quinta-feira, 29 de novembro de 2012

3043) F de Foguete (29.11.2012)



(Elon Musk)


A espaçonave tem sido um símbolo da ficção científica desde o seu começo. O primeiro livro sobre a ida de um artefato mecânico à Lua foi Da Terra à Lua de Julio Verne (1865), mas não se tratava de um foguete, e sim de uma bala de canhão. Balões e veículos de formatos improváveis (e meios de propulsão mais improváveis ainda) foram numerosos no século 19, pela imaginação de H. G. Wells, Garrett P. Serviss e outros. A Encyclopedia of Science Fiction de John Clute menciona como duas das mais convincentes espaçonaves do início da pulp fiction as que aparecem em The Shot into Infinity”de Otto Willi Gail (1925) e The Voyage of the Asteroid de Laurence Manning (1932). Cito estas datas porque aqui no Brasil já tínhamos em 1923 pelo menos duas obras: A Liga dos Planetas de Albino Coutinho, com seu “aeroplano”, além do cordel História do Homem que Subiu Em Aeroplano até a Lua atribuído a João Martins de Athayde, mas cujo verdadeiro autor talvez seja Leandro Gomes de Barros.  Espaçonaves cientificamente canhestras, mas em todo caso são provas de que a FC no Brasil surgiu par-a-par com a dos EUA e Europa.

Elon Musk é um jovem (nasceu em 1971) empresário dos EUA que está tentando reaquecer sozinho a corrida espacial. Segundo ele, a astronáutica dos foguetes está mais do que defasada, tanto no aspecto técnico quanto no econômico. Parece delírio? Bem, ele é o criador do PayPal, uma das coisas que deram mais certo até hoje no mundo da web. Diz Musk (http://bit.ly/Rc9t45) que a tecnologia aeroespacial não experimentou melhorias materiais desde os anos 1960, e na verdade pode até ter regredido. Para ele, “as empresas aeroespaciais têm uma incrível aversão ao risco”, e seu excesso de cuidado chega até o ponto em que, num engraçado paradoxo, “um componente que nunca foi ao espaço não pode ir ao espaço”.

Além disso, diz ele, a febre de terceirização faz essas empresas delegarem tarefas a subcontratantes que por sua vez chamam outros, a um ponto em que “é preciso cruzar quatro ou cinco camadas de poder até chegar a alguém que esteja de fato fazendo alguma coisa”. Por isso, diz ele, o voo espacial é tão caro. Isso, e os custos de produção dos foguetes (que ele afirma ser capaz de reduzir a 10% dos custos atuais). “Imagine”, diz ele, “se cada avião durasse apenas uma viagem. Não haveria transporte aéreo”.  O projeto de Musk é enviar um foguete tripulado a Marte em 10 ou 20 anos, a um custo muitíssimo inferior ao que vem sendo praticado pela NASA. A antiga inequação “Estado paquidérmico x Empresariado ágil” parece estar emergindo de novo, após meio século de corrida espacial financiada pelos governos.



quarta-feira, 28 de novembro de 2012

3042) Droga e liberdade (28.11.2012)






No filme The Corporation, a certa altura os realizadores questionam o uso maciço de propaganda dirigido às crianças nos EUA para que comprem (ou peçam aos pais) brinquedos, doces, etc.  Os entrevistadores perguntam se não é eticamente errado manipular com publicidade as mentes despreparadas dos pirralhos, fabricando desejos, num momento em que elas não têm uma visão crítica sobre o que estão assistindo. Uma executiva responde, rindo: “But it’s just a game!”. É só um jogo! Para a mentalidade dos executivos, é um jogo de números entre as empresas, como o Banco Imobiliário. Eles precisam melhorar a relação dos números da própria empresa (vendas, lucro, etc.), e a relação entre os números da empresa e os dos concorrentes.

