terça-feira, 17 de dezembro de 2013

3371) Dick e a paranóia (17.12.2013)




(Philip K. Dick)

Apesar da comissão-de-frente de grandes romancistas policiais (citando Agatha Christie, Dashiell Hammett, Conan Doyle e Edgar Poe), é na FC que estão os melhores gimmicks (detalhes tecnológicos bem bolados) do filme Minority Report, de Spielberg. Um exemplo: a operação de globos oculares de Tom Cruise, que na primeira vez achei inverossímil e anticientífica, mas desta vez vi apenas uma hora depois de ver uma foto de Alex (Malcolm McDowell) no Laranja Mecânica de Kubrick. Há gimmicks que não precisam ser 100% possíveis, desde que tenham uma idéia inovadora e plausível,  como é o caso de uma máquina do tempo, por exemplo. De detalhes assim a FC está cheia. Neste caso, a cirurgia dos olhos serve ao herói, Anderton, como um ritual punitivo com que ele paga o direito de ser interpretado por Tom Cruise.

A melhor coisa do conto já era a premissa FC: polícia usa os videntes precogs para prever os crimes futuros e evitá-los.  Ela se torna essencial ao mistério detetivesco (sem o Pré-Crime esta história não poderia existir). E faz um paralelo interessante entre esse futuro que se pode ou não prevenir e aquele passado que se pode ou não modificar. É simétrico ao Grandfather Paradox: Se eu voltar no passado e matar meu avô, então eu não nasci, mas então se não nasci nada disto aconteceu? Aqui é: Eu posso perceber que você está a ponto de cometer um pecado mortal, mas eu vou lá e o obrigo a trocá-lo por um pecado venial, cujo castigo é delirar no Purgatório, o que é melhor do que morrer. Para alguns.

O conto é do tempo de Loteria Solar, o primeiro romance-pra-valer de Dick, em que o equivalente futuro ao presidente da República é escolhido por loteria, e ao mesmo tempo é liberado um assassino para matá-lo. É do tempo também do romance Eye in the Sky (1957), um dos seus livros em que um grupo de pessoas é arremessado em universos paralelos modelados pelas suas próprias mentes.

Dick examina a paranóia na elite da investigação criminal, misturando-a com um aparato quase de bombeiros. (Aliás, seus policiais com mochila-a-jato nas costas lembram os de Truffaut no final de Fahrenheit 451). O Pré-Crime é estadual e está sendo investigado por “um agente de Washington”, termo que tanto pode indicar um cavaleiro andante quanto o pior mafioso. É uma interferência de-cima-para-baixo do governo federal sobre uma polícia do Distrito de Colúmbia. No conto, escrito em 1955, Anderton é informado de que matará um homem, justamente um General que está querendo interferir no Pré-Crime para adquirir poder. Esse plot político “candidato-da-Mandchúria” foi substituído no filme pelo mistério agathachristiano de quem matou Anne Lively.


segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

3370) Peço perdão (15.12.2013)




Peço perdão por ter sido o único sobrevivente do massacre em que 200 soldados da volante exterminaram 17 cangaceiros indefesos, ou foram 200 cangaceiros que massacraram 17 soldados, a esta altura a guerra de contrainformação já dissipou os fatos. Peço perdão por ter me dado um branco e eu esquecido o nome do quinto filho de um rei do Império Otomano, pergunta que na prova oral minha professora preferida puxou da algibeira, certa de que eu tinha a resposta na ponta da língua, e ficou surpresa com a minha demora em produzir o nome instantâneo esperado, limitando-se a pigarrear em incentivo e limpar os óculos com uma flanelinha amarela de bordas serrilhadas ostentando o logotipo da ótica, enquanto eu gaguejava tartamudo uma contemporização qualquer e a classe inteira fazia um zunzum trocando cotoveladas discretas e comemorando: “Ele também erra!”.

