quinta-feira, 26 de julho de 2012

2933) "Rage in Rio: The Game" (26.7.2012)



"Na década de 2030, empresas gigantes da Informação criaram o projeto Game Forever, um novo conceito de games de imersão ou de gerenciamento, mesclado ao de ação e aventura, e de informações em tempo real. 

"Sob a influência da franquia GTA (Grand Theft Auto), a SuperWorld Games cresceu teve uma ascensão meteórica na década de 2020, graças aos títulos que lançou naquele estilo. 

"Operando na China, com equipes de milhões de desenhistas adolescentes trabalhando fanaticamente numa atividade que eles consideravam divertida a ponto de ser viciante, a SuperWorld lançou numerosos jogos de hit-and-run ambientados em metrópoles do mundo inteiro: Mumbai, Durban, Istambul, Kingston, Moscou, Rio de Janeiro...

"Durante a produção deste último foi fechada a parceria com o Google Earth, passo natural para a atualização constante dos cenários dos jogos, primeiro em ritmo anual, depois mensal.  

"O governo brasileiro queria incentivar o turismo, e entrou na jogada. O Censo 2030 foi realizado, no Rio de Janeiro, com um esquema high-tech em que os recenseadores não apenas colhiam os dados dos habitantes de cada residência como também filmavam com microcâmaras 3D o interior da casa e seus moradores, para produzir avatares idênticos.  

"Os resultados foram remetidos para as oficinas da SuperWorld espalhadas pela China, e o resultado em 2033 foi a reprodução virtual, 3D, de todo o Rio, por dentro e por fora, no que se tornou o videogame mais vendido de todos os tempo (61 milhões de unidades na primeira semana): Rage in Rio.

"Depoimento de um dos diretores brasileiros do game: 

“Foi uma grande emoção quando, após instalar o jogo e configurar meu carinha com a aparência de um primo meu, saí caminhando pelo aterro do Flamengo, tomei sorvete, comentei o resultado do Fla-Flu (real) da véspera, e recebi respostas condizentes... 

Li as manchetes dos jornais: eram as do dia. Fui até meu prédio, onde pedi ao porteiro (era Severino!) que anunciasse minha visita.  Um dos meus filhos me recebeu à porta. Sentei no sofá. Minha esposa (mais jovem do que hoje) trouxe-me um suco de laranja.  Daí a pouco eu (nessa época tinha barba) vim até a sala receber o visitante. 

Respondi perguntas (corretas, atualizadas) sobre minha família no Nordeste. Folheei livros, e vi em todos o texto correspondente. Era eu, era minha própria família vivendo sua vida eletrônica...  Sujeita à invasão de um jogador mal intencionado, tal como na vida daqui de fora.   

A esperança do governo, anunciada em cadeia nacional, é que facilitar a violência virtual possa diminuir a violência de carne e osso. Esperemos que dê certo. Enquanto isto... burilo avatares”.









quarta-feira, 25 de julho de 2012

2932) Massacre no cinema (25.7.2012)








Muita gente não tem a menor idéia de como um filme de longa-metragem é feito.  Não sabe, e não se interessa em saber.  Deve achar que é como filme de aniversário de criança: organiza-se a festa, chama-se o rapaz com a câmara, e no outro dia o filme está pronto pra passar.  Não é assim.  É um trabalho insano e cansativo, que envolve às vezes anos de preparação, meses e meses de execução, e no final deixa centenas de pessoas esgotadas de tanto esforço.  E custa (geralmente) milhões de dólares – sempre com a expectativa de render bem mais.

Quando a gente se queixa da violência dos filmes, da TV, dos videogames, está de certa forma se queixando não apenas da possível má influência mental que eles possam vir a ter sobre as pessoas, principalmente os mais jovens, mas também do paradoxo de que tanto dinheiro e tanto esforço se concentrem em produzir coisas assim, quando seria possível, talvez, ganhar dinheiro com filmes diferentes – afinal, comédias, filmes românticos, filmes de simples aventuras, tudo isso também costuma dar bons lucros, quando acerta com o “paladar” da galera.

