)



Li uma historieta certa vez em que um aluno, depois de fazer uma excelente prova subjetiva (com pequenas dissertações respondendo cada pergunta) queixou-se ao professor de ter ficado com a nota 9,5.  O professor respondeu: “Nove e meio significa que você acertou tudo. Pra tirar 10, você vai ter que me ensinar algo que eu não sabia.”  Eu diria que cada professor, por mais incompreendida que seja sua matéria (pense Física, pense Matemática) encontra de vez em quando um aluno que se destaca de todos os outros. No meio de quarenta da turma ou de quinhentos do colégio, ele chama a atenção pelo seu brilho numa matéria.  Em papo de sala dos professores, já vi um colega mostrando aos outros uma prova e dizendo: “Essa garota fez uma prova tão boa que eu tive vontade de dar onze. Um 10 me pareceu uma nota chocha.”

Você só se destaca naquilo onde você excede, e mais, naquilo que você excede por conta própria, por exuberância sua, e não por cobranças vindas de fora.  O aluno que faz uma prova impecável, toda respondida bem direitinho, leva para casa um 10 e acha que abalou.  Nem sempre.  Às vezes uma prova nota 10 nos deixa a sensação de que aquele aluno aprendeu apenas o necessário para acertar tudo, mas se a prova tivesse uma pergunta a mais ele talvez não soubesse respondê-la.

O ideal seria que todos os alunos tivessem um bom nível de entendimento e de aplicação, fizessem provas satisfatórias, etc. Nunca vai acontecer, principalmente num meio social irregular como o nosso.  E é bom que não aconteça. Prefiro os desníveis da vida real do que uma grande proficiência coletiva mas de forma robotizada, impessoal, onde todo mundo é aluno modelo mas é incapaz de ir além do que está sendo ensinado. O objetivo do ensino é jogar os alunos numa situação em que eles esqueçam “o que cai na prova” e aprendam mais do que seria necessário: só então vão surgir os que excedem.

O professor sabe reconhecer, entre os bons alunos (nem falo no restante), qual é aquele que está simplesmente na busca aplicada por uma boa nota, e aquele que está absorvendo o assunto da matéria por interesse próprio, por entusiasmo próprio. É esse que eu chamo de “Aluno Nota Onze”, porque muitas vezes ele, na excitação de pesquisar por conta própria, acaba trazendo aspectos da matéria que o professor não tinha abordado, trazendo problemas novos, propondo soluções diferentes. E não é raro esse papo de “o aluno ensinar algo ao professor”. Eu já ensinei coisas que professores meus conheciam menos do que eu; e quando professor fui ensinado por alunos que dedicavam àquele assunto mais tempo e mais energia do que eu.  É assim mesmo. É a respiração normal do ensino.


quarta-feira, 12 de março de 2014

3444) Nosso racismo (12.3.2014)



No balanço de vida que faz em Minha Formação (1900) Joaquim Nabuco registra os sentimentos contraditórios e sofridos de abolicionistas brasileiros que eram de famílias escravocratas.  Ter escravos não causava a essas famílias mais dramas de consciência do que causa, às de hoje, o fato de ter cozinheiras e babás. Fazia parte do tecido social, e se estava funcionando a contento, quem ia mexer?  Quem se dispôs a mexer foram os abolicionistas, beneficiários do sistema, mas dispostos a sacrificar-se junto com ele. E ainda tiveram que ouvir as piadinhas inevitáveis: “Como assim, seu pai tinha 300 escravos e você quer acabar com a escravidão?...”

No famoso capítulo “Massangana” desse livro, Nabuco reconstitui momentos de sua infância, lembra sua Madrinha cercada de escravos, e a noite da morte dela, com ele ainda menino. Lembra o desespero dos escravos que não sabiam o que seria feito deles a partir daí: “A mudança de senhor era o que havia mais terrível na escravidão, sobretudo se se devia passar do poder nominal de uma velha santa, que não era senão a enfermeira dos seus escravos, para as mãos de uma família até então estranha. (...) O que mais me pesava era ter que me separar dos que tinham protegido minha infância, dos que me serviram com a dedicação que tinham por minha madrinha, e sobretudo entre eles os escravos que literalmente sonhavam pertencer-me depois dela.”