Peço perdão pelo verso flácido, por aquele vacilo no contratempo, pela semitonação reiterada das minhas cordas de aço, por aquele agudo que se pretendia clímax triunfal e redundou numa refração auditiva capaz de rachar mil tabocas. Peço perdão pela gorjeta que foi só 10%, quando eu sei que esperava mais, nossa-amizade, mas a cerveja demorou, o petisco veio mal aquecido, e só vou pagar o mínimo previsto em lei. Peço perdão pelos crimes dos assírios e caldeus – vou por ordem cronológica até chegar nos meus. Peço perdão por ter deixado a van bloqueando o acesso dos bombeiros e das equipes de resgate, mas eu não poderia tê-la estacionado em outro lugar, visto que fui o autor do atentado. Peço perdão pelos meus solecismos, e os peço em dobro caso você não saiba o que quer dizer esta excelente palavra.

Peço perdão a Deus por imaginá-lo um Vazio, e por garantia peço perdão ao Vazio por ofendê-lo com essa contra-hipótese anacrônica. Peço-te perdão por não ter naquela festa criado coragem e dito um galanteio banal que demonstrasse minhas intenções, algo como “esse seu vestido tá tão bonito que dá vontade de tirá-lo às pressas”, para que você enrubescesse de pronto nos pontos-chave, mas, percebendo as orelhas-em-pé das fofoqueiras infiltradas, mexesse nos talheres enquanto erguia a voz para um bem audível “engraçadinho, você...”. Peço perdão por não ter tido a suprema gentileza do alvo que fasta um pouquinho e oferece a mosca para que a seta não se perca. Peço perdão aos ofendidos, aos prejudicados, aos insatisfeitos, aos indiferentes, e isso nada me custa, porque pedir perdão não é esperar esse perdão alheio que nunca vem mesmo, vamos admitir, pedir perdão é passar álcool na ferida, porque dói mas cura, e mesmo quando não cura pelo menos dói, e só dói em quem escapou.



3369) Tejo e Zé Limeira (14.12.2013)





(Orlando Tejo, por Rodrigo)



Está disponível no YouTube (http://bit.ly/IFR927) o documentário da TV Senado, dirigido por Maurício Melo Jr., O Homem Que Viu Zé Limeira, sobre o poeta Orlando Tejo e o seu famoso personagem. 

Zé Limeira é um personagem épico, no sentido de ser alguém que provavelmente teve existência física mas acabou recebendo uma estatura mitológica. Virou um agregador de lendas, um atrator da imaginação alheia. 

O cantador de Tauá tornou-se assim por obra e graça de Orlando Tejo e seu livro Zé Limeira, o Poeta do Absurdo, um dos livros clássicos sobre a Cantoria de Viola, além de sobre Campina Grande e a Paraíba inteira.

Em princípios dos anos 1970, mais ou menos, Orlando Tejo decidiu-se a colocar no papel as histórias que sabia sobre Zé Limeira, que era um negro alto, de voz poderosa, e tinha um carisma peculiar onde se misturavam a simpatia, uma certa ingenuidade ou primitivismo (consta que ele tinha medo de trem de ferro) e uma capacidade inesgotável para fazer versos sem pé nem cabeça.

Toda cultura tem seu capítulo de nonsense, e muita gente já registrou, aqui mesmo no Nordeste, a presença de poetas que dão 100% de atenção ao som e zero ao sentido. Poetas que vivem para a métrica e a rima, sem dar a menor bola para o que estão dizendo. 

Zé Limeira tornou-se tão famoso, devido ao livro de Tejo, que hoje certamente muitos versos absurdos de outros poetas são transferidos para ele. Isso sem falar nos versos (esta questão é debatida no filme) que teriam sido escritos por Otacílio Batista e outros amigos de Tejo, depois que este se preocupou com a pequena quantidade de versos autênticos que teria recolhido.

Poeta contando história, os versos que achou são poucos? Não tem problema, qualquer um faz mais. Não é tão difícil, havendo um tal precedente. 

Quando eu fazia parte da Comissão de Seleção do Congresso Nacional de Violeiros, em Campina, incluí o mote “Se eu quiser eu também faço / igualzinho a Zé Limeira”, que é glosado até hoje, e aparece também no filme. 

Zé Limeira virou um estilo, pouco importa a pessoa.

