sábado, 26 de outubro de 2013

3327) Hotel Glória (26.10.2013)




Faço tantas críticas ao capitalismo nesta coluna que em breve vou despertar a desconfiança do FBI, o qual rapidamente avisará a nossa Polícia Federal. Meia dúzia de agentes vestidos de Arquivo X irão se debruçar sobre as páginas do meu blog Mundo Fantasmo e, depois de uma noite insone cheia de café e cigarros, concluirão: “Ele simpatiza com o comunismo”. Certo e errado. É certo que simpatizo com esse nobre movimento. Mas é certo também que simpatizo com o Anarquismo, o Surrealismo, a Música Barroca, a Mecânica Quântica, a Poesia Concreta, a Pintura Abstrata, o Rock Progressivo e uma porção de outros movimentos que para mim são até mais importantes do que as idéias de Marx, Engels, Brecht, Maiakóvski e Chico B.

Reli o parágrafo anterior e percebo que já estou lá na esquina. Melhor voltar. Minhas críticas ao capitalismo não pretendem substituí-lo por outro sistema econômico, porque na minha idade acho que não me adaptaria. Sou capitalista, e, como certos peixes de água salgada, não sobreviveria em água doce. Mas até mesmo por compartilhar esse destino já sei que o capitalismo é um Titanic destinado ao plâncton submarino, e não ao porto de Nova York.

Irei direto ao ponto: o Hotel Glória, do Rio de Janeiro. É a mais recente vítima do bipolarismo capitalista num país indefeso como o nosso. Aqui, qualquer sujeito capaz de pedir um vinho de 2 mil dólares num jantar põe Governos, Ministérios e Congressos aos seus pés. Foi o caso do trêfego Eike Batista, que construiu um castelo de fumaça, um transatlântico de papel, uma pirâmide de gelo, e convenceu Deus e o mundo de que era um dos homens mais ricos do mundo. O mundo acreditou, e avalizou todos os seus projetos; Deus fez valer a voz da razão, e transformou tudo em cinza e debêntures.

O Hotel Glória, que visitei inúmeras vezes, era um dos edifícios mais nobres e interessantes do Rio de Janeiro. Eike, no auge da própria onda, incumbiu-se de reformá-lo para a (fatídica) Copa do Mundo. A revista Piauíde outubro registra: “Em 2010, o BNDES liberou 146,5 milhões de reais do fundo ProCopa e teve início a reforma misteriosa. (...) Detalhes do novo desenho só vieram a ser divulgados em abril de 2012, quando os custos da reforma já eram estimados em 300 milhões de reais. (...) O hotel (...) hoje está à venda por 225 milhões de reais (...). Do charmoso prédio neoclássico sobrou um gigantesco canteiro de obras em fase de desmanche”. Foi maldade? Não, porque o capitalismo não é necessariamente mau. O capitalismo – esse capitalismo de hoje, viciado em zeros e “ões” – é bêbado. Dinheiro é a mais viciante das drogas, e, pelo que se vê, a mais desorientadora de todas elas.


quinta-feira, 24 de outubro de 2013

3326) Memórias de um Mágico (25.10.2013)






“A mão é mais rápida do que o olho,” disse ele. Ergueu as mãos de dedos longos; mostrou as palmas, vazias, depois o dorso delas, com veias grossas e manchas marrons. Começou a encher o cachimbo, enquanto eu me servia de outra taça de vinho. Ele continuou: “Quando eu tinha nove anos, estava com minha família num restaurante de Marselha. Havia um copo vazio perto da borda da mesa, e ao gesticular eu bati nele com a mão, assim.”  Fez um gesto rápido, como de quem esbofeteia uma criança.  Soltou uma baforada e sorriu. “Peguei o copo antes que tocasse o chão. Ninguém queria acreditar no que tinha visto.”  Eu sorri e disse: “Foi verdade ou foi truque?”  “Verdade,” disse ele, “porque sempre fui rápido. Sabe por quê? Porque fazia antes de pensar. O olho via, a mão agia.  Esperar pelo cérebro seria fatal.”

