sexta-feira, 20 de julho de 2012

2929) Mostrar a morte (21.7.2012)



(Jean Simmons e Richard Burton, O Manto Sagrado)



Do ponto de vista da dramaturgia do cinema, não existe cena mais importante do que a morte do personagem principal, desde, é claro, que ela seja exigida pela história. Mostrar a morte de um personagem importante sempre foi um motivo para que o fragor da batalha amainassse e se transformasse num mero marulhar ao fundo, enquanto o moribundo tinha direito a um monólogo final, e a um comentário rude mas sincero dos companheiros, logo após a cabeça tombar-lhe para sempre.  A morte era o grande momento, não só do personagem como do ator/atriz.

Como mostrar de outra forma? Quando o casal de cristãos condenados por Calígula às feras se encaminha para os portais que os conduzirão à arena, aparecia na tela o "The End" que ninguém aceitou (eu, pelo menos, não). O filme era O Manto Sagrado de Henry Koster (1953), que vi quando teria menos de dez anos, e aquela foi uma maneira de interessante de mostrar a morte, porque não vendo meus heróis morrerem eu seria condenado de certa forma a ficar imaginando a morte deles pelo resto da vida.  E de certo modo o filme se interromper antes daquela cena nos lembrou que com a vida acontecerá o mesmo.  Vai se interromper simplesmente, sem se completar.

Não sei se é coincidência, mas o filme de Koster se intitula The Robe; em 1948 Hitchcock tinha feito Rope (“Festim Diabólico”), sobre um assassinato que era o contrário: acontecia na primeira cena do filme. O filme começa com dois rapazes enforcando um terceiro, escondendo-o num baú, e servindo em cima desse baú um jantar para um grupo de amigos: o filme tem a duração desse jantar.  Hitchcock aperfeiçoou esse recurso ao fazer em 1960 Psicose, que teve como uma das principais heresias (para a bolsa de valores estéticos da época) o fato de que a atriz principal, Janet Leigh, morria a cerca de um terço da duração total do filme. 

Outro filme que abre com uma morte é (pelo que me disseram) Irreversível, o filme francês sobre dois amigos que se vingam do estupro da namorada de um deles.  É sempre uma maneira forte de começar uma história.  Rachel de Queiroz tem um romance em cuja primeira frase uma peixeira é enterrada na barriga de um personagem.  Mas é um personagem secundário.  Sua morte não é tão tragicamente banalizada quanto a do protagonista de Onde os Fracos Não Têm Vez dos irmãos Coen, onde a câmara, depois de acompanhá-lo durante o filme inteiro, chega atrasada ao local do crime, ainda a tempo de ver a fuga dos assassinos; mas quando entra no quarto o herói do filme já está morto. Talvez seja mais cruel (para o personagem) do que a morte offstage dos cristãos no começo do Cinemascope.

2928) Política sertaneja (20.7.2012)




“É por isso que Cruz do Cavalcanti é um lugar que nunca irá pra frente.  Não tem como.  Não é porque seja um lugar ruim, ou um lugar de gente que não presta, ou então porque exista (como já foi sugerido em plena Câmara Municipal) que exista uma caveira de burro enterrada embaixo do piso de mármore do Salão Nobre da Prefeitura.  Nada disso.  

"O problema de Cruz (como chamamos nossa querida terrinha) é um problema de ordem matemática. Este artigo é o décimo-quinto que escrevo sobre este tema; como é o primeiro a ser publicado por outro órgão que não o meu blog “Cruz Credo”, tentarei ser o mais objetivo possível.

“Aqui em Cruz, as famílias se resumem a três principais, os Cantídios, os Magela e os Noratos. Há cento e cinquenta anos que no município ninguém solta uma bufa sem autorização de um dos três.  Na primeira vez que eu votei para prefeito, votei no candidato dos Magela, que tinha dado um emprego a meu primo.   Ele ganhou.  

"Quatro anos depois, candidatou-se de novo.  Mas aí os Cantídios e os Noratos apararam arestas entre si, e se mobilizaram por um candidato único, Jurandirzinho.  Ex-supervisor de minha irmã no Controle Ambiental.  Votei nele, e ele ganhou. 

