quinta-feira, 17 de outubro de 2013

3319) Coisas de tradução (17.10.2013)




(by Chema Madoz)

Traduzir é um processo traiçoeiro. Não sei se vocês conhecem aqueles saites de tradução instantânea (BabelFish é o que uso mais) onde você bota uma frase, e diz de que língua para que língua ele deve traduzir. Eu já peguei uma estrofe dos Beatles e passei do inglês para o português; depois, do português para o russo; depois, do russo para o italiano; e assim por diante, em dez saltos sucessivos. O texto do fim era ininteligível. Perdia-se o sentido, o nexo entre as partes do discurso, palavras eram traduzidas para algo “parecido” num passo, e no passo seguinte para o “parecido com o parecido”, até a Entropia fazer com o texto o que a polícia carioca faz com uma manifestação pacífica.

Na recente edição da Antologia da Literatura Fantástica de Borges, Bioy Casares e Silvina Ocampo pela Cosac Naify, há uma nota interessante. A antologia reúne textos que originalmente eram em inglês, francês, italiano, chinês, japonês, alemão e outras línguas. Na edição argentina, foram todos, é claro, traduzidos para o espanhol. A nota da edição brasileira (que é traduzida por Josely Vianna Baptista) diz:

“A editora traduziu todos os contos da presente coletânea a partir das versões de Borges e Bioy Casares, entendendo que assim respeitaria a poética dos autores. Em 1982, quando foi publicada uma edição italiana da Antologia, Borges afirmou: ‘Não traduziram nossa antologia; procuraram as fontes e traduziram. Agiram assim em prejuízo do leitor, naturalmente. Não deveriam ter escolhido um livro de autores que se distinguem por suas transcrições e citações infiéis’ (Em A. Bioy Casares, Borges, Barcelona: Destino, 2006, p. 1562).”

Isso mostra o (como direi?) anticonvencionalismo de Borges. Para mim, o correto é o que os italianos fizeram: retraduzir os contos de suas línguas originais, não de suas versões argentinas. Borges era famoso por seu descaso para com a exatidão tradutória. Assinou (sem traduzir) uma versão em espanhol da Metamorfose de Kafka (o que só foi descoberto muito tempo depois). Sua tradução da “A carta furtada” de Poe omite parágrafos inteiros, aumentando a fluência do texto mas omitindo a exatidão maníaca do autor. Borges parece crer que as boas histórias se fazem com bons enredos, e que dez filtragens no BabelFish deixariam uma boa história ainda em condições de ser lida e apreciada. Ele disse certa vez que sucessivas gerações de homens fazem com uma frase o que as águas de um rio fazem com uma pedra: deixam-na polida, lisa, despida de tudo que é supérfluo. Ele certamente acreditava que cabia à tradução aperfeiçoar as qualidades do original e eliminar o que o tradutor considera seus defeitos.


quarta-feira, 16 de outubro de 2013

3318) O conto e o romance (16.10.2013)



(manuscrito de Lovecraft)

No recente VII Fantasticon, em São Paulo, participei de uma proveitosa troca de idéias com o escritor Marcelino Freire sobre “Cortázar e o conto sem véus”, um passeio pela obra do escritor argentino, um dos maiores contistas do continente. Marcelino lembrou uma famosa definição de Cortázar, que era um fã do boxe. Dizia ele que um romance é uma luta de boxe que se ganha por pontos, e o conto é uma luta em que se ganha por nocaute. (Ele poderia ter dito, se fosse fã do atletismo, que o romance é uma maratona e o conto é uma corrida de 100 metros rasos.)

Esse assunto me vem à mente depois que foi concedido o Prêmio Nobel de Literatura à canadense Alice Munro, que aliás nunca li, mas que fiquei sabendo ser uma especialista no conto. Isto deu margem a discussões, vindas de todos os lados, a respeito de contistas que nunca ganharam o Nobel (a começar por Borges) porque, segundo se teme, a Academia Sueca talvez considere o conto um gênero menor. (Aqui pra nós, eu acho que há uma veneração excessiva por essa Academia provinciana e pelo tal Prêmio Nobel, que é tão cheio de injustiças, equívocos e bobagens quanto qualquer prêmio de academia municipal de letras do Sertão do Borogodó.)