Corri os olhos pelo salão com paredes cobertas de cartazes, onde o rosto e o nome dele apareciam numa variedade de cores, formas, fotos, desenhos, em mais línguas do que eu era capaz de decifrar. “Mas,” disse ele, “voltando ao que falamos há pouco, não há muita diferença entre tirar da cartola um coelho ou um pássaro. Os dois são difíceis. Sempre é difícil lidar com seres vivos. O resto... pufff!” Com a interjeição, tirou do fornilho aceso do cachimbo um filete de água cristalina, trouxe-o pendurado entre as pontas do indicador e do polegar, como uma fita, e o fez enrodilhar-se dentro de um copo vazio. Estendeu-me. Bebi sem hesitar. Era água limpa, fresca.

“Fogo, água, terra, ar, substâncias comuns ao nosso mundo como pano, papel, madeira ou metal... Tudo isto é fácil.” Ele cerrou os dedos, e ao abri-los tinha na palma da mão uma moeda de cobre com meu nome e meu rosto gravados. (É uma das lembranças dele que guardo até hoje.) “Pode publicar isto na sua revista,” continuou, “porque seus leitores o olharão como meu pai me olhou naquela noite”. Tossiu, deu um gole de vinho, voltou a fumar.

Prosseguiu: “Há pessoas capazes de ler pensamentos, de levitar, de mover coisas com a mente... Eu não. Eu produzo coisas que segundos atrás não existiam, mas tenho que usar uma cartola, um lenço colorido, um biombo – senão, ninguém acreditará no que está vendo.” Tirou da taça de vinho um rei de ouros gotejante, amassou-o, entregou-me uma chave idêntica à do meu carro. “Para fazer mágica, é preciso contar com a expectativa do público pela mentira, pelo truque. Se eles descobrissem que é tudo verdade, apedrejariam o mágico e incendiariam o teatro. É melhor que acreditem numa verdade mais confortável – por exemplo: que a mão é mais rápida do que o olho”. Estendeu-me a mão aberta: na palma dela um olho se abriu, e piscou para mim.


3325) Seu Nilo (24.10.2013)






Meu pai se gabava de ser capaz de passar 24 horas recitando de memória sonetos dele e de seus poetas preferidos (Olavo Bilac, Emilio de Menezes, Augusto dos Anjos) e inúmeros outros. 

Quando eu tinha 8 ou 10 anos, nas paredes da nossa casa havia, emoldurados, um retrato a carvão de Castro Alves, a reprodução de uma foto de Lampião, uma página de revista com uma foto de Bilac e o soneto “Dualismo” (que ainda sei de cor), uma foto de meu avô Braulio, que não cheguei a conhecer.

Tinha somente o curso secundário, foi tipógrafo, encadernador (ainda tenho livros encadernados por ele), funcionário público (foi chefe de gabinete de três reitores da URNe, atual UEPB), jornalista e radialista (na Rádio Borborema e Diário da Borborema, principalmente). 

Era organizadíssimo, “caxias”, muito severo com os funcionários, mas muito justo. Nos fins de semana, era um grande boêmio, bebia bastante, gostava de se cercar de gente alegre. 

Era desafinado e não cantava, mas o terraço da nossa casa vivia cheio de gente tocando violão e cantando; ele se limitava a acompanhar, batendo com uma faca numa garrafa. Gostava de fazer paródias de músicas conhecidas e em casa improvisava um soneto sobre qualquer bobagem que acontecia, o que divertia todo mundo.

Torcia pelo Sport do Recife (a cidade em que cresceu), pelo Flamengo, e pelo Treze; eu herdei essas três paixões. Temos fotos dele ao lado de Dida (do Flamengo) e de Telê (do Fluminense) quando esses times jogaram em Campina Grande. 

Colecionava revistas de futebol (Manchete Esportiva, Revista do Esporte, Gazeta Esportiva Ilustrada), encadernadas;  encadernou também tudo que conseguiu juntar sobre as Copas de 58 e 62. Esse material acabou se perdendo devido ao mofo, pois nossa casa no Alto Branco era muito úmida. 

Também colecionava dicionários, porque era charadista e enigmista, colaborador de muitas revistas Brasil afora sob o pseudônimo de Pequeno Polegar (era baixinho).

Não ligava muito para cinema. O único filme que o vi elogiar foi Ziegfield, o Criador de Estrelas, e seu ator preferido era Edward G. Robinson. 