“Vida que segue.  Mas Jurandirzinho (que na verdade era de fora, e entrara nos Noratos por vias conjugais) começou a incomodar muita gente.  Ficou muito espaçoso, muito minha-própria-turma.  Na eleição seguinte, os Cantídios e os Magela começaram a conversar, a conversar, acertaram os ponteiros, e lançaram um candidato, Professor Absalão.  

"Votei nele, claro, mesmo sendo ele um Cantídio de sangue e de tinta, por todos os laços imagináveis.  Tudo que eu sou devo a Professor Absalão.

“Inclusive o emprego que ele me conseguiu em seguida, na Secretaria de Relações Humanas, não é?  Mas o fato do poder municipal estar nas mãos dos Cantídios incomodou, mais do que a qualquer outro, aos Magela.  Era preciso um candidato de consenso, e desta vez  os Magela se aliaram aos Noratos para impedir que o professor se reelegesse.  

"Conseguiram isso com o artifício (bastante hábil, reconheço), de lançar o nome de Dona Zizinha Combé, viúva de um comerciante muito ligado aos Magela, morto num acidente. Até capelinhas já havia em seu nome.  A campanha foi no tom religioso e emotivo.  O que posso dizer?  Votei em D. Zizinha, e ela ganhou.

“Todo dia chego aqui às 11 (em vez de 8:00), brinco no Twitter, leio os jornais, e vou tomar cafezinho na esquina.  Não devo nada aos Magela, tá sabendo?  Eles não me botaram aqui. Não devo nada a ninguém.  E tem mais, político tem mais é que ter medo de mim, porque eu nunca votei num candidato pra ele perder."





quinta-feira, 19 de julho de 2012

2927) Clone de heavy-metal (19.7.2012)






A briga entre o digital e o analógico não avança sem alguns golpes baixos.  Ou algumas boas malandragens, de acordo com o ponto de vista.  Boa malandragem parece ser o ponto de vista de banda de heavy metal Def Leppard, cujo trabalho conheço pouco mas me lembro de ter visto no Rock in Rio de 1985.  O Leppard parece estar vivendo uma profunda crise conjugal com sua gravadora, a Universal Music. (O relacionamento entre gravadoras e artistas contém alguns padrões que lembram muito o relacionamento entre maridos e esposas.)  Os dois não têm chegado a um acordo sobre a remuneração mais justa sobre vendas e downloads de faixas do catálogo da banda.  A discussão chegou a um ponto em que deixou de haver discussão.

“Nosso contrato”, diz o líder Joe Elliott, “estabelece que eles não podem fazer nada com as músicas sem a nossa permissão, absolutamente nada.  Então nós mandamos uma carta dizendo: Não importa o que vocês sugerirem, vão ter um ‘não’ como resposta, então é melhor não sugerirem nada”.  O problema é que a Universal também detém direitos sobre os fonogramas gravados pela banda, em seus 30 anos de carreira.  Como sair do impasse?

Simples: a banda está regravando em estúdio seus grandes sucessos, reproduzindo a gravação original com a mesmíssima sonoridade, mas gerando com isso um novo fonograma que pertencerá somente a ela.  Um auto-plágio ou auto-falsificação? Diz Elliott que é um trabalho duro: “Tivemos que estudar essas canções nos mínimos detalhes, e fazer imitações perfeitas. Deve ter levado o mesmo tempo de gravação que as faixas originais, mas por causa das novas técnicas o processo final foi mais rápido. Mas, como recapturar aquelas sonoridades?  E onde eu vou achar aquela voz com 22 anos de idade?”.

Por causa da briga, o Def Leppard é uma das poucas super-bandas cujo catálogo ainda não é disponível para downloads; duas destas regravações estão iniciando este processo. A nova “Pour Some Sugar On Me” já vendeu 21 mil downloads nos EUA e “Rock of Ages” mais de 5 mil. Qualquer músico profissional sabe que reproduzir com perfeição uma faixa já gravada é geralmente muito mais difícil do que simplesmente regravá-la “de um jeito parecido”, sem se preocupar em obter semelhança total.  A auto-regravação parece uma “solução de português”, mas ela revela pelo menos o grau de irreversibilidade nas relações da banda com a gravadora.  Os músicos acham que esse trabalho insano, e aparentemente desnecessário, é melhor do que voltar a discutir a utilização dos fonogramas antigos.  Não é por nada não, mas bem que João Gilberto poderia fazer a mesma coisa, com muito mais facilidade.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

2926) Viagem à Terra Oca (18.7.2012)



Um bom exemplo de como a Humanidade acaba realizando, por vias transversas, seus sonhos mais profundos, é a história de Archibald DeVane, um industrial de família tradicional de Minneapolis, que, como muitos dos seus contemporâneos, acreditava na Teoria da Terra Oca. 

