sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

3062) A gente não presta (21.12.2012)






Nelson Rodrigues tornou célebre o conceito de “complexo de viralata”, a forma peculiar de complexo de inferioridade que o brasileiro em geral costuma puxar do bolso à menor derrota, ao menor fracasso. Esse complexo está bem ilustrado na famosa piada sobre a criação do mundo. Deus põe no Brasil as melhores florestas, as melhores praias, o que há de melhor na Natureza, e quando alguém reclama de tanto favorecimento ele diz: “Ah, você precisa ver o povinho vagabundo que eu vou colocar aqui”. 

Eu proponho rebater essa piada com outra em que Deus está distribuindo as classes sociais no Brasil, e vai derramando aqui as elites mais egoístas e mesquinhas, os intelectuais mais colonizados, os banqueiros mais rapaces, a classe média mais consumista, os políticos mais venais, e assim por diante. Alguém protesta contra tanto castigo e Deus responde: “É porque você ainda não viu o Povo-mesmo que eu vou botar aqui, é um povo que vai passar por cima disso tudo e vai fazer um grande país”.  A piada é besta?  Não é nem piada?  Sei lá, pra mim é tão boa ou tão ruim quanto a outra, porque a mente da gente aceita o que já está estruturalmente preparada para aceitar.  Tem brasileiro que duvida do Brasil e pronto, acabou-se. Para ele, dizer que o Brasil não presta serve de camuflagem inconsciente para o fato de que quem não presta é ele.

Caetano Veloso disse uma vez em sua coluna no “Globo”: “Gostaria que, em vez de desvalorizar para se eximir, que é o que a maioria se acostumou a fazer, as pessoas se habituassem a valorizar o Brasil, porque isso dá mais responsabilidade”. Acho que ele detectou o nosso bug.  Desvalorizamos o Brasil para que o Brasil não cobre muito esforço de nós, coisa que o Brasil faria se estivesse destinado a grandes realizações. Somos como o jogador de futebol que diz: “Pra que correr? Vamos perder de qualquer jeito...”  E eis um belo exemplo de profecia que cumpre a si mesma.

Dizer que o Brasil não presta interessa a um grupo de deprimidos macambúzios (como desculpa para não fazerem nada, porque são mesmo incapazes de fazer seja lá o que for) e a um grupo de gente para quem o Brasil presta, e muito, do jeito que está – todos os que estão se enchendo de grana com o atual estado de coisas. “O Brasil é essa porcaria mesmo”, dizem, “todo mundo aqui é ladrão, todo mundo aqui é vagabundo, isso aqui não tem futuro”. Desmoralizar o país é uma simples tática para bloquear os que gostariam de moralizá-lo. Talvez o Brasil seja (na visão desses caras) um pitbull que vai estraçalhar todos os seus esquemas, as suas tenebrosas transações, no instante em que descobrir que não é um mero viralatas. Quem viver, verá.


quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

3061) Louise Brooks (20.12.2012)






Ela foi uma das musas do cinema mudo, um dos rostos mais lindos da imagem em preto e branco.  Tinha um carisma magneticamente óbvio, dos que desencorajam reflexões.  Era uma mulher fatal diferente do estereótipo do gênero, que privilegia mulheres como Marlene Dietrich (arrogante, amarga, mas parecendo dotada de uma animalidade inesgotável, e de uma vontade inflexível), Lauren Bacall (sonsa, dissimulada, irônica, eternamente se esquivando, cercando, envolvendo, a qualquer momento desferindo uma frase arrasadora ou um sorriso pecaminoso), Ava Gardner (intensa, passional, lasciva, em busca não importa de que coisa), Catherine Deneuve (aristocrática, difícil, voluntarista, lava-sob-a-neve) e por aí vai.