Gostava de ler Coelho Neto, Humberto de Campos, Guerra Junqueiro, bem como folhetins (Ponson du Terrail, Michel Zevaco, Xavier de Montepin) e romances policiais tipo Shell Scott. 

Gostava de trabalhos manuais, de mexer com serrote, martelo, etc. Durante muitos anos teve um mimeógrafo no quarto dos fundos, com o qual ganhava a vida imprimindo boletins, quando estava desempregado. 

Eu me habituei a chamá-lo de “Seu Nilo” desde pequeno, e esse tratamento ficou para o resto da vida. Meu pai completaria hoje, 24 de outubro de 2013,  cem anos de idade. Agora, tomarei uma em sua memória. Tin-tin!







quarta-feira, 23 de outubro de 2013

3324) "Sanitário" (23.10.2013)




O que leva as pessoas a fazer revistas de quadrinhos? Não rende dinheiro (pelo menos não nos primeiros dez anos). Dá um trabalho enorme, é esnobado por alguns intelectuais, é ignorado pela imprensa... Bastariam estes sintomas para provar que as HQs são uma forma de arte pela arte, feita por gente que descobriu que 1) sabe fazer aquilo; e 2) gosta de fazer aquilo. E isto são condições necessárias e suficientes para fazê-lo.

Sanitário (revista HQ de Campina Grande – www.coletivowc.com.br) está cheia desse entusiasmo nos seus roteiristas e ilustradores. Humor, imaginação, uma dose do cinismo e da brutalidade que são “o Espírito do Tempo”, e com os quais temos de conviver, porque os tempos agora são assim. A revista lançou dois números temáticos: 1) “O Mundo Ainda não Acabou” e 2) “Grandes Monstros da Humanidade”. Alguns têm mais técnica; outros, têm idéias mais surpreendentes, mesmo que a técnica ainda seja na base da tentativa.

Em HQ, a idéia é essencial. A história tem que ter interesse, os personagens não podem ser apenas ilustrações do texto. Os diálogos têm que ser uma destilação e concentração do que seria dito, pra não perder tempo. Muitas vezes o cara tem isso, sabe fazer isso, mas não é um grande desenhista. A solução, ao meu ver, é transformar suas limitações em qualidades. Ao invés de tentar desenhar com A ou B, concentrar-se nas virtudes que tem (seja traço, seja enquadramento, seja textura, seja figurativismo bem resolvido... o que for).

No universo brasileiro da HQ, da tirinha, do cartum, existem grandes desenhistas, de técnica refinada: Laerte, Mike Deodato, Mutarelli, Shiko, Rafael Grampá, Fábio Moon & Gabriel Bá... Cada um desenha de um jeito totalmente diferente dos outros, mas todos tem o que em música a gente chama “domínio do instrumento”. Por outro lado, alguns dos melhores quadrinhistas atuais são pessoas que tecnicamente ninguém chamaria de grandes desenhistas: Bruno Maron, Alan Sieber, André Dahmer, além de mestres de uma geração anterior, como os falecidos Henfil e Glauco. Não têm “essas técnicas todas”, mas, por-cima-de-pau-e-pedra, cada um criou um estilo pessoal.

Estilo é a tensão entre o que a gente sabe fazer muito bem e o que a gente não consegue fazer de jeito nenhum. Um Henfil não tem a mesma técnica figurativa de um Laerte, mas isso não importa, porque ele é capaz de dizer tudo que quer usando aquilo que tem. Entre a rapaziada do Sanitário há quem domine a técnica “oficial”, há quem esteja inventando uma técnica própria, e há que esteja na encruzilhada entre as duas coisas. É a foto da nuvem, de um momento que não se repetirá, porque cada um irá numa direção diferente.


terça-feira, 22 de outubro de 2013

3323) Eike Batista (22.10.2013)




Eike Batista é um personagem épico dos nossos tempos, e não digo isto com ironia, ou melhor, a ironia evidente da frase tem como vítima os tempos, e não o valoroso cavalheiro-de-indústria. Há pouco tempo ele era o sétimo homem mais rico do mundo, o mais rico da América Latina, e agora, pelo andar da carruagem, em 2015 vai estar me pedindo dinheiro emprestado.