A matança que aconteceu nos EUA na pré-estréia do novo “Batman” de Christopher Nolan não é uma consequência do filme, nem desse tipo de filme.  Os dois são sintomas de nossa fascinação permanente pela violência e pela destruição. Somos seres biológicos, de carne e osso, vulneráveis à violência, condenados à morte, e por isso pensamos nisso o tempo todo.  Somos o único animal que sabe que vai morrer e o único que (como diz o ditado) morre mil vezes de mentira antes de morrer de verdade. Batman, o herói desarmado que evita matar, é o Ego tentando reprimir os Coringas incontroláveis da crueldade, e sentindo sempre o horror de se saber semelhante a eles.

Cresci numa época em que a censura etária era mais rigorosa nos cinemas, e não havia a TV a cabo, como hoje, passando sexo pornô e esquartejamentos explícitos ao alcance de qualquer guri de 10 anos.  A galera de hoje sofre um verdadeiro massacre de violência, e não o faz a contragosto, faz (se bem recordo minha infância) por fascinação própria. Quando eu tinha dez anos eu queria ver isso tudo.  Não queria que acontecesse a ninguém, mas se acontecesse eu queria ver como foi. Não é de admirar que ao lado de 999 caras que querem somente “ver como foi” apareça 1 querendo fazer.  Somos animais de carne e osso com uma trágica consciência da dor, da maldade, da morte.  Um dia nos transformaremos em avatares eletrônicos dotados de consciência, mas enquanto isto não ocorre iremos sentir o que Augusto dos Anjos descreveu como “essa necessidade do horroroso / que é talvez propriedade do carbono”.

terça-feira, 24 de julho de 2012

2931) A antologia Granta (24.7.2012)




Fazer uma antologia que traga no título a expressão “Os Melhores...” é (diria o dr. Machado Penumbra) mergulhar no paradoxo e se expor ao vitupério.  Tudo que não é quantificável, como é o caso da qualidade literária, fica sujeito ao que a linguagem popular denomina de “gosto”, um nó-górdio que não se deslinda e só se pode cortar com a frase (talvez inventada por Seu Lunga) “gosto não se discute”.

A função de um antologista ou de um crítico os obriga a equilibrar o seu gosto com um conjunto diferente de expectativas.  Sua leitura, sem deixar de ser uma leitura pessoal, tem também uma visão coletiva, porque sua função naquele momento tem algo de normativo, de definidor de parâmetros.  Uma antologia que usa a expressão “Os melhores...” tende a transformar seus contos em sinalizadores. Os escolhidos de hoje são os imitados de amanhã.  Em casos assim, a preferência pessoal dá um passo atrás e cede a vez a uma preocupação mais ampla.  O crítico não está premiando unicamente o que lhe agrada, mas o que lhe parece mais necessário e mais enriquecedor para o conjunto da literatura, naquele momento específico.

A antologia Os Melhores Jovens Escritores Brasileiros, organizada pela Editora Alfaguara e revista Granta, definiu uma série de limites para participação (autores até 40 anos, com pelo menos um conto publicado, que enviassem um conto inédito).  Recebeu 247 originais, e os sete jurados (entre os quais há amigos meus) escolheram 20. Mesmo considerando que estes 20 fossem superiores aos 227 restantes, é perfeitamente justo imaginar que existem no Brasil outros 20 autores, ou outros 200, igualmente bons e que por alguma razão não se inscreveram.  (Não li a antologia, e não tenho motivos para supor que os contos não sejam bons.)

Quando organizei minha antologia Páginas de Sombra – Contos Fantásticos Brasileiros, um amigo me sugeriu que incluísse no título o termo “melhores”. Respondi que não podia considerar aqueles 16 contos os melhores de nossa literatura fantástica, até porque seria impossível ler e comparar os milhares de candidatos; e um leitor de bom senso iria considerar que ninguém incluiria numa antologia um conto que não merecesse ser lido. “Bobagem”, disse ele, “tanto faz. O público quer ter a ilusão de estar levando para casa o melhor produto, porque há cem anos as agências de publicidade lhe vendem a melhor cerveja, o melhor pneu, o melhor plano de saúde ou de telefonia. Ele precisa da ilusão de que está comprando ‘o melhor’, mesmo que isto lhe seja dito pelo próprio fabricante”.  Toda antologia que anuncia “Os Melhores” está com um pé na crítica literária e o outro na propaganda.

domingo, 22 de julho de 2012

2930) Obituário (22.7.2012)


Morrerá no ano que vem, num quarto-e-sala na rua Silveira Martins, esquecido, endividado, coberto pela poeira da indiferença, o ator carioca Mário de Sousa.  