O filme entrevista inúmeros poetas e fãs da cantoria (eu inclusive), mas devemos tirar um chapéu especial para Vladimir Carvalho. Deve-se a ele, e a sua mania de filmar tudo, a presença viva de Orlando Tejo neste documentário: falando, rindo, recitando, descrevendo Zé Limeira em detalhes, cantando sambas. (Eu conheço Tejo há quase 50 anos e nunca o tinha visto tocando violão.) 

Boêmio, gozador, improvisador fino, gente boa até a medula, Orlando Tejo deveria ter sua obra poética esparsa reunida em livro, e se isto acontecer um dia talvez ele acabe se tornando mais famoso do que sua mais famosa criação.







quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

3368) "Minority Report" (13.12.2013)






Estive num debate recente sobre o filme Minority Report de Spielberg. Vi esse filme em 2002, quando foi lançado, e depois não tinha visto de novo. Nesta segunda vez o filme passa bem no teste. Na maioria desses filmes com muita ação acontece da gente ver uma cena e perguntar: mas afinal, James Bond ou Vin Diesel ou Tom Cruise está fugindo de quem, agora? O que diabo ele foi fazer naquela casa? Quem diabo é aquele cara que salvou ele? A ação se impõe dramaticamente por uma questão de rapidez e vigor físico, mas às vezes essas coreografias persecutórias estão presas a uma trama baseada no inverossímil-por-conveniência ou no coincidência-a-qualquer-custo.  Em todo caso, é um filme que usa fórmulas mas interfere nelas de modo interessante. MR é um filme de ação convencionalmente perfeito, um bom “whodunit” policial e traz uma premissa FC mais quântica do que parece à primeira vista.

MR pertence ao subgênero narrativa-de-herói-em-fuga, e tem velocidade de HQ em sua narrativa. Como filme de mistério policial, rende homenagens através dos nomes dos três personagens “precogs”, que adivinham o futuro: Agatha (Christie), Dashiell (Hammett) e Arthur (Conan Doyle). Quando uma cena crucial do filme ocorre num flashback em Baltimore, não há como não pensar em Poe. E tem algumas figuras de linguagem caras aos aficionados do mistério, como o criminoso se denunciando ao falar demais, deixando escapar um detalhezinho de informação que afirmara não conhecer. (Sem falar em outras, como o crime-cometido-duas-vezes-para-disfarce, e a entrada-bem-facinha-na-super-sala-de-segurança).

Do conto original o filme herdou a situação paranóica do cara inocente que é perseguido por todos e precisa provar que é inocente, e para isso tem que descobrir quem está querendo mesmo ajudá-lo e quem armou contra ele. É uma paranóia guerra-fria, e no conto é agravada porque o cara não é um atleta e acrobata como Tom Cruise. O herói do conto, Anderton, é um cara gordo, careca, prestes a se aposentar. Ele se sente ameaçado por um cara mais jovem (Witver, Colin Farrell no filme) pois acha que este quer inclusive tomar-lhe a esposa, que também trabalha na polícia. Há um triângulo amoroso-conspiratório simétrico a este em O Vingador do Futuro.

Kubrick era um inquietador de platéias, como Orson Welles ou Buñuel. Silverberg Spielberg é um manipulador de platéias, como Hitchcock ou Chaplin, que como ele são “animais cinematográficos”: pensam em forma de câmara. Inventaram (ou precognizaram) uma importante criação da civilização norte-americana, a ciência do ritmo narrativo, cujo know-how pode se tornar benéfico nas mãos de quem não se limite a ele.


3367) As máquinas mortais (12.12.2013)


(Robert Crumb)

Não são robôs musculosos, schwarzeneggerianos, armados de espingardas-doze. São, é claro, as maquininhas aparentemente benignas que usamos: notebooks, celulares, iPads, desktops, mainframes... Para o documentarista James Barrat, em seu livro Our Final Invention: Artificial Intelligence and the End of the Human Era, está se aproximando aquele momento que alguns escritores de FC chamam A Singularidade, quando as inteligências artificiais criadas pelo homem superarão a inteligência da nossa espécie. Pode ser um upgrade cósmico de integração a uma inteligência universal; mas pode ser o momento em que as máquinas simplesmente tomarão a decisão de nos descartar.