A trajetória de Eike tem tudo a ver com os nossos tempos, os tempos de riqueza virtual, sem lastro físico na produção, um ouro feito de tinta, uma fortuna feita de zeros e cifrões em tal quantidade que hipnotizam avalistas e fiadores incautos. Já tivemos grandes empreendedores brasileiros, desde o Visconde de Mauá até Delmiro Gouveia, homens que quebraram a cabeça e deram a vida para fazer deste país uma grande potência de acordo com os critérios deles. Mas Eike talvez esteja sendo (sua epopéia está longe de ter se encerrado) o que mais de perto corresponde a uma faceta essencial do caráter brasileiro, aquela que sempre sonha com um passo mais largo que as pernas, aquela que sempre conta com o ovo no cu da galinha, aquela que comemora a vitória futebolística com a bola ainda rolando e o placar em aberto.

Em 2012 Eike tinha uma fortuna avaliada em 30 bilhões de dólares; quebras e fracassos sucessivos de suas empresas geraram um efeito dominó que reduziu essa fortuna a 200 milhões, em julho deste ano. No espaço de menos de um ano e meio, ele perdeu 99% do que tinha. E isto não significa apenas que ele tinha dinheiro e agora não tem mais. Grande parte do dinheiro dele tinha dono. Era de outras pessoas (acionistas, credores, emprestadores, etc.), e sua fortuna mudou de sinal, o “Deve” engoliu o “Haver” e ameaça engolir, como um black hole cósmico, o próprio aventureiro.

Eike parece aquele rapaz do conto “A nota de mil dólares”, sobre o qual já escrevi nesta coluna (aqui: http://bit.ly/1cEtmtA). Um rapaz acha na rua uma nota de mil dólares e, crendo-se rico, tem um surto de dinamismo e incendeia (no bom sentido) a economia da cidadezinha onde vive. Depois percebe que a nota era falsa, mas o bem já estava feito: a cidade agora está fervilhante de atividade. É o caso de Eike, coitado. No caso dele, não foi bem uma nota, foi algo como um cheque de mil dólares que ele preencheu, assinou, e foi passando adiante. Milhares de fiéis, entre eles o governador e o prefeito do Rio de Janeiro, ajoelharam-se diante desse talismã e abriram as carteiras. Voilà! – o cheque não tinha fundos. Mas – convenhamos – quando uma catástrofe acontece, que seja grande, que seja épica, que seja uma história para se contar aos netos. Eu já estou começando.


domingo, 20 de outubro de 2013

3322) Na moral, véi (20.10.2013)





Na moral, véi, pra que essa zueira por grana. Grana serve pra quê, meu irmão? O jornal trata um caba rico como se ele fosse o filme do osca. Só falta deitar no chão e mandar passar por cima. Eu, hein. É rico hoje, fica pobre amanhã. E riqueza tira o sono. O caba tem medo de ser assaltado, tem medo do banco dele falir, tem medo até de comer uma dessas meninas das revista e depois ter que fazer deniá e pagar pensão. 

Dinheiro é mel que traz mosca. O caba vive num iate, beleza, iate de trinta milhão, beleza, aí o iate dá um tombo de banda, o cara cai por cima da paredinha, e lá embaixo tem um tubarão que tá esperando por ele desde Pedro Álvares Cabral. 

Eu não invejo dinheiro. Vivo por aqui passando bem, e pão com sardinha nunca fez mal a ninguém. E daí, o cara tem camarote no show da Madona? Eu escuto o show da Madona aqui no meu radin. E não preciso ver a Madona com as coxa de fora, minha mulher tem duas coxa igual a da Madona e dá menos trabalho do que ela. 

Eu, hein. O caba dá 2 mil reais numa garrafa de vinho e quando acabar o otário sou eu. O caba vive viajando de jatinho pra discutir contrato em Dubai e quando acabar o estressado sou eu. Agora pergunta quem é que tá assinando o ponto na patroa dele enquanto ele está em Dubai. Eu sou um lascado? Sou, sou um lascado, se lascado é quem não anda de bemidáblio e não deve ao imposto de renda. 

O sol nasceu pra todos, mas quem não quer bronzear não bronzeia. Eu não preciso de tudo que um rico precisa. Rico começa ambicioso, porque a conta do ter nunca enche, mas depois acaba necessitado, porque afunda o navio, o poço de petróleo seca, e lá vai ele pro comprimido. 