Ninguém lembra o seu nome.  Mesmo no prediozinho de quatro andares, sem elevador, onde morou a vida inteira, nem todos os vizinhos sabiam da sua profissão.  Sabiam a da esposa, que aposentou-se como enfermeira e foi o fiel da balança, como se diz, nos momentos em que os cachês diminuíam ou rareavam.  

Mário Sousa não tinha talento; tinha um amor ao teatro capaz de superar qualquer limitação.  Seu currículo surpreendente a partir dos 20-e-poucos anos foi construído à base de amizade. Fez uns poucos papéis principais que não entusiasmaram ninguém, e depois deslizou para a trincheira, sempre repleta, dos coadjuvantes confiáveis.  Não percebeu que isso tinha acontecido; achou que tinha se imposto profissionalmente.

Aos 60 anos já tinha se despedido do teatro (numa remontagem de Testemunha de Acusação de Agatha Christie, no teatro da EMERJ) quando lhe chegou um convite. 

Cid Monteiro, autor e diretor que fora seu aluno, lhe oferecia uma pequena ponta num “vaudeville” inédito, Sarau no Castelo de Mondestan. Faria um velho mordomo, mas teria algumas falas.  Ele aceitou e agradeceu a delicadeza, depois de calcular quanto aquilo lhe renderia por semana e por mês.  

Seu papel consistia em ir ao palco no primeiro e no segundo atos, sempre ajudando alguém a se locomover, dizendo frases como “boa noite” e “com licença”. 

No terceiro ato, contudo, Cid colocara uma frase para ele.  O dono da mansão, o Marquês de Mondestan, lhe pergunta: “Victor, fez o que lhe mandei?”, e o mordomo responde: “Sim, senhor. Coloquei as gotas-para-dormir no cofre do seu escritório, e o envelope cor-de-rosa na mesa de cabeceira de madame”.

E o teatro vinha abaixo.  Todas as noites.  

Entrevistei mês passado Mário Sousa, que me mostrou cópias fotostáticas (ele as chamou assim!) do histórico de apresentações e turnês do grupo.  Durante quinze anos, o grupo Nós Cegos realizou 2.235 apresentações desse sucesso inaudito, e não houve (segundo Mário) nenhuma noite em que, naquela frase, o teatro não viesse abaixo, fosse pelo “timing”, fosse pelo “delay”, fosse pela expressão furiosa ou desconcertada do ator que fizesse o marquês...  

“Era meu  momento”, suspirou Mário, inalando no aparelho. “Escreva isso.  Todo mundo tem seu momento, não importa se são dez linhas ou cem páginas, é o seu momento. Ou acontece ou não acontece”.  

Mário de Sousa teve seu momento; morrerá no ano que vem, num quarto-e-sala na rua Silveira Martins, esquecido, endividado, coberto pela poeira da indiferença.






sexta-feira, 20 de julho de 2012

2929) Mostrar a morte (21.7.2012)



(Jean Simmons e Richard Burton, O Manto Sagrado)



Do ponto de vista da dramaturgia do cinema, não existe cena mais importante do que a morte do personagem principal, desde, é claro, que ela seja exigida pela história. Mostrar a morte de um personagem importante sempre foi um motivo para que o fragor da batalha amainassse e se transformasse num mero marulhar ao fundo, enquanto o moribundo tinha direito a um monólogo final, e a um comentário rude mas sincero dos companheiros, logo após a cabeça tombar-lhe para sempre.  A morte era o grande momento, não só do personagem como do ator/atriz.

Como mostrar de outra forma? Quando o casal de cristãos condenados por Calígula às feras se encaminha para os portais que os conduzirão à arena, aparecia na tela o "The End" que ninguém aceitou (eu, pelo menos, não). O filme era O Manto Sagrado de Henry Koster (1953), que vi quando teria menos de dez anos, e aquela foi uma maneira de interessante de mostrar a morte, porque não vendo meus heróis morrerem eu seria condenado de certa forma a ficar imaginando a morte deles pelo resto da vida.  E de certo modo o filme se interromper antes daquela cena nos lembrou que com a vida acontecerá o mesmo.  Vai se interromper simplesmente, sem se completar.