Acho que o preconceito em relação ao conto, que o faz perder em importância para o romance, é o mesmo que acontece com o filme de curta-metragem (considerado “uma obra menor” em relação ao longa-metragem). Tudo resulta da ética do labor, do trabalho, do capital, do consumo, uma ética perniciosa que, como sempre acontece, acaba produzindo uma estética. Acaba determinando (por valores acidentais e externos) o que é e o que não é uma obra de arte, o que tem e não tem valor artístico.

Por um lado, essa ética supõe que é preciso mais trabalho para escrever um romance de 300 páginas do que para escrever um conto de vinte (assim como se supõe que é mais trabalhoso dirigir um filme de 90 minutos do que um filme de dez ou quinze). Mais trabalho, segundo essa ótica, significa mais valor. Não se pode (pensam eles) comparar o valor de 300 páginas ao valor de vinte. (Ao que os contistas retrucam que é muito mais trabalhoso escrever um livro de contos de 300 páginas do que um romance do mesmo tamanho.)

E assim como se cria uma estética do trabalho, cria-se uma estética do consumo. O consumidor paga por um romance de 300 páginas porque vê ali o valor agregado do trabalho, o que segundo ele faz o romance “conter mais literatura” do que o conto. Essa estética quantitativa (ser longo é um valor estético em si mesmo) está espalhada por todas as artes, mas em nenhuma tem causado tantas injustiças quanto na literatura e no cinema.


terça-feira, 15 de outubro de 2013

3317) Biografia ou fofoca (15.10.2013)



Fiquei sem saber se me metia na polêmica sobre biografias não-autorizadas. De um lado, querendo manter a lei que as proíbe, estão compositores como Chico Buarque, Roberto Carlos, Caetano, Gil e Djavan. Do outro, defendendo o direito de alguém escrever uma biografia sem pedir ao biografado, estão Ruy Castro, Fernando Morais, Lira Neto e outros autores de biografias famosas. Sinto-me próximo aos dois grupos, mas é mais provável eu escrever um dia a biografia de alguém do que alguém escrever a minha.

Sou contra a proibição prévia de biografias não-autorizadas. Minha regra é: deixa publicar, e depois avalia. Temos uma tradição de excelentes biógrafos, e o gênero é levado a sério em nosso país. Biografias mal-intencionadas ou incompetentes dificilmente emplacam. E trabalhos sérios como os dos que citei acima e outros, sempre dão um bom retorno de público e crítica. Sou contra censura prévia. Se uma biografia minha me ofender, ou disser mentiras ao meu respeito, chamarei meus advogados e cairei com-água-e-lenha em cima do pirangueiro, que vai arrenegar o dia em que nasceu. (Cuidado com os caras bonzinhos feito eu. Somos vingativos.)

Tenho, contudo, um esboço de teoria para explicar o inexplicável, para entender por que cantores e compositores tão inteligentes se unem para bloquear o trabalho dos biógrafos. É que nossa música popular, ou melhor nosso “show-business” (a cada década que passa temos mais “show business” e menos música popular) convive, de maneira um tanto promíscua, não com biógrafos acadêmicos ou sérios, mas com a indústria de fofocas, difamações e calúnias que se espalha por canais de TV, revistinhas de fãs e de frivolidades em torno da mídia, colunas de mexericos mal-intencionados, blogs de fofocas plantadas por vingança ou despeito...

É da maledicência, doença endêmica do “show-business”, que eles têm medo, não dos biógrafos da academia ou da imprensa séria. Acham que se a lei for revogada logo aparecerão Fulaninho, Sicraninha ou Beltraninho prontos para destilar venenos, exageros, insinuações dúbias, e tudo o mais que infelizmente é moeda corrente nesse camelódromo da informação que ajuda a sustentar gravadoras e tevês. A mentalidade de estrelismo do “show business” faz da música e da televisão uma feira de vaidades, um bazar de invejas, um forno de ressentimentos. “Biografia”, no dicionário que vigora ali, é a chance de ajustar contas em nome de confrontos passados ou de antipatias gratuitas. O problema é que, na ânsia de se livrar dos picaretas, nossos artistas estão querendo barrar os estudiosos sérios. E tanto eles quanto os biógrafos sairão deste equívoco como perdedores.


domingo, 13 de outubro de 2013

3316) O turista idiota (13.10.2013)



Um dos tipos mais perniciosos de turista é o turista idiota, o turista que tem alguma grana mas é burro, desinformado, tem mentalidade tacanha. 