Me considere, rapaz. Quero lá ser rico. Rico quando fica velho pinta logo o cabelo com chá-mate. Rico é inseguro, é travado, é medroso. Se ele tossir de mau jeito a Bolsa de Valores perde o fechicler. Na moral, véi. Minha vida é pequena mas é minha. Não quero ser rico. Eu evito até jogar na Mega-Sena. 

Pobre pode ser um cara que precisa arrastar um trem a vida inteira, mas um rico é um cara que tem que correr a vida inteira porque o trem tá arrastando ele. 

Rico pensa que é dono do mundo, e não é dono nem dele mesmo. Tem casona e não mora nela, tem dinheiro e não tem tempo de gastar, come do bom e do melhor mas tá o tempo todo pensando no câmbio, no paraíso fiscal, no mercado futuro. 

Na moral, véi, eu olho um rico e vejo um robô, um zumbi, um cara-de-paletó sempre atrasado, sempre sorrindo, sempre nervoso, um cara com uma doença que faz ele precisar sempre do muito, do mais, porque no dia em que ele tiver só o suficiente ele dá um pipôco, dá um curto-circuito, e vira pó de peido.












sábado, 19 de outubro de 2013

3321) A ex-música (19.10.2013)




A ex-música é aquela que a gente compôs um dia cheio de inspiração, cantou com entusiasmo, mas com o passar do tempo foi ficando datada, foi ficando ultrapassada, e depois de certa altura não nos retratava mais. 

Começou a ficar estranha com a passagem do tempo. Começou a perder o jeito, a soar de uma maneira incômoda. Era uma música tão legal, e agora, sem mudar um verso, ficou parecendo um monstrengo.

De que maneira uma música se torna ex-música? Afinal, ela continua existindo! Não foi deletada do Hd do mundo, ainda toca no rádio se foi gravada, ou é pedida pelos amigos quando não foi. Continua igual ao que era antes. O que mudou foi a reação que desperta no autor. Algo que ela fazia vibrar não vibra mais. Algo que ela continha foi esvaziado por uma fresta invisível e sumiu para sempre. 

A música não mudou, mas a pessoa que a fez não é mais a mesma, é, agora, uma pessoa que não gosta dela.

Em geral isso acontece porque o autor acha que evoluiu, e que a ex-música denuncia o quanto era incompetente e imaturo naquela época. Pode ser pelo uso de gírias que hoje estão datadas e constrangedoras, soando grotescas aos ouvidos contemporâneos. Pode ser a expressão de sentimentos líricos ou de posições ideológicas que o autor preferiria esquecer. Pode ser porque denuncia o quanto eram quadradões nossos acordes, previsíveis as nossas rimas. Pode ser porque hoje ficam evidentes as nossas intenções imitativas em relação aos sucessos daquele tempo. 

Tanto faz. Cada caso é um caso, mas certos casos são casos perdidos. Uma ex-música é um caso que chegou ao fim, que foi cortado rente ou que foi deixado para definhar devagarinho no silêncio e na distância.

A ex-música, porém, se recusa a morrer. Está viva nos outros, mesmo que defunta no ex-dono. É preciso, portanto, aceitar sua condição morta-viva, sobrevivente póstuma de si mesma, e recebê-la bem quando ela se aproxima, cantada por um amigo incauto, tocada numa festa, recordada numa entrevista ou numa roda de violão. 

Melhor não revelar a ninguém a condição em que ela se encontra dentro de nós, inclusive porque tocar nesse assunto em público seria entreabrir um sarcófago cujo conteúdo é melhor deixar quieto. Melhor tratá-la como uma música qualquer, tocá-la quando pedirem, cantar sem sabotagens, demonstrar naturalidade. Permitir regravações, porque afinal se um dia ela nos disse alguma coisa talvez esteja a dizê-la agora a outros, e quem é um simples autor para governar esses diálogos? 