Todos nós somos assim, não é mesmo? Todos somos politicamente corretos, religiosos, bons cidadãos, mas no momento em que alguém bota um putufú de dinheiro em cima da mesa e diz: “Será seu, se você fizer tal e tal coisa”, argumentos brotam dos lugares mais inesperados da nossa mente, convencendo-nos de que não estamos fazendo aquilo pelo dinheiro, mas por uma lista de motivos nobres que daria duas voltas-à-esquina. Se uma fábrica de pipoca me oferecesse um salário mensal de 100 mil reais para dirigir seu setor de publicidade, forçando todas as crianças da Paraíba a comerem pipoca desenfreadamente, eu pensaria: “Ora... Pipoca é milho!  É cultura indígena! O milho faz parte de nossa dieta desde tempos imemoriais. Contém amido!  Melhor vê-los comendo pipoca do que mascando chicletes”. E assim por diante.

Não é impossível que alguns fabricantes e vendedores de crack, metanfetamina, heroína, etc., sejam cidadãos corretos em sua vida doméstica: bons pais, bons maridos... Podem ser honestos, incapazes de desviar para si um só centavo que não seja seu.  E se lhes perguntarem pela destruição causada pela droga que vendem, eles responderão, como o químico nerd de Breaking Bad: “Compra droga quem quer, usa quem gosta. São adultos, e são livres para escolher”.  Ora, ninguém é livre para escolher. Nossas escolhas aparentemente livres são sempre influenciadas por alguém de fora. Nossa liberdade de escolha se dá sempre num corredor de pressões e proibições. O fantasma da liberdade (como dizia Buñuel) nos faz imaginar que somos sempre donos das nossas opções, mas agimos dentro de limitações estabelecidas por quem nos explora. Uma criança é livre para escalar um parapeito e pular de um vigésimo andar. Mas essa “livre” escolha a precipita numa situação em que fica impedida de escolher, para sempre. A droga é uma livre escolha que em alguns casos conduz ao cancelamento de todas as liberdades.



terça-feira, 27 de novembro de 2012

3041) "Laranja Mecânica" (27.11.2012)




Está saindo pela Editora Aleph (SP) uma edição comemorativa dos 50 anos de “Laranja Mecânica” de Anthony Burgess. É um clássico da ficção científica psicossocial.  O romance pressupõe três coisas: 1) a proliferação de gangs criminosas de jovens urbanos, num grau que a Londres de 1962 mal seria capaz de imaginar); 2) a utilização, pelo Estado, de técnicas de lavagem cerebral, ou condicionamento por aversão; 3) a contaminação da gíria dos jovens londrinos com termos vindos da língua russa.  É uma FC voltada para a sociologia e a psicologia. Não precisa de aliens, espaçonaves, pistolas de raios.

Burgess escreveu o livro numa Inglaterra cujas principais tribos de delinquentes juvenis eram os mods, os rockers e os teddy-boys. Eram a “juventude transviada” de uma época em que o rock começava a fazer soar seus primeiros acordes e as drogas eram consumidas em pequenos focos isolados. Ele tentou revestir sua extrapolação futurista de traços não-realistas, para ressaltar seu lado alegórico: roupas, hábitos, linguagem.  Queria que a violência do livro fosse “mais simbólica do que realista”. Não previu que seu livro e o filme resultante, de Stanley Kubrick, se transformariam em influência e (em alguns aspectos) em modelo.

A tradução de Fábio Fernandes enfrenta com criatividade o desafio de ter que inventar e adaptar palavras o tempo todo. O mais interessante desta edição comemorativa é a inserção de textos e entrevistas de Burgess, em que ele conta uma viagem sua a Leningrado, explica a origem do título, e faz uma avaliação de suas intenções ao escrever o livro. Ele quis fazer uma discussão sobre o livre-arbítrio – um criminoso tem tanto direito a fazer escolhas quanto nós?  “O homem ou a mulher que nunca fez o mal não pode saber o que é o bem”, diz Burgess. “Não sei a medida de livre-arbítrio que o homem possui de verdade, mas sei que o pouco que parece ter é precioso demais para ser usurpado, por melhores que sejam as intenções do usurpador”.