Não sei se é coincidência, mas o filme de Koster se intitula The Robe; em 1948 Hitchcock tinha feito Rope (“Festim Diabólico”), sobre um assassinato que era o contrário: acontecia na primeira cena do filme. O filme começa com dois rapazes enforcando um terceiro, escondendo-o num baú, e servindo em cima desse baú um jantar para um grupo de amigos: o filme tem a duração desse jantar.  Hitchcock aperfeiçoou esse recurso ao fazer em 1960 Psicose, que teve como uma das principais heresias (para a bolsa de valores estéticos da época) o fato de que a atriz principal, Janet Leigh, morria a cerca de um terço da duração total do filme. 

Outro filme que abre com uma morte é (pelo que me disseram) Irreversível, o filme francês sobre dois amigos que se vingam do estupro da namorada de um deles.  É sempre uma maneira forte de começar uma história.  Rachel de Queiroz tem um romance em cuja primeira frase uma peixeira é enterrada na barriga de um personagem.  Mas é um personagem secundário.  Sua morte não é tão tragicamente banalizada quanto a do protagonista de Onde os Fracos Não Têm Vez dos irmãos Coen, onde a câmara, depois de acompanhá-lo durante o filme inteiro, chega atrasada ao local do crime, ainda a tempo de ver a fuga dos assassinos; mas quando entra no quarto o herói do filme já está morto. Talvez seja mais cruel (para o personagem) do que a morte offstage dos cristãos no começo do Cinemascope.

2928) Política sertaneja (20.7.2012)




“É por isso que Cruz do Cavalcanti é um lugar que nunca irá pra frente.  Não tem como.  Não é porque seja um lugar ruim, ou um lugar de gente que não presta, ou então porque exista (como já foi sugerido em plena Câmara Municipal) que exista uma caveira de burro enterrada embaixo do piso de mármore do Salão Nobre da Prefeitura.  Nada disso.  

"O problema de Cruz (como chamamos nossa querida terrinha) é um problema de ordem matemática. Este artigo é o décimo-quinto que escrevo sobre este tema; como é o primeiro a ser publicado por outro órgão que não o meu blog “Cruz Credo”, tentarei ser o mais objetivo possível.

“Aqui em Cruz, as famílias se resumem a três principais, os Cantídios, os Magela e os Noratos. Há cento e cinquenta anos que no município ninguém solta uma bufa sem autorização de um dos três.  Na primeira vez que eu votei para prefeito, votei no candidato dos Magela, que tinha dado um emprego a meu primo.   Ele ganhou.  

"Quatro anos depois, candidatou-se de novo.  Mas aí os Cantídios e os Noratos apararam arestas entre si, e se mobilizaram por um candidato único, Jurandirzinho.  Ex-supervisor de minha irmã no Controle Ambiental.  Votei nele, e ele ganhou. 

“Vida que segue.  Mas Jurandirzinho (que na verdade era de fora, e entrara nos Noratos por vias conjugais) começou a incomodar muita gente.  Ficou muito espaçoso, muito minha-própria-turma.  Na eleição seguinte, os Cantídios e os Magela começaram a conversar, a conversar, acertaram os ponteiros, e lançaram um candidato, Professor Absalão.  

"Votei nele, claro, mesmo sendo ele um Cantídio de sangue e de tinta, por todos os laços imagináveis.  Tudo que eu sou devo a Professor Absalão.

“Inclusive o emprego que ele me conseguiu em seguida, na Secretaria de Relações Humanas, não é?  Mas o fato do poder municipal estar nas mãos dos Cantídios incomodou, mais do que a qualquer outro, aos Magela.  Era preciso um candidato de consenso, e desta vez  os Magela se aliaram aos Noratos para impedir que o professor se reelegesse.  

"Conseguiram isso com o artifício (bastante hábil, reconheço), de lançar o nome de Dona Zizinha Combé, viúva de um comerciante muito ligado aos Magela, morto num acidente. Até capelinhas já havia em seu nome.  A campanha foi no tom religioso e emotivo.  O que posso dizer?  Votei em D. Zizinha, e ela ganhou.