Nabuco aponta inúmeras vezes um sentimento que admira: o sentimento de gratidão dos escravos para com aqueles senhores que os tratavam bem, cuidavam de suas famílias, não usavam de castigos. Numa espécie de Síndrome de Estocolmo antecipada, os escravos se afeiçoavam aos senhores: “Não só esses escravos não se tinham queixado de sua senhora, como a tinham até o fim abençoado... A gratidão estava toda do lado de quem dava. Eles morreram acreditando-se os devedores”.

Muitos abolicionistas responderam a essa gratidão com um sentimento simétrico: a necessidade dela. Depois da enorme desumanidade que foi a escravidão, a única coisa capaz de contentar os que lutaram pelo seu fim seria o agradecimento dos libertos.  Uma parte substancial da nossa elite tornou-se refém do perdão dos negros. Sem esse perdão, sem a garantia de um “agora estamos quites” teria servido pouco a Abolição. Serviu em parte; continuam a existir dois Brasis, e o Brasil branco continua refém da gratidão dos negros por algum benefício recebido. E enquanto essa gratidão problemática for a melhor alternativa para o ódio racial e o sentimento de vingança que existe em outros países, é com a cobrança dela, a expectativa dela, que é preciso conviver.


terça-feira, 11 de março de 2014

3443) "Inside Llewyn Davis" (11.3.2014)



É um daqueles filmes dos irmãos Coen onde um artista desnorteado e sincero vive a dar com a cara nas portas do mundo (Barton Fink), ou uma daquelas tertúlias etnológicas pela música rural norte-americana (E aí, meu irmão, cadê você?).  Um daqueles filmes cheios de piscadelas para aficionados e ao mesmo tempo daquelas terríveis rodovias enxergadas através do parabrisa de um carro à noite, quando sentimos que naquele momento tudo aquilo é real e mesmo sendo um filme qualquer coisa pode acontecer.

Llewyn Davis é um cantor de música folk que percorre os bares do Greenwich Village num daqueles momentos mágicos do espírito, a New York de 1961, semelhante à Londres de 1890, à Paris de 1925, ao Rio de Janeiro de 1958. Um foco cultural aceso numa cidade capaz de lhe ser receptiva. O Village abrigou poetas beatniks, teóricos da contracultura, cineastas de vanguarda, mas os cantores de protesto ou de tradição étnica (aqueles irlandeses de suéter, que conseguem fazer uma consoante ter sonoridade interna equivalente à de uma vogal) também são a cara daquela época.  Ficou Bob Dylan como o mais famoso, mas basta ler as Crônicas dele próprio: ele lembra músicos dos bares daquele tempo que talvez não tenham nem verbete na Wikipedia.  Samuel R. Delany também conta em suas memórias que por pouco não recitou poesias num bar na mesma noite em que um tal de Bob Dylan ia cantar. Esses filmes de época são sempre pedaços da biografia de alguém, estão ligados à vida pessoal de alguém. 

Llewyn Davis é talentoso, é bom sujeito, mas vive metendo os pés pelas mãos e dando com os burros nágua. Curiosamente, este filme me lembrou o Não Estou Lá que estilhaçou a biografia de Bob Dylan em vários personagens específicos.  Llewyn Davis é um daqueles Dylans iniciais, parelho ao negrinho que se diz chamar Woody Guthrie e ao personagem cowboy-de-sapatos de Christian Bale. Minha teoria é de que existe mesmo um arquétipo chamado O Bardo, e cada um desses caras traz algumas canções dele. Somos heterônimos dele, mas na verdade é ele quem escreve tanto a obra do poetinha romântico quando a do profeta apocalíptico. Uma espécie de Mega-Fernando-Pessoa, que escreve tudo, e tem alguns bilhões de heterônimos.

Cada verso da gente foi escrito pelo Bardo, usando o rudimentar instrumento que é nosso estilo pessoal, nossa nitidez e limitação. O Bardo precisa de vários transmissores para chegar aos humanos. Todos os poemas de qualquer poeta são do Bardo, que por consequência é o próprio Llewyn Davis. Uns vão em busca do Hall of Fame, mas aí tem um que consegue entrar na Marinha Mercante e consegue enfim descobrir quem é.


domingo, 9 de março de 2014

3442) Literaturas leves (9.3.2014)



(manuscrito de Dostoiévsky)


Escreve-se em parte para imitar quem veio antes, e em parte, também, para se distinguir de quem veio antes.  