O saite Blogdramedy (uma contração de “blog + drama + comedy”?) transcreve uma porção de reclamações feitas por turistas que compraram pacotes da Thomas Cook Vacations (da Inglaterra) para viajar por diferentes lugares do mundo mas sentiram-se enganados ou prejudicados de alguma forma. A gente não sabe se gargalha pelo ridículo alheio ou se chora com pena da humanidade.

“É muita preguiça dos lojistas de Puerto Vallarta fecharem à tarde. Precisei às vezes comprar coisas durante a hora de ‘siesta’, que devia ser proibida”. Bem, o imperialismo nasceu dessa necessidade de invadir os outros países para forçar aquelas pessoas a se comportar de acordo com os costumes da Inglaterra, e não com os deles. 

Outra madame reclama: “No meu passeio em Goa, na Índia, desagradou-me ver que quase todos os restaurantes serviam curry. Não gosto de comida apimentada”. Pois é, não custava nada ter permanecido em Manchester tomando chá com biscoitos. 

Outro cliente é mais radical e protesta: “Fomos passar as férias na Espanha e tivemos problemas com os taxistas, que eram todos espanhóis”. Outro, mais radical ainda: “Havia muitos espanhóis por lá. Os recepcionistas falavam espanhol, a comida era espanhola. Ninguém nos avisou que haveria tantos estrangeiros”.

“A praia era muito cheia de areia e tínhamos que limpar tudo ao voltar para o hotel”, queixa-se um que nunca viu praia na vida. Outro protesta: “A areia não era como a que aparece nas fotos do panfleto. A das fotos é branca mas a de lá era mais amarelada.” Difícil atender um consumidor tão exigente. 

Outra madame observa: “Não deviam permitir às moças fazer topless na praia. Isso ficava distraindo meu marido, quando tudo que ele queria era relaxar”. Valei-me, Santa Inocência. “Fui mordido por um mosquito,” queixa-se outro, “e o panfleto não avisou que haveria mosquitos”.

Não devo ser muito severo com essas pessoas, porque eu não seria severo com os matutos de Cabrobó se reclamassem do que os incomodou num hotel 5 estrelas de Paris. Gente ignorante e bronca existe em todo canto. E nas nações e regiões mais ricas existem pessoas broncas e ignorantes que conseguiram a duras penas (são burras) amealhar uns cobres para fazer turismo por um mundo que não conhecem, que nunca tiveram tempo de estudar, um mundo que as incomoda por ser diferente do seu, e que, no raciocínio defensivo delas, precisa ser modificado para se adaptar aos seus gostos, porque afinal “elas estão pagando caro pela viagem de férias”.




sábado, 12 de outubro de 2013

3315) Antologias fantásticas (12.10.2013)





Saiu finalmente no Brasil a primeira tradução integral de um clássico da literatura imaginativa: a Antologia da Literatura Fantástica (Cosac Naify, 2013), organizada a seis mãos por Jorge Luís Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo. Esta antologia teve um certo impacto na literatura argentina quando saiu em 1940, e um impacto muito maior com a sua segunda edição aumentada em 1965, quando Borges já havia ganho em 1961 o Prêmio Formentor, que o deixou famoso no mundo inteiro. A história tortuosa dessas edições (e da edição em inglês, The Book of Fantasy, com repertório de contos substancialmente diverso) é contada aqui num posfácio de Walter Carlos Costa. Outro posfácio desta edição da Cosac Naify é assinado por Ursula LeGuin – é o texto incluído na edição em inglês, onde a autora de Os Despossuídos faz especulações sobre os diferentes usos do termo “fantasia”. 