Louise Brooks era diferente dessas. O rostinho era perfeito, o sorriso cativante, mas por isto mesmo não lhe davam a autoridade das poderosas e dominadoras. Era fatal por ser indomesticável, mas estava sempre oferta, sempre acessível. As fotos mostram seu rostinho em forma de coração e o cabelo curto, negro, mas é preciso ver sua imagem em movimento. Vi há pouco tempo A Caixa de Pandora de G. W. Pabst, o filme de 1924 que a fez famosa. Ela faz uma personagem equívoca, ao mesmo tempo namoradinha e “teúda e manteúda” de alguns canastrões respeitáveis do começo do século.  Com seus flertes, e suas molecagens de menina, ela os enlouquece e os manipula, agarra, solta, seduz, enxota, pede perdão, faz carinho, pede dinheiro. (Aqui, Louise ao som de Stereolab: http://bit.ly/QynwBw).



Dizem que foi nela que se inspirou Adolfo Bioy Casares para sua Faustine em A Invenção de Morel. Era incrível a multiplicidade de expressões que seu rosto e seus imprevisíveis olhos adotavam a cada segundo. Tinha ombros e braços torneados, parecendo mais nus pela cabeleira curtíssima “à la garçonne”.  Podia passar num segundo da alacridade ao desespero, e deste a um sorriso puro de gratidão. Há mulheres que são fatais por sua força, mas outras o são por alguma fraqueza, uma fragilidade que estranhamente vem acompanhada de um excesso de alegria de viver e de energia. Parecem indestrutíveis mas também nos despertam a vontade de protegê-las, como se fossem bolha de sabão nas mãos alheias.


Roger Ebert diz (http://bit.ly/8y7zLA): “Ao passar das mãos de um homem para as de outro, a única coisa que se mantém é o seu querer. Ela quer festejar, ela quer fazer amor, ela quer beber, ela quer dizer aos homens o que quer e quer consegui-lo. Não outro motivo senão seu desejo; não é por dinheiro, nem por sexo, somente por egoísmo. Poderia ser algo desagradável, mas ela faz parecer divertido”.  Seu rosto era legível como uma tela de filme mudo.


quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

3060) Ser agnóstico (19.12.2012)






Um ateu tem certeza de que Deus não existe; um agnóstico acha que não há como saber, neste momento, se isso é verdade ou não. (Segundo Ariano Suassuna há uma terceira categoria, o herege, que diz: “Eu acredito em Deus, sim, mas antipatizo com ele”). O agnóstico em geral não antipatiza com a religião. Ele talvez tenha tido uma formação científica e tem o hábito de proceder por análises, argumentos e exames de provas. Se alguém quiser usar esse método para descobrir se Deus existe ou não, vai ter uma certa dificuldade. É possível provar verbalmente a existência de Deus, com argumentos teológicos; mas os mesmos argumentos serviriam para provar a existência de numerosas outras coisas. Se as premissas forem bem escolhidas, e forem aceitas pelo interlocutor, pode-se provar seja lá o que for.

Algumas pessoas religiosas dizem que a fé é espontânea, nasce de uma iluminação íntima, e não de uma discussão filosófica. Neste caso (dizem os agnósticos), estou aqui até hoje, esperando essa iluminação que no meu caso não aconteceu. Como dizia Darcy Ribeiro, “Deus me conhece, sabe onde eu moro, e se quisesse que eu acreditasse nele já tinha providenciado”.

Um agnóstico respeita as religiões pelo mesmo motivo por que respeita as literaturas. São construções do espírito humano, onde projetamos nossas visões do mundo, nossos comentários sobre a condição humana, sobre os nossos medos, nossas aspirações, nossas visões a respeito de tudo que transcende nossa vida: o infinito, a eternidade, etc. As religiões são ficções organizadas que tentam dar um sentido a tudo que vemos e descobrimos sobre o mundo. O Islã, o Cristianismo e o Judaísmo são o produto de três culturas diferentes. A visão que elas nos dão sobre Deus está inextricavelmente tecida com seus relatos históricos, os preceitos sociais e morais de cada uma, os seus mitos e seus ritos. O agnóstico não vê neles revelações divinas; vê documentos humanos, da maior importância, mesmo que não sejam factualmente verdadeiros – tal como ocorre com o teatro universal, o romance, a poesia épica. Pouco importa se Ulisses existiu ou não, isto não diminui o valor da Odisséia. O mesmo se dá com os livros sagrados.