A gente deixa de ser dono daquilo que mostra aos outros. Uma ex-música é algo que foi embora da gente para sempre e se exilou na memória alheia. Que fique por lá, e que seja feliz.







sexta-feira, 18 de outubro de 2013

3320) Black Blocs (18.10.2013)




Quando eu era jovem ficava perplexo vendo os mais velhos se queixarem da violência do mundo. Violência? Que violência? À minha volta eu via som e fúria, mas nunca pensei que no mundo existisse outra coisa. Hoje – válvulas piscando, bielas batendo, lataria sacolejando – qualquer som me incomoda e qualquer fúria me enfurece. Talvez porque os jovens sejam feitos de energia zunindo nos neurônios e fervendo nas artérias. Pra quem é jovem, furacão é brisa. Quando a idade vai impondo seu ritmo de jogo, o ex-jovem claudica, bambeia, percebe que o campo no 2º. tempo tem o dobro do tamanho que tinha no primeiro.

Isto, contudo, são os balõezinhos verbais que se formam na minha cabeça quando estou com a mente de pijama. Vestido para a luta literária (tênis, jeans e camiseta) tenho os mesmos 20 anos de qualquer roqueiro, e vejo que o barulho dos jovens não é por excesso de volume de sua parte. O problema é A Surdez do Mundo. É o mundo que ao ficar mais velho vai ficando mais surdo, se não dos tímpanos então do juízo (ou do interesse). O mundo não escuta e quando escuta não ouve, quando ouve não entende, quando entende não reage, quando reage é mandando todo mundo calar a boca senão leva porrada. Sendo assim, decibéis nele.

Isso talvez explique coisas como – pra dar só um exemplo, bem atual – o quebra-quebra dos “arésios” conhecidos como Black Blocs. Me perguntam se eu sou a favor da existência deles (é como me perguntar se sou a favor da existência das onças). Por mim, o mundo não teria violência. O mundo seria um lugar sem exploração econômica, sem injustiça social, sem miséria, sem corrupção e ladroagem, sem analfabetismo e desemprego. (Olhem como sou realista – não questiono o câncer, os tsunamis, as serpentes venenosas; só questiono os males que são consequência de decisões humanas.) Por mim o mundo seria uma espécie de Festival de Woodstock, e na hora de trabalhar ele se pareceria com aquelas propagandas socialistas cheias de operários felizes e camponesas sorridentes e saudáveis.

O “pobrema” é que o mundo não é assim, e alguém precisa dizer isso ao mundo. Me lembro de, muitos anos atrás, ir com milhares de pessoas abraçar a Lagoa Rodrigo de Freitas, num imenso happening riponga que parecia Céu de filme espírita. Mas sou realista e não creio que Governos, Bancos e Corporações sejam tomados de acessos de meiguice diante desses espetáculos. O que os impressiona, os inquieta e os encurrala é um dos seus instrumentos preferidos: a violência física, que eles financiam, endossam, incentivam e acobertam. Não, não posso dizer que sou a favor dos Black Blocs, mas a verdade é que sou contra tudo que eles também são contra.


quinta-feira, 17 de outubro de 2013

3319) Coisas de tradução (17.10.2013)




(by Chema Madoz)

Traduzir é um processo traiçoeiro. Não sei se vocês conhecem aqueles saites de tradução instantânea (BabelFish é o que uso mais) onde você bota uma frase, e diz de que língua para que língua ele deve traduzir. Eu já peguei uma estrofe dos Beatles e passei do inglês para o português; depois, do português para o russo; depois, do russo para o italiano; e assim por diante, em dez saltos sucessivos. O texto do fim era ininteligível. Perdia-se o sentido, o nexo entre as partes do discurso, palavras eram traduzidas para algo “parecido” num passo, e no passo seguinte para o “parecido com o parecido”, até a Entropia fazer com o texto o que a polícia carioca faz com uma manifestação pacífica.

Na recente edição da Antologia da Literatura Fantástica de Borges, Bioy Casares e Silvina Ocampo pela Cosac Naify, há uma nota interessante. A antologia reúne textos que originalmente eram em inglês, francês, italiano, chinês, japonês, alemão e outras línguas. Na edição argentina, foram todos, é claro, traduzidos para o espanhol. A nota da edição brasileira (que é traduzida por Josely Vianna Baptista) diz:

“A editora traduziu todos os contos da presente coletânea a partir das versões de Borges e Bioy Casares, entendendo que assim respeitaria a poética dos autores. Em 1982, quando foi publicada uma edição italiana da Antologia, Borges afirmou: ‘Não traduziram nossa antologia; procuraram as fontes e traduziram. Agiram assim em prejuízo do leitor, naturalmente. Não deveriam ter escolhido um livro de autores que se distinguem por suas transcrições e citações infiéis’ (Em A. Bioy Casares, Borges, Barcelona: Destino, 2006, p. 1562).”