Esta edição é uma beleza de livro, com uma capa multicor e chamativa (onde o título e os nomes dos autores, infelizmente, ficam quase invisíveis) e um belo projeto gráfico que ajuda a leitura. São 75 textos, onde fica bem claro que os organizadores não estavam nem aí para os critérios convencionais de antologias de contos. Eles incluem trechos de romances (alguns com apenas 3 ou 4 linhas), fábulas tradicionais, diálogos teatrais (“Um lar sólido” de Elena Garro, “Uma noite na taberna” de Lord Dunsany, “Onde a cruz está marcada” de Eugene O’Neill); colocam mais de um texto de um mesmo autor; incluem textos deles próprios. É claramente um trabalho feito por prazer, sem muita preocupação com as opiniões alheias. Por isso, tornou-se um livro único, inimitável. No prefácio, Adolfo Bioy Casares faz um esboço de classificação de temas e teoriza um pouco sobre o gênero, que ele próprio praticou com bons resultados.

Há muitos contos clássicos aqui, aqueles que todo fã do fantástico já leu e talvez já tenha: obras de Maupassant, Kafka, Wells, Edgar Allan Poe. Mas há surpresas mais sutis, que nem todo mundo conhece: “Enoch Soames” de Max Beerbohm, “Ponto morto” de Barry Perowne, “O conto mais belo do mundo” de Kipling, “Sredni Vashtar” de Saki... Três deles eu havia incluído no meu Contos Fantásticos no Labirinto de Borges (Casa da Palavra, 2005): “Onde seu fogo nunca se apaga” de May  Sinclair, “O bruxo preterido” de Dom Juan Manuel e “Os cativos de Longjumeau” de Léon Bloy. E há pelo menos uns vinte que não li ainda, o que me garante algumas horas de viagem pelo fantástico, conduzido pelas mãos de quem já leu mais do que eu, em idiomas que não alcanço. O preço do livro é pesado (69 reais) mas por mim vale cada centavo.



sexta-feira, 11 de outubro de 2013

3314) Ser escritor (11.10.2013)




Ser escritor é viver duas vidas pela metade, a do mundo de fora e a do mundo de dentro. Ser escritor é cultivar cacoetes, pequenos rituais que adiam a hora terrível de começar a escrever. Ser escritor é ficar das 11 da noite às 2 da manhã escrevendo o melhor conto de sua vida, perder o arquivo sem ter salvo, desesperar-se, sentar de novo, refazer tudo até as 5, e perceber que ficou melhor do que antes. Ser escritor é abrir cada revista ou suplemento literário e passar os olhos de revoada pelas matérias em busca do próprio nome. Ser escritor não é padecer no paraíso, é divertir-se no inferno. Ser escritor é transformar água em vinho.

Ser escritor é ler parando o tempo todo para se perguntar: “Por que achei esta frase boa? Por que achei esta outra frase ruim?”. Ser escritor é anotar dez mil idéias sabendo que somente uma dúzia delas se transformará em texto, mas anotar mesmo assim. Ser escritor é ver a própria alma se alternando entre gargalos e inundações. Ser escritor é escrever uma frase crucial, mas saber que uma palavra ali pode ser substituída por outra melhor, e até achar pode levar meses. Ser escritor é ir para uma Feira do Livro levando 30 exemplares de livros seus e trocar por 30 livros de colegas para trazer na volta.

Ser escritor é ter que ao mesmo tempo conservar o passado e conversar com o futuro. Ser escritor é ver suas melhores frases lhe ocorrerem quando está no chuveiro, ou em pé no metrô, ou no meio de uma sessão no cinema, onde quer que seja impossível anotá-las. Ser escritor é ter que pagar o aluguel com a venda de manifestos dirigidos à posteridade. Ser escritor é passar três dias sem conseguir escrever porque chegou na cena em que um personagem vai ter que morrer para sempre. Ser escritor é passar o dia respondendo “sim... tudo bem... claro que pode... por mim está OK...” às coisas que a família inteira lhe diz.