O agnóstico geralmente é um individualista, um isolado, pelo menos em termos dessa crença. Ele gosta de pensar por si mesmo; daí que agnóstico seja quase sinônimo daquele termo do século passado, que quase não se usa mais: “livre pensador”. Um agnóstico não está obedecendo um manual, nem uma escritura sagrada, nem uma profecia. Há um bilhão de maneiras de ser agnóstico; basta (como dizia Dick Peter) que “veja as coisas com os seus próprios olhos”.




terça-feira, 18 de dezembro de 2012

3059) A Vida e os Tempos de Tambarú Zumbiterrâneo (18.12.2012)




(by plaxma)


Cap. 1 – De como Tambarú Zumbiterrâneo só teve sua infância revelada publicamente quanto contava mais de 40 anos, portanto somente então se soube que foi uma infância igual a qualquer outra.

Cap. 2 – De como a primeira coisa insólita que ocorreu em sua vida foi quando aos 18 anos aproximou-se de uma batida de carro, viu um rapaz morto, percebeu que estava vivo, e nunca mais foi o mesmo.

Cap. 3 – De como ele pareceu adquirir uma consciência multidimensional e uma intuição ortogonal em relação ao mundo biológico, e tentou expressar isto através da obra de uma banda punk chamada Agulhas Negras. 

Cap. 4 – De como ele devorou toda a obra de Lovecraft durante uma hepatite, fez-se tatuar à medida que ia lendo cada capítulo do I-Ching, descobriu um sistema confiável para ganhar no pôquer, escreveu um manual astrológico inventado que vendeu assustadoramente bem, pagou micos em público por causa de bebuns e bumbuns, passou triscando numa gringa saradona que quase topa financiá-lo.

Cap 5 – De como certo dia abriu-se a janela de uma casa quase em frente ao bar e surgiu uma moreninha de peitinhos retesos numa semiblusa que se apoiou nos braços, cruzou-os, descruzou-os, deixou-se ver, cruzou o olho com o dele, ferrou-o em brasa e sumiu.

Cap. 6 – De como ele foi imediatamente bater à porta, chamou-a na calçada e num piscar de olhos estavam com tudo acertado, coisa rara nos dias de hoje. 

Cap. 7 – De como ela revelou talento para lidar com dinheiro, quando ele jamais tivera nem uma coisa nem outra, e logo os dois decidiram criar juntos um websaite com blog, uma revista em quadrinhos, um CD de raga-noir indiano fake e um husky siberiano chamado The Thing. 

Cap. 8 – De como eles espremeram até a última gota a esponja empapaçada do mercado alternativo dessa área temática a que chamavam “as mil e uma noites marcianas”.

Cap. 9 – De como eles ralaram, sorriram, brigaram, beberam, se desuniram, tergiversaram, faltaram com a mais elementar sensatez humana, traíram e se traíram, se arrependeram e se torturaram, trincaram dentes, continuaram.

Cap. 10 – De como um deles soube um dia o que é estar entre dez mil pessoas e ver todas elas à espera da sua palavra, do seu gesto.

Cap. 11 – De como outro deles encontrou, num momento de sombra, de silêncio, de solidão, alguma coisa que buscara a vida inteira. 

Cap. 12 – De como um cristal de dez milhões de anos se partiu, de como por um certo tempo parece que o céu não lhes sorriu, o apartamento foi desapropriado para deixar passar uma avenida inteira, e eles se despediram, para sempre, como amigos, o que também não é muito fácil de acontecer.



domingo, 16 de dezembro de 2012

3058) Bandeira e Sinhô (16.12.2012)






No curto espaço de dois anos, foram lançados no Rio de Janeiro dois livros que, usando um artifício histórico parecido, tentaram analisar o modo como no começo do século 20 o samba deixou de ser visto com preconceito e hostilidade pelas elites cariocas e passou a ser aceito como uma manifestação legítima da cultura popular, e mesmo como uma espécie de símbolo do povo brasileiro.