“Todo dia chego aqui às 11 (em vez de 8:00), brinco no Twitter, leio os jornais, e vou tomar cafezinho na esquina.  Não devo nada aos Magela, tá sabendo?  Eles não me botaram aqui. Não devo nada a ninguém.  E tem mais, político tem mais é que ter medo de mim, porque eu nunca votei num candidato pra ele perder."





quinta-feira, 19 de julho de 2012

2927) Clone de heavy-metal (19.7.2012)






A briga entre o digital e o analógico não avança sem alguns golpes baixos.  Ou algumas boas malandragens, de acordo com o ponto de vista.  Boa malandragem parece ser o ponto de vista de banda de heavy metal Def Leppard, cujo trabalho conheço pouco mas me lembro de ter visto no Rock in Rio de 1985.  O Leppard parece estar vivendo uma profunda crise conjugal com sua gravadora, a Universal Music. (O relacionamento entre gravadoras e artistas contém alguns padrões que lembram muito o relacionamento entre maridos e esposas.)  Os dois não têm chegado a um acordo sobre a remuneração mais justa sobre vendas e downloads de faixas do catálogo da banda.  A discussão chegou a um ponto em que deixou de haver discussão.

“Nosso contrato”, diz o líder Joe Elliott, “estabelece que eles não podem fazer nada com as músicas sem a nossa permissão, absolutamente nada.  Então nós mandamos uma carta dizendo: Não importa o que vocês sugerirem, vão ter um ‘não’ como resposta, então é melhor não sugerirem nada”.  O problema é que a Universal também detém direitos sobre os fonogramas gravados pela banda, em seus 30 anos de carreira.  Como sair do impasse?

Simples: a banda está regravando em estúdio seus grandes sucessos, reproduzindo a gravação original com a mesmíssima sonoridade, mas gerando com isso um novo fonograma que pertencerá somente a ela.  Um auto-plágio ou auto-falsificação? Diz Elliott que é um trabalho duro: “Tivemos que estudar essas canções nos mínimos detalhes, e fazer imitações perfeitas. Deve ter levado o mesmo tempo de gravação que as faixas originais, mas por causa das novas técnicas o processo final foi mais rápido. Mas, como recapturar aquelas sonoridades?  E onde eu vou achar aquela voz com 22 anos de idade?”.

Por causa da briga, o Def Leppard é uma das poucas super-bandas cujo catálogo ainda não é disponível para downloads; duas destas regravações estão iniciando este processo. A nova “Pour Some Sugar On Me” já vendeu 21 mil downloads nos EUA e “Rock of Ages” mais de 5 mil. Qualquer músico profissional sabe que reproduzir com perfeição uma faixa já gravada é geralmente muito mais difícil do que simplesmente regravá-la “de um jeito parecido”, sem se preocupar em obter semelhança total.  A auto-regravação parece uma “solução de português”, mas ela revela pelo menos o grau de irreversibilidade nas relações da banda com a gravadora.  Os músicos acham que esse trabalho insano, e aparentemente desnecessário, é melhor do que voltar a discutir a utilização dos fonogramas antigos.  Não é por nada não, mas bem que João Gilberto poderia fazer a mesma coisa, com muito mais facilidade.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

2926) Viagem à Terra Oca (18.7.2012)



Um bom exemplo de como a Humanidade acaba realizando, por vias transversas, seus sonhos mais profundos, é a história de Archibald DeVane, um industrial de família tradicional de Minneapolis, que, como muitos dos seus contemporâneos, acreditava na Teoria da Terra Oca. 

Filho de um casal de rígida moral puritana, DeVane acreditava com fervor naquela controvertida hipótese científica.

As fotos da época mostram um indivíduo alto, bem apessoado, de espessa barba negra, vestido com sobriedade e bom gosto. Nunca aparece sorrindo, e sempre encara a câmera com olhos intensos. O remo e a equitação eram suas atividades de lazer preferidas. Entre suas leituras, além das obras científicas relacionadas a seu interesse principal, apreciava as obras sobre mitologia.

DeVane trabalhava com disciplina monástica. Montou e desenvolveu uma indústria de enlatados. Todo seu esforço tinha como objetivo financiar uma expedição científica capaz de comprovar a veracidade da teoria da Terra Oca e tornar-se assim um benfeitor da humanidade. (DeVane viveu numa época, o século 19, em que tornar-se um benfeitor da humanidade era um objetivo mais inteligível do que “ficar famoso”.) 