Ser escritor é, ao faltarem dois meses para sua noite de autógrafos, começar a frequentar as noites de autógrafos dos amigos. Ser escritor é ser ao mesmo tempo arquiteto, músico, jornalista, padre confessor, voyeur, exibicionista, alquimista e publicitário. Ser escritor é ler livros alheios premiados e ficar encontrando erros que jamais teria cometido. Ser escritor é vasculhar a própria mente em busca de idéias como um mendigo vasculha uma lata de lixo em busca de uma coxinha em boas condições. Ser escritor é inventar paredes onde havia a treva, inventar uma porta onde havia uma parede, uma fechadura onde havia uma porta, uma chave para abrir a fechadura, e ficar sentado, perguntando a cada pessoa que cruza o umbral: “É bonito lá fora?”.


quinta-feira, 10 de outubro de 2013

3313) 19 medos (10.10.2013)





Antonio Lédio Martins, 39 anos, Salvador: medo de ter os tornozelos amarrados a um cavalo que em seguida será chicoteado, para que o arraste pelo solo pedregoso do sertão. 

Olaf Sigursson, 61 anos, Estocolmo: medo de que no encanamento de sua casa haja insetos mortos, incrustados no interior do cano, que liberam micróbios fatais. 

Amanda Stross, 40 anos, Perth: medo de que o chão afunde sob seu peso (ela pesa apenas 53kg), em qualquer circunstância: em casa, no escritório, na calçada, na praia.

Paulo Marcílio Guimarães, 23 anos, São Paulo: medo de perder o aviso de embarque no voo por estar com earphones escutando Metallica. 

Carmen Gomez de la Murta, 7 anos, Salamanca: medo de que os pais tenham colocado microcâmeras no banheiro para depois postar fotos dela na Web. 

Zhin Wan Yung, 56 anos, Beijing: medo de descer do trem para ir ao banheiro e o trem partir sem ele. 

Roberto Lísio Gonçalves, 23 anos, Fortaleza: medo de debruçar na amurada de uma cobertura e a amurada ceder ao peso de seu corpo.

Fernanda Câmara, 21 anos, São Paulo: medo de ficar bêbada e sair dando para todo mundo da festa. 

Raymond Ambreville, 39 anos, Bruxelas: medo de que um inseto entre pelo seu ouvido, rompa o tímpano e fique passeando dentro do seu crânio. 

Lucy Harrigan, 47 anos, Hong Kong: medo de beber uma lata de refrigerante e no final perceber algo sólido lá dentro. 

Alcino Guimarães Tortuga, 48 anos, Santarém: medo de estar mexendo nas gavetas da esposa e encontrar algo que irá estragar sua vida para sempre.

Bernardo Cardoso Almeida, 18 anos, Londrina: medo de perder a carteira, juntamente com o restante do dinheiro que costuma distribuir pelos outros bolsos. 

Raquel Ondina de Andrade, 30 anos, Aracaju: medo de ser eletrocutada no chuveiro quando toma banho sozinha. 

Almeyr Hongallon, 41 anos, Istambul: medo de ser atingido na calçada por um martelo que pode escapulir casualmente da mão do operário vinte andares acima. 

Merlânia Cordeiro Cardoso, 11 anos, Bayeux: medo que os povo comece a tomar craque e que o mundo se acabe numa invasão de zumbi.

Harrison Luna dos Sabros, 33 anos, Belém: medo de que alguém se suicide pulando de um prédio e caia em cima dele. 

Jerôme Farfan, 55 anos, Le Havre: medo de descobrir entre seus antepassados um carrasco, um traidor da pátria, um violador de donzelas. 

Louis Dickson, 51 anos, Seattle: medo de que tudo que escreve no computador esteja sendo copiado por um programa espião e isto leve sua firma à ruína. 

Joacildo Cardoso de Melo, 44 anos, Natal: medo de reconhecer num assaltante um ex-colega da escola pública, tentar usar isso em seu favor e ver que só fez piorar as coisas.









quarta-feira, 9 de outubro de 2013

3312) O Mágico e o Fantástico (9.10.2013)




(by Alexander Johansson)


Existem dois termos que a imprensa literária usa de modo intercambiável: “Realismo Mágico” e “Realismo Fantástico”. 

Eu acho que os dois exprimem coisas muito diferentes, acho que são usados de maneira irrefletida e confusa, e para aclarar essa confusão proponho a classificação abaixo.