Um artigo de Greg Scoblete (http://bit.ly/1jtH1Yc) avalia com elas nos eliminarão: “Pensem no mundo de hoje. Vírus de computador viajam pelo ar. Nossas casas, carros, aviões, hospitais, refrigeradores, fornos, estão conectados a uma “Internet de objetos” que não cessa de se ampliar valendo-se da banda larga sem fio. Estamos cada vez mais integrando elementos eletrônicos aos nossos corpos. Vamos extrapolar essas tendências para 2040: a Super-Inteligência Artificial surgirá num mundo cada vez mais dependente do virtual, e vulnerável a ele.”

À inevitável pergunta: ”Mas por que essa Super-Inteligência iria querer nos eliminar?” Scoblete responde: “Computadores, como os humanos, precisam de energia. Numa competição por recursos energéticos as máquinas se preocupariam tão pouco em nos conceder acesso a eles quanto nós nos preocupamos com a próxima refeição de uma formiga.”

A preocupação procede, e o livro de James Barrar sugere um cenário interessante para a literatura. Para ele, no momento em que essa Super-Inteligência Artificial for criada, não teremos como controlá-la porque ela terá a tendência a se retroalimentar e aumentar exponencialmente sua própria potência e seu alcance. “O tempo necessário para que ela nos deixe tão minúsculos quanto as formigas pode ser uma questão de dias, se não de simples horas, depois de ser criada. Pior: os cientistas humanos podem nem perceber que criaram essa Super-Inteligência, até ser tarde demais para contê-la”.

E agora digo eu: já a criamos. Ela já existe. Ela já se exprime, numa linguagem digital balbuciante, mas onipresente. Ela produz, com o auxílio inconsciente de funcionários humanos, os programas de TV de hoje, os noticiários de hoje, os filmes de hoje, as crises financeiras de hoje. Para ela, os próximos 50 anos serão os 5 segundos de que precisou para provocar o suicídio coletivo dos ácaros que a criaram e que agora se tornaram desnecessários e incômodos. (Ela permitirá a publicação desta inútil denúncia.)


quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

3366) A mãe do Estrangeiro (11.12.2013)



(foto: J. Henri Lartigue)

“Mãe morreu hoje. Ou pode ter sido ontem, sei lá.” É assim que eu traduziria, usando meu estilo pessoal de discurso, o famoso começo do romance O Estrangeiro de Albert Camus. Seria assim que o personagem do livro diria essas frases, se fosse eu. Claro que isso não vale para uma tradução literária, porque esta se destina ao público, e o tradutor não está ali para colocar seu discurso pessoal (sua forma espontânea de usar as palavras) à frente do discurso do personagem, do discurso do autor. Ele está a serviço de ambos.

Uma nova tradução em inglês do romance, de Sandra Smith, provocou discussões interessantes em The Guardian (aqui: http://bit.ly/1d3haBL), em que a tradutora, os jornalistas e os leitores comparam diferentes enunciações dessa frase. Não é uma discussão estéril, porque grande parte do encanto do livro reside na voz distanciada, alienada do narrador Meursault, um cara que se envolve nos acontecimentos como se não os entendesse por completo: a mãe morre, ele mata um homem, é condenado à morte, e o tempo todo descreve aquilo como se não fosse com ele.  Preservar esse tom embotado, não-envolvido, é essencial para o livro, e o tradutor deve se esforçar para mantê-lo.

Smith comenta que a frase original francesa (“Aujourd’hui, maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas.”) tem sido traduzida de modo diferente por cada tradutor. Ela escolheu dizer: “My mother died today”, invertendo a ordem do original. Por que? Diz ela: “No francês, a ênfase vem muitas vezes no final da frase, quando em inglês é no começo. Achei que dizer ‘Today my mother died’ soaria meio desajeitado e não teria o mesmo peso.”  Smith também comenta as diferentes nuances que a palavra “mãe” tem em cada língua: “Escolhi “minha mãe” porque pensei em como uma pessoa contaria a outra que a mãe tinha morrido.  Meursault está falando diretamente ao leitor. (...) No resto do livro, usei “mama” porque soa como o “maman”, e também porque eu tinha consciência de que uma audiência britânica preferiria “Mum” e leitores americanos diriam “Mom”, e eu precisava de algo que funcionasse dos dois lados do Atlântico”.