Burgess afirma que o editor norte-americano de “Laranja Mecânica” decidiu cortar o 21º. capítulo da edição inglesa. Achava esse capítulo (que mostra um Alex mais amaciado, menos radical, preparando-se para entrar na vida adulta) “britânico demais, ameno demais”.  (Este capítulo está incluído na edição brasileira.) Segundo Burgess, foi essa edição incompleta que Kubrick adaptou para o cinema. Por que Burgess não protestou, não interferiu, não os processou? Talvez porque tenha visto nesse corte um exercício do livre-arbítrio alheio. A possibilidade de dois finais diferentes para a história meio que simboliza a nossa liberdade (e paradoxalmente a nossa obrigação) de escolher.

domingo, 25 de novembro de 2012

3040) Os robôs zumbis (25.11.2012)


(Oscar N)

Os ferros-velhos de robôs são tão melancólicos quanto os cemitérios de automóveis. Elegias fúnebres celebrando à luz do sol a oxidação e o esboroamento dos seres de metal. O marrom da ferrugem roendo como um câncer as placas luzidias, os circuitos labirínticos. Himalaias do desperdício industrial, o estado-da-arte de ontem sendo hoje arrastado e solto no lixão dos descartáveis. Aqui e acolá um sacoleiro de chips faz sua coleta esperançosa, mas os tecno-monturos erguem colinas a perder de vista, pois a cornucópia eletrônica não para de vomitar silos e mais silos de placas-mães.

Nos lixões de robôs já filmei com celular a imensa vala comum onde sub-empregados esqueléticos seguravam os autômatos pelos braços e pernas, balançavam, atiravam lá de cima, fazendo-os cair no fundo e ir escorregando por cima dos corpos desconjuntados dos que os precederam. Andróides, ciborgues, robôs, servomecanismos; contrafações humanóides estruturadas em circuitos eletrônicos, esqueletos hidráulicos, microengrenagens, massa muscular sintética, sistemas nervosos em fibra ótica mais fina que um cabelo de bebê. Conseguimos reproduzi-los mais depressa do que nossa própria reprodução biológica/coital. Bilhões de espantalhos articulados, programáveis, obedientes ao controle remoto e à administração wireless dos governos. E que quando quebram são jogados fora. Pra que consertar? Quando um deles cai, dez outros se erguem de uma linha de montagem em Xangai, em Mumbai, em Dubai, em lugares onde nem chegou o Google Earth.
 
Aquilo que tomba hoje vem a se erguer amanhã. E de repente as ruas estão tomadas pelo clang-clang dos retirantes cibernéticos, cambaleando sob o sol, vagando sem destino, sem tarefa, sem missão. Quem os reergueu da tumba aberta? Quem trouxe de volta esses lázaros de titânio e categute? Talvez um vírus; um restinho de vida num pseudo-cadáver se transmitiu por wi-fi em círculos concêntricos na vala comum e despertou a todos, ferindo um nervo ainda vivo, desencadeando sub-rotinas mentais, e pronto, aqui estão eles invadindo as praças, atravancando avenidas, executando gestos sem sentido que lhes foram impostos ao ferro-em-brasa de um algoritmo – aparafusar peças não-existentes, colher soja no asfalto vazio, orientar trânsito no espelho dágua da pracinha. Mortos vivos, Doppelgangers insetóides, que não têm fome de nossos cérebros nem nos desejam mal, mas que estão a cada dia inviabilizando nossas cidades. Pela sua mera quantidade e surdez. Pela automatização compulsiva que os arrasta, e que não nos deixa outro remédio senão nosso último esporte radical, despedaçá-los a tiros e esperar que as balas sejam mais numerosas.

sábado, 24 de novembro de 2012

3039) O samba e o baião (24.11.2012)



(Donga)


A industrialização musical cria modelos e processos. Tudo que não for feito de acordo com o processo e que não fique parecido com o modelo soa como coisa falsa, e muitas vezes é uma coisa mais verdadeira, “the real thing”. 

Crianças que tomam água de coco em caixinhas longa-vida tomam susto ao ver um coco de verdade ser aberto. 

Espectadores veem um grupo numa praça fazendo teatro de rua, e perguntam “onde está o teatro”. 

Algo parecido acontece na música. O disco criou um formato padrão de canção popular, imposto a ferro e fogo durante um século; e pensamos que só é canção se for assim.