O “Realismo Mágico” é aquele tipo de narrativa literária em que uma história aparentemente realista na sua descrição de ambientes e de personagens inclui também elementos impossíveis de acontecer, mas que obedecem a uma lógica emocional da própria narrativa. 

Exemplos clássicos são Cem anos de solidão (1967) de Garcia Márquez ou Midnight’s Children (1980) de Salman Rushdie. 

É um tipo de história característico de culturas em que um verniz europeu (cientificista, cartesiano) se sobrepõe a uma medula indígena ou milenar (dominada pelo pensamento mágico), o que dá origem a essas infiltrações. Predomina na América Latina mas também tem versões próprias nas literaturas orientais: Índia, China, Japão. O romance e o conto (ou seja, as prosas de ficção) são o seu território principal.

O “Realismo Fantástico” é algo próprio da prosa de não-ficção: o ensaio (ou pseudo-ensaio), a reportagem especulativa, o jornalismo investigativo voltado para assuntos misteriosos e controvertidos. 

Os melhores exemplos de realismo fantástico são os livros O Despertar dos Mágicos (1960) de Pauwels & Bergier (que usa esse termo em seu subtítulo) e Eram os Deuses Astronautas? (1968) de Erich von Daniken, que têm como precursor ilustre O Livro dos Danados (1919) de Charles Fort e a série Believe it or Not (1919) criada por Robert L. Ripley. 

Neste caso, não se trata de romances de ficção, e sim de explorações semi-jornalísticas de fatos inexplicados, curiosos, insólitos, absurdos. Para essas obras, o termo “mágico” não se aplica muito, porque ele não exprime a presença de uma visão mágica do mundo, e sim a mera existência de fenômenos extraordinários que o nosso “realismo” ainda não aceita: extraterrestres, criaturas fantásticas, conspirações, pseudo-ciência, etc.

A principal distinção entre os dois, contudo, é o fato de que o primeiro é composto de literatura de ficção, e o segundo de textos de não-ficção. 

O Realismo Mágico conta histórias assumidamente inventadas pelo seu autor, as quais, como toda obra literária, oferecem uma visão pessoal e profunda da condição humana. 

O Realismo Fantástico apresenta discussões factuais sobre assuntos controversos, geralmente propondo uma versão um tanto fantasiosa dos fatos, o que bastaria para classificá-lo como uma espécie de “jornalismo imaginativo” ou de “ensaística da imaginação”.








terça-feira, 8 de outubro de 2013

3311) O céu e o inferno (8.10.2013)



("Inferno", by merl1ncz)

Depois de uma vida inteira mergulhada no crime, no vício e nas drogas, Nicodemos foi fuzilado num beco durante uma emboscada policial, morreu e foi parar no inferno. Durante a vida inteira tinha zombado do bem e do mal, da virtude e do pecado. Achava que era igual a um bicho, uma criatura que após a morte simplesmente deixa de existir.

Assustou-se ao ver que o Inferno existia, sim. Um labirinto infinito, vastas cavernas vulcânicas, interligadas por passagens estreitas, onde pessoas em carne e osso eram mergulhadas em poças de lava, gêiseres de água fervente, ou braseiros perpétuos.  A carne dos corpos era destruída e recomposta sem parar. A dor era tão intensa que se tornava algo uniforme, onipresente. Quando diminuía, era possível aos condenados perceber que umas partes do corpo doíam mais e outras menos. Essa diferença trazia um requinte de sofrimento a mais: havia sempre um ponto onde a dor podia aumentar de novo.

No trajeto entre um castigo e outro os condenados eram chicoteados e arrastados ao longo de um chão coberto de navalhas.  O mais suportável dos tormentos era o Fundo do Poço, um buraco cheio de excrementos e de criaturas repugnantes, onde era preciso comer e beber, ao mesmo tempo em que coisas como enormes moluscos devoravam os condenados e depois os regurgitavam de volta.