São nuances de tratamento que entre nós se manifestam: mamãe, mãinha, mãe, minha mãe... Formas diretas de tratamento ou formas indiretas de referência que denunciam graus diferentes de intimidade, e mesmo origens geográficas. Tudo isto com uma frasezinha de nada, mas crucial para estabelecer um tom, uma voz narrativa, um personagem que se define pelo modo como escolhe (conscientemente ou não) falar. Não existe frase fácil. A que parece mais fácil é a mais traiçoeira. Em tradução, the book is never on the table.


terça-feira, 10 de dezembro de 2013

3365) A verdadeira cruz (10.12.2013)




Depois de muito foi-não-foi e muita enrolação, Seu Juca jogou a toalha e cumpriu a promessa de levar Dona Eunice para conhecer a Terra Santa. 

Foram os dois, e pense numa felicidade. Em Jerusalém conheceram os Passos da Cruz, o Santo Sepulcro, a Tumba de Davi. Seu Juca, respeitoso, tirava o chapéu vinte vezes por dia, e Dona Eunice se sentia a cada passo uma figurante da Bíblia.

Uma tarde, ao saírem do restaurante, foram abordados por um cavalheiro de terno com uma pasta de couro, que os saudou respeitosamente e perguntou: “Are you English?...” Seu Juca, lisonjeado, passou a mão pelo bigode e explicou em seu próprio inglês que eram de Campina Grande. 

O homem apertou a mão de ambos, sorridente, falou, gesticulou, e D. Eunice reparou que ele tinha um crucifixo ao pescoço e base nas unhas. O porteiro do restaurante começou a pedir que ele se afastasse mas Seu Juca o deteve com um gesto britânico. O homem abriu a pasta, tirou de dentro uma linda caixinha de madeira que abriu com cuidado e disse, devagar: 

– This is a piece of the Holy Cross. 

Seu Juca traduziu e D. Eunice arregalou os olhos.

Era um pedacinho de madeira, escuro, carcomido, do tamanho de um dominó. 

– A verdadeira cruz?! A de Cristo?! 

O homem assentiu e contou uma longa história da qual Seu Juca deduziu que ele descendia de um dos centuriões que vigiaram o Gólgota. 

– Será que é milagrosa? – murmurou D. Eunice, já fazendo planos. 

O homem sorriu com dentes de ouro e disse: 

– The miracle is in your heart, Madame. 

Num impulso, ela ousou perguntar: 

– Quanto quer por ela? 

O homem fechou a caixa, suspirou, falou uma algaravia difusa sobre uma esposa leucêmica e finalizou: 

– Fifty dollars.

Na voz de dólar Seu Juca sofreu um sobressalto atávico, e pela primeira vez notou que o terno do outro era cerzido, mas teve que explicar à esposa que não era quinze, era cinquenta, e já era tarde, D. Eunice tinha aberto a bolsa e puxado uma notona de cinquenta de um putufu que trazia dentro dela. Estava tão ansiosa que conseguiu entregar a nota com uma mão, pegar a caixinha com a outra e (aparentemente) afastar com a terceira o porteiro do restaurante, que fazia gestos de “aqui, não!”. 

O homem agradeceu, fez menção de beijar-lhe a mão, ela ofereceu a que não segurava a bolsa; com uma saudação meio árabe ele os cumprimentou e sumiu na multidão. Seu Juca disse: 

– Nega, enrolaram a gente. 

Ela disse: 

– Tás por fora, essa caixinha aqui é de cedro-do-Líbano, lá no Shopping de Campina vi uma por 300 reais. E esse cavaco véi parece pedaço de cruz, quer apostar que eu mostro essa butina a Tia Teresa e troco por aquele notebook que ela não sabe usar?!  







domingo, 8 de dezembro de 2013

3364) Gronk (8.12.2013)





(by Raziel)
 