Nos anos 1940, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira começaram a escrever baiões que eram gravados com grande sucesso. O sanfoneiro de Exu lembrou uma toada que ouvia desde a infância, um pedacinho melódico muito simples, com versinhos soltos e saudosos sobre uma ave que foge do sertão por causa da seca. Cantarolou esses farrapos de música para Humberto, e logo os dois deram uma formatada final na melodia, que o letrista cobriu com estrofes simétricas. 

“Asa Branca” é esse produto híbrido entre pedaços de cantiga anônima e elementos novos, eruditos. Um verso como “Quando o verde dos teus olhos se espalhar na plantação” não é verso da tradição oral, é verso feito de caneta por um leitor de José de Alencar.

Algo parecido ocorreu com “Pelo telefone”, o primeiro samba gravado em disco, em 1917, e assinado por Donga.  

Assinado é bem o termo, porque Donga fez um apanhado de refrões, chamadas e batuques que eram cantados nas festas da casa de Tia Ciata, na “Pequena África” do Rio de Janeiro. 

Em seu livro Feitiço Decente Carlos Sandroni analisa em detalhe essa colcha de retalhos de toadas, e o modo como ela foi alinhavada às pressas para se enquadrar nos limites de tempo de uma gravação fonográfica. “Pelo telefone” gerou numerosas polêmicas, não só de autoria, mas também quanto ao fato de ser ou não o primeiro samba gravado. (Esta discussão está no saite Cifrantiga: http://bit.ly/10dgwwO).

A criação musical popular é solta, mutante, indisciplinada. Na cultura oral, todo mundo mexe nas músicas, tira e põe versos, muda o que não gosta ou o que não lembra.  

Já a indústria cultural precisa de critérios nítidos: tamanho fixo e formato fixo para as obras, autoria inequívoca, registro, e depois do registro ninguém mexe mais. Voz no vinil, cifra na partitura, letra no livro: a indústria precisa disso para uniformizar seus produtos. 

Cultura oral e indústria sempre trabalharam com conceitos opostos. É curioso que agora a Cultura Digital começa a arrastar esses conceitos para longe da indústria e para perto da cultura oral antiga.







sexta-feira, 23 de novembro de 2012

3038) O Diário de Dilma (23.11.2012)



(ilustração: Caco Galhardo)


A revista Piauí tem uma página intitulada “O Diário de Dilma”, um pseudo-diário atribuído à presidenta Dilma Roussef. A gente tem o direito de achar que está numa democracia quando alguém ridiculariza o mandachuva do país e não é preso. O “Diário de Dilma” não ridiculariza a presidenta, até pelo irrealismo da proposta, mas faz uma engraçada justaposição entre o pessoa real e a personagem literária, uma perua sempre preocupada com o penteado, o vestido, a decoração; que reduz às mais terrificantes banalidades alguns episódios sérios do momento; que suspira de langor por um embaixador bonitão, ou por um ministro cujo charme a conduz a devaneios. A revista atribui o “Diário” ao jornalista Renato Terra, mas, como também o atribui, em primeiro lugar, à própria presidenta, uma coisa relativiza a outra, e talvez o texto não seja produto de nenhum dos dois.  Talvez o seu redator seja alguém insuspeito e improvável.

O “Diário” de outubro (na Piauí de novembro) vem sob o título “Malandro é o curupira, que só faz gol de calcanhar”.  É a reta final da campanha eleitoral, e “Dilma” comenta: “Tô cheia de usar vermelho por causa desses comícios! Encomendei uns blazers bacanas de verão, laranja, azul Klein, rosa-choque, mas o Lula insiste em me botar de vermelho.  Pareço um tomate”. No dia 4, após o primeiro debate entre Barack Obama e Mitt Romney, ela anota: “A Ideli não confessa, mas é louca pelo Romney. Cada vez que a tevê dá um close naquele queixo talhado a buril, ela dá uma tremelicada. É sutil mas eu percebo”.

Parece os diários das adolescentes que leem Thalita Rebouças. Em 5 de outubro ela se queixa: “Sabe onde me enfiaram agora? Na exposição de um tal de Caravaggio. Legal até, mas o povão está interessado nisso? Tive de fazer biquinho e cara de raciocínio, o que é péssimo para as comissuras. Vou mandar a conta do refil do botox para a União e não quero nem saber”.  No dia 17, ela fica matutando: “Tadinho do Zé Dirceu. Será que tem consulado do Equador aqui em São Paulo?”. Fica ansiosa para saber quem matou Max na novela Avenida Brasil, manda a Abin investigar, recebe a resposta e, na véspera de um comício na Bahia, diz que “dependendo do clima, incendeio a militância revelando o nome ali mesmo”.