Havia duas maneiras, nos anos 1890, de tentar comprovar essa Teoria.

A primeira era fazer uma expedição marítima ao Polo Norte, onde se acreditava existir um enorme abismo que sugava para dentro de si a água dos oceanos, transferindo-a para o interior da Terra, onde elas banhavam os continentes subterrâneos. (A teoria explica que essa água retorna à nossa superfície graças a milhões de fontes subterrâneas, ou a aberturas no fundo dos nossos oceanos.)

DeVane optou pela segunda solução: a escavação de um túnel que a certa altura romperia a crosta interna do planeta, permitindo ao grupo de aventureiros emergir nessa nova superfície que se situa pelo avesso da nossa. 

Depois de uma ampla pesquisa assessorada por geólogos de renome, foi escolhida uma região na Carolina do Norte, e tiveram início as escavações. Ali seria descoberto um Novo Mundo, onde existia (segundo versões conflitantes) o Eldorado, ou uma Utopia naturalista e espiritualizada, ou uma floresta sem fim com fauna e flora deslumbrantes, ou o refúgio final da Tribo Perdida de Israel.

Todo sonho é pouco para um sonhador capaz de financiar a si próprio. Quando as escavações já iam com cem metros de profundidade, DeVane viajou a Londres para fechar uma parceria com a Landmark & Co., empresa de engenharia e construções que lhe fora recomendada pelo embaixador norte-americano na Grã-Bretanha.

Em sua primeira reunião, conseguiu a adesão da presidente, Mrs. Willoughby, uma viúva riquíssima cujo objetivo na vida era dar um bom uso para o dinheiro deixado pelo falecido esposo, um plutocrata octogenário.

Logo nas primeiras reuniões, e nos primeiros jantares, os dois descobriram terem gostos em comum: a pintura de Bouguereau e de Alma-Tadema, as óperas de Puccini, a astronomia amadora.

Entusiasmada pelo entusiasmo de DeVane, ela propôs que os dois fossem a São Petersburgo contratar uma empresa russa de engenharia que trabalhara na construção do Canal de Suez.

Ali, os dois visitaram o Museu Armitage, os melhores restaurantes, e conviveram com a fina flor da aristocracia russa. Depois, em Paris, visitaram o Louvre, dialogaram com Lesseps; passaram um carnaval em Veneza; veranearam durante meses em Ibiza; dançaram valsa em Viena; e certa tarde, quando repousavam numa suíte em Casablanca, chegou um telegrama urgente. DeVane rasgou o invólucro e murmurou, enquanto lia: 

-- Canteiros parados? Milhões em prejuízo? Terra Oca? Mas, de que demônios esse imbecil desse advogado está falando?!...





terça-feira, 17 de julho de 2012

2925) Os reis e os tronos (17.7.2012)




Entre as numerosas críticas que tenho lido sobre Game of Thrones uma das mais ácidas e mais divertidas foi a de Laurie Penny no New Statesman (http://bit.ly/KqW2f6). 

Ela começa descrevendo a série como “um coquetel reluzente de estupros, sexo gratuito e ultra-violência”, depois opta por “uma saga cripto-medieval de monstros míticos, seios arfantes, intrigas palacianas e baldes de sangue”, e mais adiante vê sinais de uma “cultura de estupro racista misturando Disneylândia com Dragões”. 

Que o leitor não a leve a mal: ela gosta da série.  Mas, como todo crítico que se preza, ela sabe que não é porque a gente gosta de uma coisa que essa coisa é boa. 

Um crítico não é um sujeito que só gosta de coisas boas, é um sujeito capaz de ver com distanciamento as coisas que considera boas ou ruins.

Penny constata que a série retoma um mito persistente da nossa cultura: A Busca do Bom Rei, e seu subtema A Formação do Bom Rei.  Westeros é um continente meio medieval, com vários reinos submissos a um reino central, o do Trono de Ferro em King’s Landing. 

Todos esses reis têm doses variáveis de loucura, mania homicida, ambição descontrolada, ressentimento mútuo, etc.  Manter a lealdade de todos só é possível com subornos e ameaças.  