Filho de um casal de rígida moral puritana, DeVane acreditava com fervor naquela controvertida hipótese científica.

As fotos da época mostram um indivíduo alto, bem apessoado, de espessa barba negra, vestido com sobriedade e bom gosto. Nunca aparece sorrindo, e sempre encara a câmera com olhos intensos. O remo e a equitação eram suas atividades de lazer preferidas. Entre suas leituras, além das obras científicas relacionadas a seu interesse principal, apreciava as obras sobre mitologia.

DeVane trabalhava com disciplina monástica. Montou e desenvolveu uma indústria de enlatados. Todo seu esforço tinha como objetivo financiar uma expedição científica capaz de comprovar a veracidade da teoria da Terra Oca e tornar-se assim um benfeitor da humanidade. (DeVane viveu numa época, o século 19, em que tornar-se um benfeitor da humanidade era um objetivo mais inteligível do que “ficar famoso”.) 

Havia duas maneiras, nos anos 1890, de tentar comprovar essa Teoria.

A primeira era fazer uma expedição marítima ao Polo Norte, onde se acreditava existir um enorme abismo que sugava para dentro de si a água dos oceanos, transferindo-a para o interior da Terra, onde elas banhavam os continentes subterrâneos. (A teoria explica que essa água retorna à nossa superfície graças a milhões de fontes subterrâneas, ou a aberturas no fundo dos nossos oceanos.)

DeVane optou pela segunda solução: a escavação de um túnel que a certa altura romperia a crosta interna do planeta, permitindo ao grupo de aventureiros emergir nessa nova superfície que se situa pelo avesso da nossa. 

Depois de uma ampla pesquisa assessorada por geólogos de renome, foi escolhida uma região na Carolina do Norte, e tiveram início as escavações. Ali seria descoberto um Novo Mundo, onde existia (segundo versões conflitantes) o Eldorado, ou uma Utopia naturalista e espiritualizada, ou uma floresta sem fim com fauna e flora deslumbrantes, ou o refúgio final da Tribo Perdida de Israel.

Todo sonho é pouco para um sonhador capaz de financiar a si próprio. Quando as escavações já iam com cem metros de profundidade, DeVane viajou a Londres para fechar uma parceria com a Landmark & Co., empresa de engenharia e construções que lhe fora recomendada pelo embaixador norte-americano na Grã-Bretanha.

Em sua primeira reunião, conseguiu a adesão da presidente, Mrs. Willoughby, uma viúva riquíssima cujo objetivo na vida era dar um bom uso para o dinheiro deixado pelo falecido esposo, um plutocrata octogenário.

Logo nas primeiras reuniões, e nos primeiros jantares, os dois descobriram terem gostos em comum: a pintura de Bouguereau e de Alma-Tadema, as óperas de Puccini, a astronomia amadora.

Entusiasmada pelo entusiasmo de DeVane, ela propôs que os dois fossem a São Petersburgo contratar uma empresa russa de engenharia que trabalhara na construção do Canal de Suez.

Ali, os dois visitaram o Museu Armitage, os melhores restaurantes, e conviveram com a fina flor da aristocracia russa. Depois, em Paris, visitaram o Louvre, dialogaram com Lesseps; passaram um carnaval em Veneza; veranearam durante meses em Ibiza; dançaram valsa em Viena; e certa tarde, quando repousavam numa suíte em Casablanca, chegou um telegrama urgente. DeVane rasgou o invólucro e murmurou, enquanto lia: 

-- Canteiros parados? Milhões em prejuízo? Terra Oca? Mas, de que demônios esse imbecil desse advogado está falando?!...





terça-feira, 17 de julho de 2012

2925) Os reis e os tronos (17.7.2012)




Entre as numerosas críticas que tenho lido sobre Game of Thrones uma das mais ácidas e mais divertidas foi a de Laurie Penny no New Statesman (http://bit.ly/KqW2f6). 