Em 1995, saiu O mistério do samba de Hermano Vianna, em que ele faz essa análise da aproximação entre os dois Rios de Janeiros a partir de um encontro famoso entre Gilberto Freyre (representante da cultura letrada, acadêmica, elitista) e Pixinguinha (representante da música popular mas com conhecimento suficiente para se ombrear com um erudito). Em 1996, André Gardel publicou o trabalho com que ganhou o Prêmio Carioca de Monografia: O encontro entre Bandeira e Sinhô, em que trata das crônicas de Manuel Bandeira em que este se refere ao sambista Sinhô, e os numerosos pontos de convergência biográfica, boêmia e poética entre os dois.

O livro de Hermano Vianna é mais conhecido, mas o de André Gardel faz também um retrato fascinante do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século 20. Naquele tempo, o samba horrorizava tanto quanto o baile funk horroriza hoje. Misturar-se com ele era sinal de grave contaminação plebéia. Bandeira se misturava; não sozinho, mas acompanhado de amigos como Jaime Ovalle, Villa-Lobos, Catulo da Paixão Cearense, Di Cavalcanti, todos eles mergulhados na boemia insone das madrugadas, das rodas de samba, dos cafés, dos bordéis, dos bares da Lapa.

Gardel faz uma aproximação cuidadosa e veraz da poética de Bandeira, maculada propositalmente pela “fala errada do povo”, pela musicalidade das ruas que entra pelas janelas abertas à noite; e do modo como Sinhô, que espertamento tornou-se o primeiro a gravar um samba, sabia estar presente na cidade inteira ao mesmo tempo, cantando, compondo, bebendo, conversando, divulgando seus trabalhos, tornando-se conhecido, angariando encomendas de sambas ou de marchinhas de carnaval.

Gardel assim descreve as figuras encarnadas pelos dois: “a erudição modernista com um pé na tradição poética do Ocidente e o outro nas vanguardas européias, e a cultura de massa popular em flerte com a indústria cultural, com um pé no folclore e o outro na contemporaneidade rítmico-melódica da música moderna urbana das Américas”.  Encontros como os de Gilberto Freyre com Pixinguinha e de Bandeira com Sinhô prefiguraram o que seria o século 20 – a lenta aproximação entre essas duas culturas, entre essas duas bandas de uma “cidade partida”, e entre os dois Brasis que esses artistas cautelosamente representam.


sábado, 15 de dezembro de 2012

3057) O Ladrão (15.12.2012)





(Ladrão de Casaca, Alfred Hitchcock)


Há algumas pequenas coisas de que um Ladrão não pode prescindir. Uma delas é uma corda que não se quebre nunca.  Claro que uma corda assim só existe em contos de fadas ou em folhetos de cordel; mas ele precisa ter uma corda fina, de seda talvez, que enrolada ocupe pouco espaço e esticada aguente muito peso. Nunca se sabe de que janela gradeada será preciso descer, pendido; nunca se sabe que dama da corte terá que ser com ela sujigada, conforme o ritual; nem tantas outras façanhas e peripécias possíveis de brotar neste mundo de pesos e de forças.

Outra coisa que um Ladrão de verdade precisa ter consigo é uma bússola.  Não literalmente uma bússola das que se compram em antiquários ou que são exibidas em cosplays steampunks. É a bússola mental, aquela infalível sensação de posicionamento em relação a quatro pontos relativamente fáceis de situar. Muitas vezes, ao fugir no labirinto dos becos, é essencial fazer sempre a melhor opção possível, saber que aquela é de fato a terceira entrada após a quarta esquina à direita, e não morrer numa das muitas armadilhas ali montadas.  Saber em que direção fugir se a coisa apertar, saber o melhor lugar de atacar quando o momento favorecer.

Um talismã talvez seja a terceira coisa, porque um indivíduo assim, mergulhado em atividades delituosas e emperigadoras, deve necessitar de algo que lhe sirva de proteção.  Um objeto magnetizado magnetizando tudo em volta. Uma couraça intrespassável feita de bênçãos pra dentro e maldições pra fora.  