É um reino onde nobres idealistas como Ned Stark acabam demonstrando, à própria custa, a impossibilidade de se viver de acordo com os elevados preceitos da cavalaria. É preciso ser mais raposa que as raposas, mais serpente que as serpentes; é preciso mentir, trair, ameaçar, subornar, matar – com presteza e sem escrúpulos.

Num contexto assim, como encontrar o Bom Rei, o que consiga a síntese entre nobres ideais e prática eficiente, entre envergadura moral e habilidade política? 

Laurie Penny torce o nariz para o conceito de Bom Rei, herança de milênios de monarquia.  A qual (agora sou eu) foi substituída por séculos de repúblicas presidencialistas. Um presidente não é mais que um rei de paletó e com prazo de validade. É um símbolo, uma encarnação terrena de um poder divino (quem foi que disse que nosso Estado é laico?). 

Vivemos em busca do Governante Ideal, achando que é mais fácil encontrar um ser humano perfeito do que conceber uma forma de administração pública que não se baseie no carisma de um candidato e nas suas venetas depois de empossado. Daí o fato de que temos cada vez mais “atores” e menos administradores ocupando os cargos de Poder (com exceções, é claro.) 

Ainda vamos precisar de muita banda-larga até construir um sistema pelo qual o Povo governe a si mesmo, e então nossas eleições pseudo-democráticas nos parecerão tão anacrônicas quando as guerras feudais de Westeros.

domingo, 15 de julho de 2012

2924) O fogo de Prometeu (15.7.2012)

A Humanidade está se encaminhando para um destino pós-orgânico, como pregam os inúmeros centros Trans-humanistas espalhados pelo mundo. Abandonaremos o corpo biológico e faremos o upload de nossas memórias para ambientes eletrônico-virtuais, onde passaremos a existir em forma de pura energia, pura memória de bits-e-bytes. A FC explora essa idéia há décadas.  A Ciência se encaminha para lá.  Seremos os mesmos de hoje?  É claro que não, mas não sentiremos saudade. Afinal, não sentimos saudade de ser antropóides pulando de galho em galho. 

Esta é uma das funções das redes sociais, por exemplo: digitalizar nossa vidinha, nossas preferências, opiniões, venetas, linguagens emotivas. Hoje somos seres biológicos que postam no Twitter coisas como: “Aí, galera, estou comendo uma pizza de calabresa... Quem vai?!”.  Amanhã, seremos softwares postando a mesma coisa; o fato de inexistirem pizzas físicas será irrelevante, porque os outros softwares responderão: “U-hu! Tô tomando um vinho, e desejo bom apetite!”.  Para os nossos trinetos de silício, o mundo será apenas linguagem e eles não sentirão falta das nossos cinco sentidos. Serão uma ficção e viverão num mundo de ficção, sem referencial físico nenhum, mas como serão ficção não conhecerão nenhum outro mundo além do seu, e serão felizes – ou infelizes, dependendo de para onde suas ficções os levarem.

Nesse futuro, filmes como Prometheus de Ridley Scott, The Thing de John Carpenter e outros filmes de terror repugnante cumprirão um papel importantíssimo.  Eles são o pesadelo da carne. A lembrança da existência de criaturas feitas de uma matéria orgânica pulsante, quente, coberta de epiderme, mucosa e pelos.  Criaturas que não se comunicam, apenas atacam, devoram e digerem outras criaturas igualmente repugnantes. Os monstros de Ridley Scott  nos provocam engulhos de nojo diante daquela sua biologia moluscóide, surreal, cheia de ventosas, esfíncteres e baba pegajosa. 

No mundo de silício (onde seremos almas sem corpos, realizando por vias transversas a profecia de todas as religiões) seremos assaltados por pesadelos de imagens e palavras evocando essas texturas latejantes, úmidas, recheadas de vísceras.  Uma lembrança ancestral, reprimida, de um mundo centrado na alimentação, excreção e reprodução. Quando o fogo eletrônico incinerar nossos corpos, no futuro pós-orgânico, os pesadelos serão orgânicos, porque representarão o medo da regressão ao mundo onde se come e se é comido, onde se mata e se morre.  Os aliens, monstros híbridos de tigre e cthulhu, são a nossa herança para o futuro dos Sem Corpo.  Para que eles, também, não consigam dormir em paz.