Ela começa descrevendo a série como “um coquetel reluzente de estupros, sexo gratuito e ultra-violência”, depois opta por “uma saga cripto-medieval de monstros míticos, seios arfantes, intrigas palacianas e baldes de sangue”, e mais adiante vê sinais de uma “cultura de estupro racista misturando Disneylândia com Dragões”. 

Que o leitor não a leve a mal: ela gosta da série.  Mas, como todo crítico que se preza, ela sabe que não é porque a gente gosta de uma coisa que essa coisa é boa. 

Um crítico não é um sujeito que só gosta de coisas boas, é um sujeito capaz de ver com distanciamento as coisas que considera boas ou ruins.

Penny constata que a série retoma um mito persistente da nossa cultura: A Busca do Bom Rei, e seu subtema A Formação do Bom Rei.  Westeros é um continente meio medieval, com vários reinos submissos a um reino central, o do Trono de Ferro em King’s Landing. 

Todos esses reis têm doses variáveis de loucura, mania homicida, ambição descontrolada, ressentimento mútuo, etc.  Manter a lealdade de todos só é possível com subornos e ameaças.  

É um reino onde nobres idealistas como Ned Stark acabam demonstrando, à própria custa, a impossibilidade de se viver de acordo com os elevados preceitos da cavalaria. É preciso ser mais raposa que as raposas, mais serpente que as serpentes; é preciso mentir, trair, ameaçar, subornar, matar – com presteza e sem escrúpulos.

Num contexto assim, como encontrar o Bom Rei, o que consiga a síntese entre nobres ideais e prática eficiente, entre envergadura moral e habilidade política? 

Laurie Penny torce o nariz para o conceito de Bom Rei, herança de milênios de monarquia.  A qual (agora sou eu) foi substituída por séculos de repúblicas presidencialistas. Um presidente não é mais que um rei de paletó e com prazo de validade. É um símbolo, uma encarnação terrena de um poder divino (quem foi que disse que nosso Estado é laico?). 

Vivemos em busca do Governante Ideal, achando que é mais fácil encontrar um ser humano perfeito do que conceber uma forma de administração pública que não se baseie no carisma de um candidato e nas suas venetas depois de empossado. Daí o fato de que temos cada vez mais “atores” e menos administradores ocupando os cargos de Poder (com exceções, é claro.) 

Ainda vamos precisar de muita banda-larga até construir um sistema pelo qual o Povo governe a si mesmo, e então nossas eleições pseudo-democráticas nos parecerão tão anacrônicas quando as guerras feudais de Westeros.

domingo, 15 de julho de 2012

2924) O fogo de Prometeu (15.7.2012)

A Humanidade está se encaminhando para um destino pós-orgânico, como pregam os inúmeros centros Trans-humanistas espalhados pelo mundo. Abandonaremos o corpo biológico e faremos o upload de nossas memórias para ambientes eletrônico-virtuais, onde passaremos a existir em forma de pura energia, pura memória de bits-e-bytes. A FC explora essa idéia há décadas.  A Ciência se encaminha para lá.  Seremos os mesmos de hoje?  É claro que não, mas não sentiremos saudade. Afinal, não sentimos saudade de ser antropóides pulando de galho em galho. 

Esta é uma das funções das redes sociais, por exemplo: digitalizar nossa vidinha, nossas preferências, opiniões, venetas, linguagens emotivas. Hoje somos seres biológicos que postam no Twitter coisas como: “Aí, galera, estou comendo uma pizza de calabresa... Quem vai?!”.  Amanhã, seremos softwares postando a mesma coisa; o fato de inexistirem pizzas físicas será irrelevante, porque os outros softwares responderão: “U-hu! Tô tomando um vinho, e desejo bom apetite!”.  Para os nossos trinetos de silício, o mundo será apenas linguagem e eles não sentirão falta das nossos cinco sentidos. Serão uma ficção e viverão num mundo de ficção, sem referencial físico nenhum, mas como serão ficção não conhecerão nenhum outro mundo além do seu, e serão felizes – ou infelizes, dependendo de para onde suas ficções os levarem.