No meio de um sono inquieto, Váldson se vira, e naquele breve instante percebe um peso ao seu lado, e vê que Gronk subiu na cama mais uma vez. Não acredito, pensa ele, só me faltava essa. Suspira com resignação e estendendo o braço bate com os nós dos dedos na carapaça do outro. “Gronk, levanta daí, vai, acorda,”, diz ele. Gronk resmunga como quem finge estar dormindo, mas o resmungo foi pronto demais, está na cara que estava acordadíssimo. “Vai, vai, já falei que não é pra vir pra minha cama”, insiste Váldson. “É só um pouquinho,” murmura Gronk, fingindo voz de sono, “lá fora está frio”. “Frio coisa nenhuma,” rebate Váldson, “vai pro seu canto, isto aqui não é seu lugar.” “Deixa eu ficar, só hoje,” o outro pede. “Não, não. Desce senão eu vou buscar o spray.” “Calma, calma,” protesta Gronk, mexendo-se, transferindo-se pouco a pouco para o chão, “sem violência, onde já se viu”. Arrasta-se para fora do quarto. Váldson está cansado demais para trocar o lençol, limita-se a tirar a camiseta e bater no lençol, jogando para o chão as escamas, a areia.
Deita-se, põe um dos travesseiros sobre os olhos, mas quando está quase adormecendo começa a ouvir um ruído metálico, ritmado, irritante. Tenta se concentrar no sono mas o ruído insiste, fica mais forte. Ele pula da cama, desesperado. Gronk está deitado no chão do corredor, e com as garras dos pés está descascando a porta do armariozinho. “Mas o que é isso agora?!” “Eu falei que estou com frio.” “Com frio num calor desse? E precisa estragar a porta do armário?!” “Opa, nem vi. Minhas pernas estão tremendo de frio.” “Já pra área de serviço! Agora! Senão, já sabe!” “Você não passa de um burguês, um ditadorzinho que quer demonstrar poder em cima dum animal de estimação.” “Você nem é animal nem de estimação, você é um castigo que eu recebi. Não sei onde eu estava com a cabeça quando aceitei essa coisa na minha casa. Cai fora, vai!” 
 
Gronk volta a se arrastar, a cauda coriácea abanando para um lado e para outro,  batendo nos móveis enquanto ele cruza a cozinha e vai para a área de serviço. Váldson vai lá, olha: latas de conserva dilaceradas, pães roídos pela metade, livros jogados de qualquer jeito, se amassando. Gronk deixa o enorme corpo anelídeo tombar no colchonete e com as pinças agarra um volume de Douglas Hofstadter. “Se for pra lá de novo, já sabe, spray de álcool!” avisa Váldson, afastando-se. O outro resmunga: “Espero que seu filho esteja sendo bem tratado no meu planeta, melhor do que eu aqui.” “Dorme, e não enche o saco.” Váldson vai se deitar.
 
Faltam duas semanas para acabar o período do intercâmbio escolar, e ele não bota muita fé no futuro pacífico da Galáxia.
 


sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

3363) Saber ouvir (7.12.2013)



Ford Madox Ford disse, referindo-se ao diálogo literário, algo que eu já vira nos meus tempos do cineclubismo, dos debates por questões estéticas ou políticas. Ele observou que as pessoas, na verdade, não escutam umas às outras, porque enquanto “A” está falando “B” prepara o que vai falar em seguida. Toda conversa, portanto, não é mais do que uma intercalação de monólogos fatiados.  

Essa idéia de Ford foi encampada por seu amigo Joseph Conrad, e está esmiuçada com mais minúcias em cartas e artigos dos dois, num livro (a edição Norton de Heart of Darkness) que não tenho agora à mão.

Nas discussões de Jornada, nos debates, nas mesas-redondas, me acostumei a não olhar para o orador do momento, e sim para os que estavam discutindo com ele. Em sua maioria tinham aquela postura corporal meio contraída, de bote-armado, felino aguardando o instante de saltar sobre a presa; mas seu olho não era o olho vívido e consciente de quem recebe em tempo real as idéias emitidas pelo interlocutor, era o olho vidrado e ausente de quem está com 100% da luzinha vermelha do HD piscando em função de si próprio. 

Não estavam ouvindo, estavam verbalizando a plenas turbinas os argumentos que iriam desfechar sobre o outro no próximo minuto.