O “Diário de Dilma” funciona um pouco como aquelas canções de Juca Chaves satirizando o governo Juscelino (eita, fui longe agora – talvez só eu e Dilma lembremos essa época!). É uma leitura galhofeira de fatos reais, e a verdade é que nada reafirma tanto a solidez de um regime quanto a magnanimidade com que tolera (quem sabe até financia) a atividade dos que o submetem à caricatura.


quinta-feira, 22 de novembro de 2012

3037) Dicas de escritores (22.11.2012)



Sou leitor desses decálogos e mandamentos de escritores sobre como escrever. Em geral são escritos no imperativo:  ”faça isso, não faça aquilo, procure fazer assim, jamais faça assado”.  Tudo isso deveria ser escrito na primeira pessoa: “eu faço isso, eu não faço aquilo, eu procuro fazer assim, eu jamais faço assado”.  Não importa se o autor é William Faulkner ou John Updike. Na grande maioria dos casos um bom autor só consegue ser ele mesmo. Ele sabe fazer, sabe como o consegue, e passa a informação adiante. Nada obriga essa descoberta dele a ser útil para mim, ou para Fulano. Mas é sempre lucrativo aprender como funcionam os processos criativos alheios.


Os grandes autores (profissionais, consagrados, com dezenas de títulos, milhões de livros vendidos, com prêmios e honrarias, poder, credibilidade) concentram todas as suas forças criativas na própria literatura, o que, em termos práticos, isso significa sua própria maneira idiossincrática de praticar a literatura.  Fazem isso a tal ponto que muitas vezes parece não haver espaço, neles, para admirar a literatura alheia, ou pelo menos a literatura alheia que é diferente da sua.

Decálogos sobre “como escrever” parecem decálogos de etiqueta sobre “como se comportar em público”.  É impossível universalizar tais instruções, porque o que funciona num local e num momento não funciona no outro. Mas cada conselho “faça isso, não faça aquilo” exprime verdades construídas na prática, e em grande parte dos casos eles nos ajudam a entender melhor nossos próprios defeitos, e construir nosso próprio método de trabalho.

Muitos autores acordam e escrevem durante duas horas, sem parar, antes do café da manhã. “É o melhor momento”, dizem; “a mente está a mil”. Agradeço sempre a informação, mas de nada me vale, como de nada valeria eu explicar a eles que estas linhas estão sendo redigidas às 04:19 da madrugada – e não estou pensando em ir dormir nem tão cedo. Há quem prefira escrever à mão num caderno, há quem prefira ditar, há quem escreva poesia com o polegar num tecladinho luminoso. Caneta Bic ou Mont Blanc, Parker 51 ou Futura? Máquina Olivetti ou máquina Remington (são tão diferentes quanto um PC e um Mac)? No calor ou no frio? Trancafiado a sós ou no alarido de um café?

O conselho é realmente útil quando vem de alguém com uma combinação de cacoetes, talentos ou inabilidades parecida com a nossa. Às vezes um conselho bobo (“não use a primeira pessoa, nunca”, “escreva no presente do indicativo, não no passado do verbo”, “prepare resumos do que vai fazer em seguida”) salva a carreira de um sujeito e de nada adianta para outro.



quarta-feira, 21 de novembro de 2012

3036) A Vida e os Tempos de Zeca Tattoo (21.11.2012)




(by Jim Burns)


Cap. 1 – De como José Ribamar Marinho foi criado num cortiço perto da Rua do Riachuelo, pai frentista, mãe doceira, irmãos eternamente gripados, cerveja no refrigerador, infiltração na cozinha, morcegos nas cumeeiras, dez rádios e dez TVs competindo em decibéis, odores orgânicos onipresentes, varal de roupas secando na sala, ladrilho solto no quarto onde ele guardava seus dinheirinhos até o dia em que a irmã pequena achou e rasgou sem saber o que era, e do portão para fora a Cidade se espalhando, campo de batalha, parque de diversões.