Depois do que lhe pareceu uma eternidade de peregrinação de suplício em suplício, Nicodemos foi arrastado pelos tornozelos ao longo de alguns quilômetros numa rampa ascendente. No fim do trajeto os demônios o puseram de pé, enquanto destrancavam aos poucos um cofre de metal escuro, com inscrições em letras estranhas, do tamanho de uma cabine de elevador.

“E agora, vai ser o quê?” – balbuciou Nicodemos, por entre os lábios partidos e os dentes arrancados. “Para cada ano passado no Inferno, tens direito a um minuto no Paraíso,” informou um dos demônios, que era uma espécie de lagarto sem cauda com dois metros de altura. “Tenho direito ao Paraíso?”, espantou-se Nicodemos. O monstro explicou, enquanto manipulava engrenagens e alavancas: “Sem isto, qualquer alma morre. Este minuto a revigora, e a devolve como nova, para que voltemos a trabalhar com ela.  Essa trégua permite que tenhamos vocês a nossa disposição por toda a eternidade.”

Nicodemos entrou no cofre de ferro, a porta se fechou. Passou-se um minuto e ela voltou a se abrir para que ele saísse.  Não se sabe o que viu ou sentiu, porque o Inferno pode ser reconstituído por palavras humanas, mas o Paraíso não. Nicodemos retornou ao braseiro para mais um ano de tormentos, e estava estranhamente consolado, porque aquele minuto tinha valido a pena.


domingo, 6 de outubro de 2013

3310) A revista "Planeta" (6.10.2013)




Num debate recente no VII Fantasticon, em São Paulo, juntamente com Manuel da Costa Pinto, o escritor Ignácio de Loyola Brandão recordou os anos em que foi editor da revista Planeta, a grande divulgadora do realismo fantástico no mundo ocidental. Como lembro Loyola, a edição original francesa (Planète), surgiu em consequência do enorme sucesso do livro O Despertar dos Mágicos de Pauwels & Bergier (1960), livro que abordava temas obscuros como alquimia, holística, ocultismo, cabala, etc.  No ano seguinte os autores criaram a Planète, que em seu pico de vendagem chegou a mais de 100 mil exemplares.

Loyola comentou que, na época, era editor da revista Cláudia, onde publicava textos sobre moda, decoração, beleza, etc. Quando lhe ofereceram pilotar a edição brasileira da Planète, mesmo ganhando menos, não hesitou. Segundo ele, o número 1 da revista (que era mensal) teve tiragem de 20 mil; o 2, de 30 mil; o 3, de 40 mil.  Com poucos meses a revista atingiu e manteve um pico de vendagem de 120 mil cópias por mês, comparável à da edição francesa. Diz Loyola que houve um fato curioso: quando a Planeta pôs Chico Xavier na capa, no número seguinte a vendagem caiu para 70 mil, e foi preciso um longo tempo para voltar ao patamar anterior. Sinal de que? Segundo ele, um certo preconceito contra o espiritismo, na época. (E eu digo: se fosse hoje, com o recrudescimento da pregações religiosas, Chico Xavier faria aumentar a circulação da revista – que aliás ainda existe, só que noutro formato, e com uma orientação místico-religiosa totalmente diferente).

Loyola disse que ficou na Planeta de 1971 a 1979, e que considera este período crucial para que assuntos como OVNIs, sociedades secretas e mistérios arqueológicos começassem a ter um tratamento sério por parte da imprensa. Por outro lado, a Planeta publicava autores como Lovecraft, Borges, Sheckley e outros ligados ao fantástico e à FC. Umberto Eco, que fazia críticas à revista (“A mística de Planeta”, em Viagem na Irrealidade Cotidiana, 1984) , concede que a Planète foi “o primeiro caso de uma revista de luxo que se torna um acontecimento de massa”.  No Brasil, a revista serviu como um aglutinador de ufólogos, ocultistas, forteanos, estudiosos da alquimia e da Cabala... e de leitores de ficção científica. A presença de contos de FC no meio de artigos sobre Gurdjieff ou a Atlântida trazia o gênero de volta ao universo da pulp fiction, onde em termos de imaginação vale tudo. A Planeta formou minha geração, e ajudou a dar-lhe uma abertura européia bem-vinda num contexto editorial totalmente dependente dos EUA.