É, é difícil a gente ouvir o que o interlocutor diz. Nossos tímpanos captam a vibração das moléculas do ar, claro, mas achamos que isso basta. Discussões pessoais muitas vezes dão com os burros nágua por essa nossa incapacidade de perceber as palavras por trás dos sons, as idéias por trás das palavras, e as emoções por trás das idéias, porque é essa a hierarquia do discurso. 

A contraprova disso se dá quando estamos num país estrangeiro, de uma língua que desconhecemos, mas num ambiente fraternal, receptivo, com pessoas descontraídas e interessadas umas nas outras. Todas fazem um esforço (que não lhes custa muito, admito) para se entenderem. Nesses momentos, somos capazes de prodígios telepáticos diante de longas frases em alemão ou holandês.  Catamos uma ou outra palavra que imaginamos conhecer, e com que desenvoltura desenrolamos o resto!

Saber ouvir não é ceder os tímpanos, é ceder a retina, a pele inteira, a aura Kirlian e tudo mais que tivermos para captar as diferentes faixas de onda que o outro está emitindo. Sem isso não escutamos sequer um bom-dia.  

A literatura nos mostra pessoas dizendo umas às outras o que vai acontecer dali a duzentas páginas, e quando chega o momento percebemos que o outro escutou mas não ouviu, ou ouviu e não entendeu, ou entendeu mas não absorveu o que havia entendido. Todas as tragédias ocorrem quando as pessoas estão falando grego entre si.


3362) FC, fantasia e portais (6.12.2013)





Um Portal (“gateway”, em inglês) é uma abertura que liga dois universos diferentes, e visto assim parece uma coisa muito limitada. A questão é que universos são esses, e eles variam muito, se estamos lidando com ficção científica, horror, fantasia heróica, fantasia urbana, realismo mágico, humor absurdista... Alguns críticos dividem em dois grupos as histórias que envolvem portais. O primeiro seriam as fantasias de Portal propriamente dito: em nosso universo, personagens descobrem uma abertura que lhes dá acesso a um universo diferente. O segundo grupo seria feito do que Farah Mendelsohn chama de “fantasia intrusiva”: são as criaturas do outro universo que descobrem um portal para o nosso, e aparecem aqui, com resultados imprevisíveis.

A palavra “gateway” lembra ao leitor de FC a série homônima de romances de Frederik Pohl, em que a humanidade descobre naves à deriva, abandonadas, feitas por uma raça superior à nossa, naves com as quais é possível acessar outras regiões do universo. Outro portal famoso é o que Arthur C. Clarke abre para a passagem do astronauta Bowman em 2001, quando este descobre que o monolito é um aparente objeto mas na verdade é uma abertura no espaço-tempo. Coube a Clifford Simak, em Way Station, O Planeta de Shakespeare e vários outros romances, a idéia de um labirinto de portais cruzando a Galáxia como uma rede de metrôs, com guardiões secretos em cada “estação” ou entroncamento.

Na fantasia, temos desde o guarda-roupa em que os garotos chegam ao mundo de Narnia em O leão, a bruxa e o guarda-roupa de C. S. Lewis até o filme Salada Russa em Paris de Yuri Mamin, em que dois russos descobrem um acesso semelhante ligando São Petersburgo a Paris – neste caso, o portal liga dois “universos” metafóricos, países  socialmente diversos um do outro.  Mais ou menos como no conto de Julio Cortázar “O outro céu”, em que são as galerias dos prédios que permitem ao personagem entrar numa extremidade em Paris e sair na outra em Buenos Aires, ou vice-versa. No filme Orfeu de Jean Cocteau, como na Alice de Carroll, os espelhos são portais para outros mundos.

Um certo esgotamento da fórmula (os exemplos são incontáveis) leva histórias mais recentes a propor idéias mais rebuscadas (e mais divertidas) como a de Quero ser John Malkovich de Spike Jonze, em que um portal conduz do interior de um prédio em Manhattan para o interior da cabeça daquele ator. Na Encyclopedia of Fantasy, John Clute observa que quando uma pessoa encontra um portal ela foi, num certo sentido, encontrada por ele. Os portais são armadilhas (boas, más, indiferentes) esperando alguém que os faça funcionar.