Nesse futuro, filmes como Prometheus de Ridley Scott, The Thing de John Carpenter e outros filmes de terror repugnante cumprirão um papel importantíssimo.  Eles são o pesadelo da carne. A lembrança da existência de criaturas feitas de uma matéria orgânica pulsante, quente, coberta de epiderme, mucosa e pelos.  Criaturas que não se comunicam, apenas atacam, devoram e digerem outras criaturas igualmente repugnantes. Os monstros de Ridley Scott  nos provocam engulhos de nojo diante daquela sua biologia moluscóide, surreal, cheia de ventosas, esfíncteres e baba pegajosa. 

No mundo de silício (onde seremos almas sem corpos, realizando por vias transversas a profecia de todas as religiões) seremos assaltados por pesadelos de imagens e palavras evocando essas texturas latejantes, úmidas, recheadas de vísceras.  Uma lembrança ancestral, reprimida, de um mundo centrado na alimentação, excreção e reprodução. Quando o fogo eletrônico incinerar nossos corpos, no futuro pós-orgânico, os pesadelos serão orgânicos, porque representarão o medo da regressão ao mundo onde se come e se é comido, onde se mata e se morre.  Os aliens, monstros híbridos de tigre e cthulhu, são a nossa herança para o futuro dos Sem Corpo.  Para que eles, também, não consigam dormir em paz.

sábado, 14 de julho de 2012

2923) Woody Guthrie, 100 anos (14.7.2012)




O Brasil comemora o centenário de Luiz Gonzaga, e fico imaginando que tipo de comemorações estará havendo nos EUA pelo centenário do Luiz Gonzaga deles, o grande Woody Guthrie.  

Assim como Gonzaga, foi um cara que viajou seu país de ponta a ponta, cantando a vida das pessoas simples nos campos de trabalho, nos sítios, nas praças, nas estações de rádio, nos comícios, nas festas.  

Gonzaga inventou o baião sintetizando elementos rítmicos, melódicos, instrumentais, poéticos.  Guthrie trabalhou dentro da canção folclórica de origem irlandesa ou escocesa, da música country tradicional, do forrozinho hillbilly que eles dançam até hoje, de um ou outro elemento negro do blues, das baladas em compasso ¾, e daquelas quilométricas canções narrativas em estrofes fechadas, que a canção em língua inglesa tanto aprecia. (E nós também – vide “Triste Partida”.)

Guthrie é menos conhecido pelas canções do que por ter sido o “poeta andarilho” que serviu de modelo a uma geração inteira de “trovadores hippies”: Bob Dylan, Phil Ochs, “Ramblin” Jack Elliott, etc.; e ter sido interpretado por David Carradine (o ator da série “Kung Fu”) no filme Esta terra é minha terra (1976), inspirado em sua autobiografia Bound for Glory (1943).  

Acho que há poucos CDs de Guthrie lançados no Brasil.  Nos tempos do vinil era ainda mais difícil encontrar alguma obra sua, e o que me salvou foram alguns elepês da biblioteca da ACBEU, na Vitória, no tempo em que eu morava em Salvador.

Ele foi o menestrel ambulante da América no tempo da Grande Depressão, pegando carona em trens, dormindo nos acampamentos dos sem-terra, metendo-se em agitações políticas.  No filme dylaniano Não estou lá, de Todd Haynes, seu nome é dado a um adolescente negro, fluente ao violão. 

Sua carreira de trovador brotou num ambiente idêntico ao de As Vinhas da Ira (livro de John Steinbeck, filme de John Ford).  Esquerdista por natureza, Guthrie escreveu em seu violão: “Esta máquina mata fascistas”, mas suas canções não são incendiárias, nem falam de revolução.  Em sua grande maioria são celebrações da vida simples das pessoas do interior (tal como em Luiz Gonzaga) e reafirmações da fé democrática fundamental dos norte-americanos.