Já que chegamos a níveis mais abstratos, nunca é demais lembrar que um Ladrão precisa ter princípios éticos e morais superiores aos do resto da humanidade, sem, no entanto, menosprezá-la. A natureza especialíssima dos seus talentos e da sua profissão ensina-lhe como se manter num patamar de respeito. Um Ladrão não é um larápio. Um Ladrão é alguém cuja profissão consiste em subtrair algo (um objeto, uma informação, etc.) de um lugar e levá-lo para outro. Dependendo da natureza da coisa a ser furtada e das proteções que a cercam, diferentes habilidades serão exigidas ao Ladrão. E a cada nova técnica dominada, crescem os juramentos e os ritos, para que seus saberes não possam ser usados para ajudar maus propósitos.

E finalmente um Ladrão deve admirar antes de tudo a arte pela arte, a arte por si mesma e só por si, a história bem contada, o golpe bem aplicado, a ilusão bem explorada, o alarme foi dado, e foi ouvido, pôs-se lá o castelo em pé de guerra, e quando tudo passou, cadê o cofre? O cofre sumiu. A informação foi acessada, se multiplicou, se viralizou. Nada é segredo diante de um Ladrão, nada é sagrado ou imunizado contra a sua mão.



sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

3056) "Holy Motors" (14.12.2012)





Foi o filme mais desconcertante e provavelmente o melhor que vi este ano; não sei se muitos leitores terão chance de vê-lo, porque está em cartaz numa das salinhas menores do Estação Botafogo. Dirigido pelo francês Leos Carax, Holy Motors é uma sucessão de cenas bizarras amarradas por uma estranha lógica, como acontece em filmes de Buñuel, David Lynch ou Emir Kusturica. Não é bem um filme fantástico – com poucas exceções, as coisas bizarras que mostra poderiam acontecer em nosso mundo, pois não violam as leis naturais. Mas qual a probabilidade de um sujeito entrar num café atirando, matar (aparentemente) um executivo de terno que está numa mesa com amigos, ser morto (aparentemente) pelos seguranças da vítima, e depois ir embora como se nada tivesse acontecido?  É Buñuel puro, e lembra aquela antiga frase de André Breton, de que o ato surrealista mais simples seria empunhar um revólver e sair pela rua alvejando pessoas a esmo.

Ao longo de um dia e uma noite, Oscar (Dennis Lavant) percorre Paris dentro de uma limusine branca cujo interior é um camarim com espelhos, luzes, figurinos, maquiagem, etc. Ali dentro ele troca de rosto, de cabelo, de roupa – e desce (depois de estudar um dossiê de informações) para “encontros” que em geral são cenas surrealistas, insólitas. A cada novo encontro, o espectador fica se perguntando qual o propósito daquilo tudo, até porque as outras pessoas envolvidas dão mostras de serem, também, atores interpretando papéis para aquela situação específica.

O filme de Carax é uma reconstrução onírica da vida de um ator de cinema ou de teatro, o tempo inteiro mudando de “persona” e adaptando-se a situações que não foram criadas por ele, mas nas quais ele deve se encaixar, dando seu suor e seu sangue. (Oscar “morre” pelo menos três vezes nesses encontros.) A permanente imprevisibilidade do filme é amarrada por um conceito nítido, embora bizarro (sabemos desde cedo que estão previstos, ao longo do dia, vários daqueles episódios), e evita que a história se dilua na gratuidade do “ah, qualquer coisa pode acontecer”. As coisas que acontecem a Oscar não são quaisquer coisas, não são escândalos “pour épater les bourgeois” nem violências para excitar os turbinados. São alegorias de momentos da vida, ou de estados de espírito, que só se revelam através do cinema ou do teatro. Momentos recriados com a vida e o sangue desse ator exausto e incansável, que percorre a cidade cumprindo rituais de amor, de assassinato, de absurdo, de travestismo, de celebração das pequenas coisas da vida, e lembrando o quanto a vida é inexplicável quando vemos apenas um dos seus fragmentos acontecendo.


quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

3055) "Caçada Humana" (13.12.2012)





Este filme de Arthur Penn, de 1966, nunca foi prestado atenção pela crítica. (Eis um exemplo de linguagem informal que os gramáticos abominam.) Teve a má sorte de vir entre uma obra-prima alegórica demais (Mickey One) e um sucesso arrasador (Bonnie e Clyde), de modo que todo mundo o esqueceu. Ele manipula algumas situações clássicas, sendo a mais visível delas O Xerife Indefeso – aquelas situações em que todo mundo numa cidade está cúmplice de uma barbaridade qualquer, e a única voz da razão, mesmo sendo voto vencido, é o xerife local  No presente caso, Marlon Brando, fazendo seu habitual personagem ético e durão, num casamento solidário, sólido, com a bela Angie Dickinson.