É a dinâmica óbvia de qualquer atividade humana. Você aprende o que já existia, mas torna-se um potencial introdutor de ruído significante, de anormalidade criativa no sistema, de algo que depois venha a ser assimilado, e passe a fazer parte da forma ou da própria constituição desse sistema. 

Tudo avança dessa maneira, seja o romance de aventuras serializadas dos anos 1920 ou os projetos de motores de Fórmula Um.

Não se deve confundir literatura com ficção. A ficção (romance, conto, novela, etc.) é uma fatia robusta mas limitada. Cartas, ensaios, sermões, tudo isso é literatura, e tudo isso pode vir a ser Grande Literatura (que é tudo que algumas pessoas admitem que “é literatura”). Basta ser uma demonstração de técnica e inovação explorando ao máximo as possibilidades do gênero, dentro das limitações técnicas, do espírito e das obsessões de cada escritor.  

Pode haver mais Grande Literatura numa carta ou num diário íntimo do que em muitos romances.

O conceito varia devagar, mas varia; e varia de país em país, não só ao longo do tempo. Em algumas épocas do passado, e em algumas culturas de hoje, ser literário é ser rebuscado; em outras é o contrário, pela dinâmica natural de contraste.  Gênios de um século já retornaram à obscuridade no próximo e foram resgatados (e vítimas de mal-entendidos cheios de boas intenções) 200 anos depois.

Se os Sermões do Padre Vieira e os Lusíadas de Camões continuam legíveis hoje é porque foi deles que herdamos grande parte das maneiras de dizer de hoje. Se textos escritos 200 anos depois deles nos parecem ininteligíveis é porque não deixaram influência, não serviram de modelo, não se incorporaram à maneira coletiva de dizer as coisas.

Não é porque estamos escrevendo um texto não-literário que devemos abrir mão da literatura. Os relatórios de prefeito escritos por Graciliano Ramos foram o primeiro sinal de que ele estava trazendo à nossa língua uma maneira pessoal de dizer as coisas, quaisquer coisas, inclusive as mais banais e as mais burocráticas.

Não existe nenhum tipo de texto onde seja impossível instilar Grande Literatura; o que há é que nem sempre isso é desejável, por motivos que o bom senso deve sempre reconhecer. Mas não há literatura leve, ou melhor, ela só o é por opção. 

Pode-se fazer Grande Literatura numa letra de funk, num anúncio de detergente, num editorial político, num encarte de CD, num trabalho de conclusão de curso, num bilhete pra uma rapariga, numa cantiguinha infantil, num post de rede social. É só querer e ser capaz.





sábado, 8 de março de 2014

3441) Chandler e Ian Fleming (8.3.2014)



Raymond Chandler, o criador de Philip Marlowe, e Ian Fleming, o criador de James Bond, se conheceram em abril de 1955, quando Chandler, que era meio irlandês (por parte de mãe), e tinha estudado na Inglaterra, retornou àquele país depois de muitos anos. Já era um escritor rico, famoso, paparicado por jornalistas e socialites. Fleming estava longe do sucesso, tendo publicado (sem grande repercussão) apenas 3 aventuras de Bond: Casino Royale, Live and Let Die e Moonraker. Ele recorda que Chandler foi gentil, elogiou Casino Royale, mas “parecia incapaz de falar de outra coisa a não ser a perda recente da esposa, e falava disso de maneira tão aberta e franca que me embaraçou e ao mesmo tempo me despertou grande afeto por ele.” Um biógrafo de Fleming registra que os elogios e o incentivo de Chandler (os dois continuaram se correspondendo) foram cruciais para que Fleming não desistisse de escrever.

Numa visita seguinte, em 1958, os dois gravaram uma entrevista conjunta na BBC cujo áudio original, em 4 partes, está aqui: http://bit.ly/1gCUPfZ. (Há uma transcrição, meio incompleta mais útil, aqui: http://bit.ly/1bMG3FX). A esta altura, Chandler (que morreria no ano seguinte), mantinha o humor ácido e a inteligência, mas estava num período brabo de alcoolismo, enquanto Fleming curtia seu grande momento de sucesso. Tinha acabado de lançar From Russia with Love e Dr. No, e na conversa menciona o próximo livro a sair, Goldfinger. Chandler tinha acabado de escrever o que seria seu último livro, Playback, do qual Fleming lê e comenta alguns trechos. Os dois conversam sobre o método mais prático de praticar um crime encomendado, sobre agentes secretos e detetives particulares na vida real, e comentam as características dos seus personagens famosos.