Cap. 2 – De como nas escolas públicas José Ribamar aprendeu a ler, escrever, fazer contas, colar na prova, dar dedadas, fumar no banheiro, quando brigar, quando correr, quando apelar para as autoridades. 

Cap. 3 – De como José Ribamar arrumou um bico numa oficina mecânica onde descobriu a importância de chegar na hora, a necessidade de ficar calado ao ouvir um esbregue, e a magia das máquinas e das mulheres só de calcinha.

Cap. 4 – De como José Ribamar num piscar de olhos tinha barba, pelo no peito, carteira assinada, uma coleção de HQs empilhada em cima do armário, e rachava com o pai o prejuízo da prole. 

Cap. 5 – De como José Ribamar, no consertar de motos alheias, deixou-se cooptar por metaleiros que agiam perto da Praça da Cruz Vermelha e desse dia em diante não tirou mais dos ouvidos o iPod que ganhou por um conserto de emergência em tempo recorde, e por onde recebia injeções maciças de trash metal, zombie metal, hellfire metal, meth metal e outras persuasões ritualísticas que tímpanos incréus seriam incapazes de distinguir umas das outras.

Cap. 6 – De como o mundo renasceu por inteiro aos olhos de José Ribamar quando dois amigos o levaram a um tatuador que lhe aplicou no bíceps, num demorado orgasmo sustentado a fumo, a imagem de um urso barbudo de punhal nos dentes pilotando um jet-pack flamejante em volta da Torre Eiffel.

Cap. 7 -  De como a partir desse dia Zeca Tattoo (pois este passou a ser o seu nome) transformou sua pele em seu diário, e gravou para sempre ali os fatos cruciais de sua vida e de suas circunstâncias, a briga de faca no bar de Berg, a primeira noite fazendo Baby Jean gemer, a colisão que explodiu três membros da tribo, a morte do pai, o título do Mengão, o apendicite que quase o leva, o primeiro filho, a eleição de Obama, o dia em que zerou Call of Duty, o incêndio do cortiço e as onze vidas que salvou, a noite em que tomou um ácido pra ver um eclipse da Lua e viu montanhas parindo, arranha-céus mastigando estrelas com as janelas, nuvens gotejando uma vodka pegajosa e açucarada, e em volta da Lua a boca de Baby Jean dizendo vem com tudo, vem.



terça-feira, 20 de novembro de 2012

3035) Prisão perpétua (20.11.2012)



(foto: Tim Gruber)


Ser condenado à prisão perpétua soa como um final feliz, ou pelo menos como um mal menor, um alívio, para um sujeito que, num país como os EUA, esteve perto de ser condenado à morte. Só que prisão perpétua não existe, visto que não existe vida perpétua. Os que recebem esta pena são condenados, na verdade, a um envelhecimento vagaroso, a perder de vista, dentro das paredes de uma prisão. Imagine um sujeito de 35 anos que cometeu um crime e foi condenado à prisão perpétua. Se tem a sorte de ir para uma prisão mediana, há uma boa possibilidade de que ele chegue aos 85 anos. O que acontece, então?

Falei em prisão mediana porque esse problema é mais presente nos EUA do que no Brasil.  Aqui, depois de 30 anos o cara é solto, mesmo que tenha sido condenado a 458 anos, como acontece às vezes pela soma das penas. Se no Brasil houvesse prisão perpétua, não duvido que a maioria seria jogada dentro de um porão, fechavam a porta do alçapão e botavam um arquivo morto em cima.  A próxima pessoa a ver aqueles detentos seriam os arqueólogos de 2300.

Há aqui (http://bit.ly/QRw575) uma matéria arrepiante de James Ridgeway sobre prisioneiros senis em cadeias norte-americanas. O próprio jornalista tem 75 anos e diz que isto facilitou seu acesso aos presos. A reportagem traz histórias de presos com Parkinson ou Alzheimer, sendo cuidados pelos companheiros de cela (banho, asseio, alimentação, etc.) porque ninguém lhes dá atenção. Outros presos idosos, ainda capazes de se locomover sozinhos, sofrem na hora do bandejão ou do banho de sol, porque são escorraçados pelos jovens e nunca conseguem o que precisam.