Um rapaz dessa cidadezinha texana fugiu da cadeia e parece estar voltando à cidade, acusado de assassinato. Os cidadãos respeitáveis locais (uns sujeitos bêbados e armados) decidem abatê-lo, para se divertir. Durante um dia e uma noite, a cidade ferve com essa perseguição e emboscada (porque a própria vítima vem ao encontro dos que querem pegá-lo). A esposa e o maior amigo dele tentam salvá-lo. O presidiário é Robert Redford, a esposa é Jane Fonda, o amigo é James Fox. O pai do rapaz, o milionário local, é o ator E. G. Marshall, fazendo aqui um texano com uma inquietante semelhança com George W. Bush. Há numerosos atores coadjuvantes que arrasam, como o casal do marido babaca Robert Duvall e a esposa periguete Janice Rule.

Arthur Penn é por algum motivo um diretor pouco lembrado dos anos 1960, e um dos melhores. Revi agora Caçada Humana, em DVD, numa versão de 2:13 horas, maior do que a que vi originalmente. Não tem o ritmo de metralhadora frenético dos filmes de hoje, mas tem uma narrativa bem amarrada pelo roteiro de Lillian Hellman, a namorada de Dashiell Hammett (eita, que as feministas vão espernear). A violência interiorana (hoje tão visível em David Lynch, nos Irmãos Coen) é descrita de forma exemplar. Os principais vilões são sujeitos cujo nome a gente não lembra mais, assim que o filme acaba.

Cidadezinhas em pé de guerra contra uma vítima indefesa (ou assistindo passivamente sua perseguição) aparecem em Fúria (Fritz Lang, 1936), Matar ou Morrer (Fred Zinnemann, 1952). O Xerife Indefeso teve uma excelente recriação em Assalto à 13a. Delegacia com Ethan Hawke (Jean-François Richet, 2005). Multidões são facilmente mobilizáveis para linchar criminosos, principalmente num sábado à noite, numa cidade onde nada interessante acontece.  Cabe às vezes aos xerifes a tarefa paradoxal de defender um criminoso contra a fúria dos cidadãos pacatos. É um ponto de partida interessante para discutir lei, justiça, crime e violência.



quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

3054) O homem dourado (12.12.2012)




(Philip K. Dick)


Jorge Luís Borges perguntou-se certa vez por que motivo somos capazes de lembrar um fato ocorrido 50 anos atrás e não somos capazes de prever outro que acontecerá daqui a dois minutos, e que, teoricamente, estaria muito mais próximo. 

Este é, como muitos outros paradoxos do argentino, uma crítica sutil à maneira incorreta de formular um problema.  

Borges indica que se insistirmos em enxergar o Tempo como uma espécie de Espaço (com direções tipo frente-trás, cima-baixo, direita-esquerda) estaremos sujeitos a uma infinidade de paradoxos, porque esses tipo de visualização não se aplica necessariamente ao Tempo. (H. G. Wells, em seu famoso capítulo inicial de A Máquina do Tempo, contribuiu muito para enxergarmos o tempo dessa forma.)

No conto “O homem dourado” (em Realidades Adaptadas, Ed. Aleph) Philip K. Dick fala do jovem Cris Johnson, um rapaz de 18 anos meio autista - não fala, não se comunica, não dá trabalho à família, vive apenas olhando tudo à sua volta, e de vez em quando desaparece (e reaparece dias depois) sem dar explicações. Ele é um mutante, e seu super-poder consiste em adivinhar o futuro. 

Cientistas preparam complicados testes em que uma porção de aparelhos disparam sobre ele, num recinto fechado, e ele se desvia de todos os tiros. Ele sabe onde o tiro vai ser disparado, e apenas se afasta.