Eram escritores muito diferentes, e sabiam disso. Fleming explica que seu trabalho como jornalista lhe garantia dois meses de férias na Jamaica todo ano, e por isso ele podia lançar um romance por ano. Chandler, um reescrevedor nato, para quem cada capítulo era um parto, comenta que jamais conseguiria escrever um livro em dois meses.  Fleming diz (com naturalidade, sem bajulação): “Ah, mas você escreve livros melhores do que os meus.” E Chandler: “Mesmo assim. O meu livro mais rápido me custou TRÊS meses.” Fleming sugere que os ingredientes básicos do thriller são ritmo, violência, sexo e uma boa história. E Chandler complementa: “E mistério. O mistério não precisa ser o de quem matou Sir James na biblioteca, mas o de descobrir que situação era aquela, o que cada uma daquelas pessoas pretendia, e que tipo de gente eram elas.”




sexta-feira, 7 de março de 2014

3440) Brasil Oficial (7.3.2014)



Atender o chamado da Pátria.  Valores ocidentais.  Anseios da população.  Nesta quadra da vida pública.  Perpetuar-se no poder.  Sempre se pautou.  Riquezas nacionais.  Maquiagem contábil.  Táticas eleitoreiras.  Figura ímpar de estadista.  Descontentamento do baixo clero.  Artimanhas jurídicas.  Ocupou a tribuna.  Linchamento midiático.  Malversação de fundos.  Lição das urnas.  Protestos justificados.  Convocado ao Palácio.  Instâncias superiores.  Prerrogativas legais.  Justas reivindicações.  Alegações infundadas.  Mobilização nacional.  Atitudes impatrióticas.  Imaturidade política.  Afronta às instituições.  Valores democráticos.  Preceitos fundamentais.  Sem amparo legal. Consciência tranquila.  Conduta ilibada.  Letra da lei.  Acordo de bastidores.  Herança maldita.  Reserva moral da nação.  Apoio incondicional.  Partilha do poder.  Loteamento de cargos.  Consulta às bases.  Dedicação à causa pública.  Guardião dos valores. Denegrir reputação.  Saída honrosa.  Máquina estatal.  Poderes constituídos.  Descalabro político.  Exemplos de probidade.  Presunção de inocência.  Abafar o escândalo.  Poder de barganha.  Provas circunstanciais.  Declarações intempestivas. Aliados de ocasião. Favorecimento irregular.  Custou aos cofres públicos.  Protocolar a denúncia. Preencher o segundo escalão.  Retidão moral.  Dedicação infatigável.  Temperamento atrabiliário.  Indignação cívica.  Sanha reformadora. Espírito público.  Folha de serviços prestados.  Ofensas assacadas contra a honra.   Balelas e invencionices.  Corrupção institucionalizada.  Sob a égide da moral.  Intrigas palacianas.  Austeridade administrativa.  No concerto das nações civilizadas.  Legado político.  Equilíbrio de forças. Soberania popular.  Ordenamento jurídico.  Hostes partidárias.  Aliados históricos.  Camadas profundas da sociedade.  Apelos reiterados.  Compromissos inarredáveis.  Manobras escusas.  Atitudes demagógicas.  Insinuações caluniosas.  Nobres ideais democráticos.  Espírito cívico.  Exercício da cidadania.  Índole ordeira do nosso povo.  Interesses ocultos.  Vantagens indevidas.  Embates parlamentares.  Pescar em águas turvas.  Manto da honradez.  Princípios éticos.  Hipotecar solidariedade.  Poderes discricionários.  Não deixar sem resposta.  Medidas cabíveis. Veemente indignação. Clima de insegurança.  Evolução dos acontecimentos.  A voz das ruas.  Precedente perigoso.  Punição exemplar.  Rigorosa apuração das responsabilidades.  Vandalismo desenfreado.  O mais vivo repúdio.  Ao arrepio da lei.  Reprimir energicamente.  Ameaça à governabilidade.  Prendo e arrebento.