Isso mostra o (como direi?) anticonvencionalismo de Borges. Para mim, o correto é o que os italianos fizeram: retraduzir os contos de suas línguas originais, não de suas versões argentinas. Borges era famoso por seu descaso para com a exatidão tradutória. Assinou (sem traduzir) uma versão em espanhol da Metamorfose de Kafka (o que só foi descoberto muito tempo depois). Sua tradução da “A carta furtada” de Poe omite parágrafos inteiros, aumentando a fluência do texto mas omitindo a exatidão maníaca do autor. Borges parece crer que as boas histórias se fazem com bons enredos, e que dez filtragens no BabelFish deixariam uma boa história ainda em condições de ser lida e apreciada. Ele disse certa vez que sucessivas gerações de homens fazem com uma frase o que as águas de um rio fazem com uma pedra: deixam-na polida, lisa, despida de tudo que é supérfluo. Ele certamente acreditava que cabia à tradução aperfeiçoar as qualidades do original e eliminar o que o tradutor considera seus defeitos.


quarta-feira, 16 de outubro de 2013

3318) O conto e o romance (16.10.2013)



(manuscrito de Lovecraft)

No recente VII Fantasticon, em São Paulo, participei de uma proveitosa troca de idéias com o escritor Marcelino Freire sobre “Cortázar e o conto sem véus”, um passeio pela obra do escritor argentino, um dos maiores contistas do continente. Marcelino lembrou uma famosa definição de Cortázar, que era um fã do boxe. Dizia ele que um romance é uma luta de boxe que se ganha por pontos, e o conto é uma luta em que se ganha por nocaute. (Ele poderia ter dito, se fosse fã do atletismo, que o romance é uma maratona e o conto é uma corrida de 100 metros rasos.)

Esse assunto me vem à mente depois que foi concedido o Prêmio Nobel de Literatura à canadense Alice Munro, que aliás nunca li, mas que fiquei sabendo ser uma especialista no conto. Isto deu margem a discussões, vindas de todos os lados, a respeito de contistas que nunca ganharam o Nobel (a começar por Borges) porque, segundo se teme, a Academia Sueca talvez considere o conto um gênero menor. (Aqui pra nós, eu acho que há uma veneração excessiva por essa Academia provinciana e pelo tal Prêmio Nobel, que é tão cheio de injustiças, equívocos e bobagens quanto qualquer prêmio de academia municipal de letras do Sertão do Borogodó.)

Acho que o preconceito em relação ao conto, que o faz perder em importância para o romance, é o mesmo que acontece com o filme de curta-metragem (considerado “uma obra menor” em relação ao longa-metragem). Tudo resulta da ética do labor, do trabalho, do capital, do consumo, uma ética perniciosa que, como sempre acontece, acaba produzindo uma estética. Acaba determinando (por valores acidentais e externos) o que é e o que não é uma obra de arte, o que tem e não tem valor artístico.

Por um lado, essa ética supõe que é preciso mais trabalho para escrever um romance de 300 páginas do que para escrever um conto de vinte (assim como se supõe que é mais trabalhoso dirigir um filme de 90 minutos do que um filme de dez ou quinze). Mais trabalho, segundo essa ótica, significa mais valor. Não se pode (pensam eles) comparar o valor de 300 páginas ao valor de vinte. (Ao que os contistas retrucam que é muito mais trabalhoso escrever um livro de contos de 300 páginas do que um romance do mesmo tamanho.)

E assim como se cria uma estética do trabalho, cria-se uma estética do consumo. O consumidor paga por um romance de 300 páginas porque vê ali o valor agregado do trabalho, o que segundo ele faz o romance “conter mais literatura” do que o conto. Essa estética quantitativa (ser longo é um valor estético em si mesmo) está espalhada por todas as artes, mas em nenhuma tem causado tantas injustiças quanto na literatura e no cinema.