Johnson vive mentalmente num presente mais amplo, que se expande para o futuro, e não para o passado. Ele parece (ao contrário da frase de Borges) não lembrar o que aconteceu no passado, e ter uma visão muito clara do que acontecerá nos próximos segundos ou minutos. 

Diz uma cientista: 

“Ele tem um presente mais amplo. Mas seu presente se encontra à frente, não atrás. Nosso presente está relacionado ao passado. Somente o passado é certo, para nós. Para ele, o futuro é certo. E provavelmente não se lembra do passado, não mais do que qualquer animal é capaz de lembrar o que aconteceu.”

Cris Johnson vê o Tempo como um conjunto de cenas muito próximas e nítidas que vão se desdobrando e se ramificando em outras, cada vez menos nítidas à medida que são mais distantes, mas as cenas mais próximas, do futuro mais imediato, brilham com clareza. As cenas se tornam mais claras quando se tornam mais prováveis, e depois de acontecer, desaparecem. 

“A única coisa que lhe era desconhecida era a que já deixara de existir. De modo vago e obscuro, perguntava-se de vez em quando para onde iam as coisas depois que ele passava por elas”. 

É um mutante, por certo, mas num certo sentido é a prefiguração das nossas futuras gerações, cada vez mais vulneráveis a um Presente que não cessa de aumentar e de exigir toda sua atenção.










terça-feira, 11 de dezembro de 2012

3053) Diário de Classe (11.12.2012)




(Isadora Faber)


Houve um bafafá danado, de julho pra cá, por causa da página “Diário de Classe”, inventada por Isadora Faber, uma menina  de 13 anos. Ela criou a página do Facebook para reclamar dos problemas e dos defeitos da escola municipal onde estuda, em Santa Catarina. Pra quê que ela fez isso?!  Choveram reclamações, críticas, ameaças. A avó da menina foi atingida por uma pedra; ela própria foi intimada a prestar depoimento em uma delegacia, porque uma professora a acusou de calúnia e difamação.

A verdade é que ninguém gosta de ver divulgados os seus malfeitos, sejam ações desonestas ou simples negligências. No caso da escola da menina, não acho que os problemas sejam muito diferentes do que se vê na maioria das escolas, públicas ou particulares: orelhões quebrados, fios elétricos desencapados, falta de professores... Cada escola tem problemas diferentes, que no fundo são um só: falta de dinheiro ou má aplicação (por incompetência, descaso ou desonestidade) do dinheiro disponível.  Quem quiser conferir, procure no Facebook a página “Diário de Classe”.

Como tanta coisa na Internet, o página se multiplicou (diria um redator das antigas) “como fogo num rastilho de pólvora”. “O Globo” de domingo diz que já existem mais de cem páginas diferentes, criadas por outros estudantes, nos mesmos moldes. Isto é bom? É ruim? Como sempre acontece quando se bota uma tecnologia na mão de uma multidão, pode servir pra tudo. Estudantes moleques podem querer “trollar” a própria escola postando fotos tiradas em outros lugares e dizendo que foi lá. Alunos relapsos podem agredir a imagem de professores exigentes, por vingança. Alunos podem se sacanear uns aos outros postando fotos ou informações comprometedoras.

Ou seja: os riscos são os mesmos de quando foram inventadas as inscrições cuneiformes ou os hieróglifos egípcios. Qualquer nova maneira de multiplicar uma informação pode ser usada para o bem e para o mal.  O lado bom é que a Internet e as redes sociais, que tantas vezes são acusadas de servirem apenas de vitrine para narcisismos e irrelevâncias, mostram que podem ser também um instrumento de vigilância, de cobrança, de denúncia, etc., principalmente numa área crucial como a do ensino.

A educação federal, estadual e municipal (além das escolas particulares!) vem sendo sucateada há décadas. Se a Internet e as redes podem ajudar a pressionar os governos e as escolas privadas para que atenuem a catástrofe, tanto melhor. Nenhuma tecnologia é melhor ou pior do que o uso que lhe é dado. Os adolescentes estão mostrando que conhecem bem o funcionamento das redes sociais, e que sabem utilizá-las de uma maneira inesperadamente adulta.