Guthrie nasceu em 14 de julho de 1912 e morreu aos 55 anos, de uma doença nervosa degenerativa. Seu filho Arlo Guthrie é um dos grandes nomes do folk rock.  Sua obra continua a ser gravada e reverenciada, canções como “This land is your land”, “Pastures of Plenty”, “I ain’t got no home”, e seus numerosos “talkin’ blues”, aquele estilo de monólogo semi-cantarolado enquanto se rasqueia o violão, usado por Dylan, Arlo e tantos outros.










sexta-feira, 13 de julho de 2012

2922) Não dá pra ler tudo (13.7.2012)








O aumento exponencial de textos eletrônicos disponíveis e gratuitos causa uma euforia sem limites e um pessimismo sem volta. Centenas de milhares de livros, milhares de filmes, milhões de músicas!  Tudo ao alcance de um clique, de graça!  O único senão é o fato de que o dia continua tendo apenas 24 horas.  Nosso tempo de leitura é o mesmo de que dispunham os leitores do século 18, ou mesmo os leitores da Grécia Antiga (e mesmo eles certamente se queixavam de que “não dava pra ler tudo”).  Esse “não dá pra ler” é relativo, e não faz muita diferença. Digamos que eu conseguisse ler um livro por dia; seriam 30 livros por mês.  Se meu limite é esse, não faz muita diferença se estou deixando de ler 100 livros ou um milhão.  Leio trinta, e acabou-se.

A questão é: Que trinta?  Porque era mais fácil escolher trinta entre 100 do que trinta entre um milhão. Não teríamos desculpa para estar lendo algo a contragosto, porque teríamos acesso, se não a tudo, pelo menos a uma quantidade inesgotável de obras que de fato queremos ler.  Tem muitos leitores de bibliotecazinhas humildes do interior, mundo afora, que ficam relendo seus autores preferidos, ou avançando aos bocejos por entre obras que não lhes interessam, apenas porque não aparecem livros novos.

E como ter acesso a informações novas, a autores que ainda não conhecemos? Cory Doctorow (do saite BoingBoing) diz: “Twitter e blogs são a única maneira de administrar a enorme quantidade de material disponível. Sem isto, ninguém sairia de sua órbita de contatos sociais, ninguém trocaria idéias com os milhões de pessoas que conhecem outros milhões, os polinizadores que pegam uma informaçãozinha aqui e levam para acolá. Sem eles, a conversa morreria. Essas pessoas garantem que o que é realmente bom acabará chegando ao topo da pilha e ficando acessível”.

O dia continua tendo apenas 24 horas, mas por isso mesmo é preciso preenchê-las bem. O leitor não deve imaginar que os milhões de livros possíveis de ler já lhe pertencem, ou estão de alguma maneira a cobrar-lhe um posicionamento. O leitor deve se perguntar: Entre trabalho e outras atividades, hoje em terei meia hora para ler.  Ou duas horas, ou cinco, etc.  Vou preencher esse tempo com que?  Você não precisa ter um iPod com mil romances, basta ter um livro por perto, um livro que lhe interesse. (Tanto pode ser digital quanto de papel.) Se você pensar nos mil livros extraordinários que gostaria de ler, não vai sair do canto. Basta ter sempre coisas boas por perto, e todo dia pensar: vou ler o que?  O fato de haver 100 vezes mais títulos disponíveis não me obriga a ler 100 vezes mais, apenas me ajuda a escolher melhor.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

2921) Ciência vs. Fantasia (12.7.2012)



Nem sempre (ou melhor, quase nunca) é fácil traçar uma linha separando FC e fantasia, pelo modo peculiar como os elementos das duas sempre aparecem misturados. 

Arthur C. Clarke já afirmou que qualquer história onde se viaje mais rápido do que a luz é fantasia, e não FC, porque uma tal viagem é cientificamente impossível.

Há uma história de Ursula LeGuin (uma das primeiras que ela publicou) em que elementos dos dois gêneros estão misturados de um modo muito inteligente. 

“Semley’s Necklace” (1964) conta a história de um povo humanóide num planeta remoto, que tem uma civilização meio artesanal (suas armas são espadas, lanças, etc.), e que monta cavalos alados, uma espécie de “pégasos” naturais do planeta. Um mundo de fantasia heróica, por assim dizer. Semley é uma jovem que por uma série de motivos precisa reaver um precioso colar que foi subtraído do seu povo e levado para um museu em outro planeta. 

Ela viaja até a base dos colonizadores, e insiste tanto que eles a levam ao planeta onde a jóia foi guardada, prevenindo-a de que a viagem é longa mas vai durar apenas uma noite. Ela consegue a jóia de volta, mas quando retorna para sua aldeia descobre que não se passou um dia inteiro, mas nove anos. Seu marido morreu na guerra, e sua filha pequena é agora da mesma idade que ela.  