Em 1981, havia 8 mil prisioneiros com mais de 55 anos nas cadeias dos EUA. Em 2010 eram 125 mil, e em 2030 a projeção é de 400 mil. Isto se deve a uma combinação de sentenças mais pesadas e expectativa de vida (remédios, etc.) maior. Ridgeway argumenta que prisioneiros liberados após os 50 anos só voltam a ser presos em 2% dos casos. Um estudo acompanhou 469 presos por crimes violentos que foram libertados depois de ficarem velhos; nos 13 anos seguintes, apenas 18 voltaram à cadeia, e somente 1 por crime violento. Aliás, o custo de um prisioneiro idoso é de US$ 68 mil por ano, o dobro do que custa um preso jovem.

Estabelecer um limite máximo de encarceramento, como no Brasil, talvez seja simplesmente estar mudando o problema de lugar, mas se existe uma chance razoável de um sujeito, depois de 30 anos de cadeia, voltar a se integrar à sociedade civil, essa chance deve pesar nas escolhas.  Mas isto são problemas de país civilizado. Aqui no Brasil, a Lei joga os criminosos num porão e deixa que a Natureza se encarregue do resto.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

3034) Emmanuelle (18.11.2012)





Faleceu aos 60 anos, em outubro, a atriz Sylvia Kristel, a Emmanuelle dos filmes eróticos mais famosos da década de 1970. Estava envelhecida e cansada após uma luta de dez anos contra o câncer.  A imagem que fica é a da mulher esguia, elegante, frágil, sensualmente passiva, que nos filmes de Just Jaeckin se submetia a lições de erotismo ministradas por um homem mais velho, as quais incluíam ser levada a um antro de ópio e oferecida aos homens de lá.  Emmanuelle fez sucesso reproduzindo a pornografia tradicional numa narrativa não limitada às cenas de sexo, e com um revestimento sofisticado e cosmopolita, para tentar reduzir a vulgaridade e a brutalidade associadas ao gênero, principalmente pelas mulheres.  O conceito de pornografia soft tentava somar dois públicos, o de pessoas ansiosas para ver sexo explícito na tela do cinema e o de pessoas que só admitia ver esses filmes se embalados num celofane chic de paisagens, ambientes ricos, diálogos vagamente existenciais, etc.

O obituário do The Economist lembra que as cenas de sexo de Kristel eram quase sempre em “flou”, diluídas visualmente por cortinados, vapor dágua, etc., e que a mãe da atriz, quando finalmente conseguiu ver o filme que fez a fama da filha, perguntou: “Mas era só isso?”.  O mesmo texto lembra que o filme foi proibido em alguns países: Brasil, Espanha, Japão e o mundo árabe. As várias continuações que o filme teve (inclusive na TV) foram, pelo que me lembro, diluindo em banalidade a proposta inicial.

Um dos grandes problemas da narrativa erótica (romance, cinema, etc.) sempre foi o modo de abordar e conquistar o público feminino. A pornografia tradicional tem por lei ir direto aos finalmentes, ao intercurso sexual nu e cru, sem preliminares, sem preparativos, sem fricotes.  Nos cinemas pornô, se um casal no filme passar um minuto conversando alguém protesta logo: “Bora, rapaz! Quero ver serviço!”  A lógica do espectador é que pagou para ver aquilo que não vê nos outros filmes.  Pra ver gente conversando ele não precisa ir naquele cinema.

Já as mulheres são capazes de aceitar até cenas bastante “hardcore”, desde que haja preliminares, e que o sexo pelo menos pareça associado a um tipo mais amplo de envolvimento, e não se limite à mecânica brutal das genitálias. O sucesso de 50 Tons de Cinza, escrito aliás por uma mulher, é um passo à frente na consolidação de um dos gêneros de mais futuro no mercado: pornografia explícita feita para mulheres, revestida dos álibis necessários e partindo daí para explorar fetichismo, sadomasoquismo e tudo o mais. Emmanuelle paira sobre todas essas alcovas literárias e cinematográficas.