quinta-feira, 6 de março de 2014

3439) "Minha Formação" (6.3.2014)



Uma autobiografia é um livro onde um cara demonstra que quem tinha razão era ele; mas nem sempre. O clássico Minha Formação (1900), de Joaquim Nabuco, tem esse lado em seu terço final, onde o autor trata do movimento abolicionista, mas como o grosso da sua munição tinha sido usado no maciço O Abolicionismo (1883), estas memórias são, curiosamente, não as de um político triunfante, mas as de um escritor frustrado. A primeira metade do livro passa rapidamente pela infância e adolescência e decola quando Nabuco parte em 1873 para a Europa, cheio de aspirações políticas e literárias.

Seus capítulos sobre a França, a Inglaterra e os EUA são excelentes, inclusive nas comparações que faz entre estes últimos.  Hoje, um século e meio depois, elas se mantêm de pé, indicando que ele soube captar em poucas páginas o espírito de cada povo (ou traços essenciais desse espírito). Sobre o racismo e a abolição, falarei outro dia; o que me interessa aqui é observar o quanto esse escritor de cultura vasta e estilo admirável foi subtraído à literatura, por um lado pela premência dos compromissos políticos (herdados em grande parte da tradição paterna) e por outro (aqui é especulação minha) pela falta do talento fabulatório, ou seja, pela falta de jeito para inventar histórias.  

Nabuco conta seu nervosismo ao visitar em 1874, em Paris, seu ídolo literário, Ernest Renan (1823-1892), que o recebeu com carinho, elogiou-lhe os versos (“oui, vous êtes vraiment poète”) e lhe deu conselhos; mas esse incentivo foi contrabalançado por um encontro posterior com Edmond Scherer (1815-1889), que não emitiu nenhuma opinião direta sobre os versos, mas manteve um “silêncio frio, impenetrável, entretanto polido, atencioso, simpático”. Nabuco recorda essas ansiedades de juventude com altivez e compreensão. Sua autocrítica parece mais serena e mais sincera do que, por exemplo, a insistente modéstia de Gilberto Freyre em sua conferência proferida na UFPB em 1965, Como e porque sou escritor

São dois grandes escritores, na verdade; mas ser escritor não é o mesmo que ser ficcionista, e muitos não o percebem. Os dois perceberam, ou foram obrigados a isso pelas suas respectivas circunstâncias. Uns têm as histórias, mas falta-lhes o estilo; outros desenvolvem o mais exuberante e maleável dos estilos, mas dependem de que o mundo real lhes forneça as histórias.  Pode-se dizer que a literatura brasileira tende a ser uma estufa de criação de estilos, pois a formação dos seus grandes autores passa necessariamente pelos grandes do idioma.  A invenção de enredos, entre nós, é uma arte muito mais recente, e as duas aos poucos irão se harmonizando.


terça-feira, 4 de março de 2014

3438) Fermata (5.3.2014)



(escultura de Bernini)

A lágrima de mármore está fixa no ar, imóvel, solta.  Eu passaria uma aliança em torno dela, se tivesse. As serpentinas de mármore dos cabelos das dríades, retorcendo-se em cachos revoltos, leves, quase flutuando. A abelha que mal roça a casca lisa do fruto. A folha oscila ao lado de outras folhas e a posição de cada uma delas evoca aquele ir e voltar.

O tempo parou, tudo que era carne virou Carrara, ou granito, ou pedra sabão.  Um instante atrás tudo esvoaçava, tudo tremulava, tudo fluía, o mundo era um concerto de ondas vibratórias, a carne, a folha, a nuvem, o cabelo, a sombra arrastada pelo vento.  Mas agora tudo está freezado no espaçotempo: o pólen esvoaçante das flores, os respingos e os borrifos das brincadeiras das náiades nas pedras ensolaradas do riacho. Cada microgota dessa água que espadana é de pedra esculpida, tão fincada na paisagem quanto um prego.