É um conto que contrapõe duas civilizações, uma “medieval” e a outra tecnológica, e mostra o choque cultural de uma pessoa ingênua ao se deparar com os efeitos relativísticos de um voo espacial.  Jamais passaria pela cabeça de Semley, em sua cultura, que uma viagem pudesse durar uma noite num lugar e nove anos em outro. A ciência vale inclusive para os que a desconhecem.

Um divertido filme de FC é Viagem Fantástica (1966) de Richard Fleischer.  Nele, um cientista tem um coágulo no cérebro que precisa ser operado; a única maneira de chegar lá é miniaturizando um submarino com uma equipe de médicos e injetando-o na corrente sanguínea do paciente, para que o veículo chegue até o cérebro e a operação possa ser feita.  

O filme impressiona até hoje pelos efeitos especiais, excelentes para a época, mas tem uma falha fundamental. Um submarino com sua tripulação, mesmo com seu tamanho diminuído para uma fração de milímetro, continuaria pesando as mesmas toneladas que pesa, porque sua massa continua sendo a mesma – apenas os espaços intra-atômicos foram reduzidos (mais ou menos como um livro sem espaços em branco mas com o texto completo gastaria a mesma tinta para ser impresso).  

O próprio Asimov, autor da novelização, teve que aceitar essa premissa obviamente anticientífica, e ela contamina de fantasia toda a narrativa subsequente.








quarta-feira, 11 de julho de 2012

2920) "Prometheus" (11.7.2012)








O novo filme de Ridley Scott parece iniciar uma fusão entre os dois clássicos que ele dirigiu na FC (Alien, o 8. passageiro, 1979, e Blade Runner, 1982).  Os filmes ocorrem em diferentes universos, oriundos de autores não relacionados um ao outro, mas que Scott parece querer botar esses universos embaixo da sua própria asa.  Em ambos os filmes existiam andróides (chamados “replicantes” em Blade Runner) e parece ser este o elo entre as duas linhas ficcionais.  Em Alien e Prometheus não vemos a Terra, a não ser em duas cenas curtas no início do segundo filme, cenas em lugares desertos, que nada nos mostram da realidade urbana desse futuro. Uma Terra capaz de gastar um trilhão de dólares mandando uma nave a um planeta distante, para que dois arqueólogos confirmem ou não sua tese sobre a origem de humanidade. Será a mesma Terra cuja Los Angeles em 2019 produzia  replicantes?

Se as histórias vão se mesclar através do enredo, contudo, é menos importante do que o fato de que se mesclam através da temática.  A expressão “encontrar o seu criador” (“to meet thy maker”), usada em Blade Runner, é retomada insistentemente neste filme, só que desta vez não são os replicantes que querem um tête-à-tête com o engenheiro que os criou (Tyrell, da Tyrell Corporation) e sim os humanos que descobrem (ou imaginam ter descobertos) indícios de que a humanidade foi criada por uma raça de Engenheiros que veio de outra parte da Galáxia.

Blade Runner já questionava a frieza com que os humanos tratavam os replicantes, frieza e insensibilidade dignas de qualquer andróide.  O David de Prometheus é um andróide que trata os humanos com a polidez impecável e desdenhosa de um mordomo inglês administrando uma família nobre mas disfuncional; mas a executiva de carne e osso interpretada por Charlize Theron não é mentalmente menos andróide do que ele.  Ela e David confirmam a frase de Philip K. Dick de que alguém que não se preocupa com o sofrimento de uma criatura viva é uma máquina, mesmo que seja uma criatura viva.

Prometheus deve elementos aos filmes já citados mas também a 2001 de Kubrick (sinais achados na Terra remetem expedição a um planeta distante) e a Missão: Marte de Brian de Palma (montanha oca, estatuária colossal, tempestade de areia, nave soterrada, fecundação dos oceanos terrestres com DNA alienígena). É o próprio DNA do gênero que Ridley Scott está mais uma vez dissecando e recombinando, e em termos de perfeição técnica e ousadia visual ele está mais próximo de Kubrick do que de De Palma.  Esta primeira metade da sua nova narrativa justifica a expectativa pela segunda.