O tempo parou. Como uma alavanca puxada para trás, encaixada numa ranhura, e presa ali.  Pronto, acabou-se, aquilo está lá naquele ponto e dali não vai sair jamais.  No frontão guerreiro, o aço de mármore fende os músculos de mármore, rompendo tudo no interior daquele corpo, cujo escudo de defesa estava anormalmente erguido, claramente porque o artista entendia pouco da luta que retratava aos bocejos. Seus guerreiros sonham vitórias de mármore enquanto os outros gemem sua dor de mármore e morrem sua morte de mármore.  
O caçador na orla da mata.  A corça no seu súbito salto, no seu susto, sua esquiva. Tudo em mármore. Aqui está o arco ainda tremendo, a corda ainda vibrando, a flecha suspensa em algum ponto da sua geodésica vacilante rumo ao alvo. Sobre esses olhos de mármore sem pupila, chovem imagens de mármore que ele guardará para sempre em sua memória imune à erosão. Poucas vezes a matéria parece tão indestrutível, tão protegida do esfarelamento em grãos discretos, partículas soltas..

Que arte superior em magia a todas as outras seria uma escultura em pedra que paralisasse assim o tempo, não só o tempo do mito retratado, mas o tempo da pedra. Uma arte escultórica que suspendesse a pedra solta no espaço, de modo que por ter se tornado escultura ela deixasse de ser pedra e pudesse pairar assim, como uma bolha de matéria soprada pela mente, esvoaçando parada, sustentada magicamente pelo poder de ter se tornado algo além da carne e de Carrara.  Que, assim como os frutos de mármore nunca apodrecem, as lágrimas de mármore nunca caíssem no chão.  Uma arte em que o corpo mais efêmero se tornasse eterno e o corpo mais pesado se tornasse imponderável. Uma arte de esculpir em que toda a matéria fosse feita de luz.


3437) "The Dream Years" (4.3.2014)



Este romance de Lisa Goldstein, de 1986, é uma fantasia histórica que envolve viagens no tempo, que acontecem sem nenhuma tentativa de explicação centífica.  Meu interesse nele surgiu pelo fato de ser uma exploração literária das atividades do grupo surrealista liderado por André Breton, na Paris dos anos 1920.  Leio tudo o que acho de interessante a respeito do surrealismo.  Biografias, histórias e análises são numerosas, mas, curiosamente, há poucas obras de ficção.

Naquela década Paris fervilhava com o surrealismo (que se concentrava mais na literatura e artes plásticas), a vanguarda cinematográfica (aliás, próxima do surrealismo) de Jean Epstein, Germaine Dulac, René Clair, Man Ray, etc., a pintura modernista, principalmente o cubismo de Picasso e Braque... Para não falar na agitação política de comunistas e anarquistas. Era uma cidade não muito grande pelos padrões atuais: um pouco menos de três milhões de habitantes (curiosamente, nunca passou disso). Um caldeirão de criação cultural como poucas vezes se viu.

No livro de Goldstein, o fictício protagonista é Robert St. Onge, poeta que convive no círculo de André Breton, Antonin Artaud, Paul Éluard, Louis Aragon, etc.  Vivem todos naquela pindaíba celestial, circulando pelos cafés e bulevares. Compõem poemas coletivos, contam sonhos, promovem pequenos “happenings” improvisados.  A palavra de ordem é libertar a mente das cadeias da linguagem, da moral, da educação burguesa; se possível, libertá-la inclusive das leis do espaço e do tempo.  E Robert começa a se ver transportado, através de uma mulher misteriosa, para a Paris de 1968, cheia de manifestações, bombas, barricadas, repressão policial.

São dois momentos diferentes e fascinantes da cidade, e a transição, meio mágica, aparentemente gratuita, lembra a de Meia Noite em Paris de Woody Allen: “As ruas se alongaram até o infinito e depois se contraíram. Ele esperou que elas ficassem sólidas novamente.”  Nessa aventura futurista, Robert St. Onge entra em choque com seu melhor amigo, André Breton (sempre ardoroso e dono-da-verdade) e se apaixona pela moça que veio do futuro para buscá-lo.

É um livro leve e sem grande aprofundamento; apesar de ter sido marquetado como adulto, eu o consideraria uma boa introdução ao Surrealismo para o público juvenil.  Lisa Goldstein já ganhou alguns prêmios importantes, inclusive um National Book Award para The Red Magician (1982), e publicou alguns contos interessantes na Asimov’s Magazine. The Dream Years reconstitui, em seu melhores momentos, a vida boêmia dos surrealistas, sobre a qual, ao que eu saiba, poucos romances foram escritos.