quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

2776) A Guerra de 12 (26.1.2012)




Houve várias “guerras de 12” referentes a 1912, e não duvido que 1812 tenha oferecido algumas guerras famosas também. A que conheço melhor é aquela que o advogado e fazendeiro Augusto Santa Cruz moveu, à frente de 200 jagunços, contra as autoridades de Alagoa do Monteiro, por duas vezes. Na primeira, em 1911, prendeu e desmoralizou todos, em praça pública, mas foi combatido, bateu em retirada e refugiou-se sob a proteção do Padre Cícero, enquanto os desafetos destruíam e incendiavam sua fazenda. Voltou em 12, reorganizou o bando, juntou-se a Franklin Dantas. Tornou a invadir Monteiro, e desta vez foi em frente, invadiu Taperoá, Patos, Santa Luzia do Sabugi, Soledade; foi derrotado apenas em São João do Cariri. A história dessa guerra está no brilhante livro Guerreiro Togado, de Pedro Nunes Filho.

Mas a Guerra de Doze a que me refiro é a que está em curso, a Guerra Digital entre as autoridades e empresas que pretendem interferir na troca livre de arquivos via Internet, e as empresas, grupos ou indivíduos que não admitem isso. Entre 19 e 20 de janeiro a polícia prendeu os responsáveis pelo portal Megaupload e tirou o saite do ar, e o coletivo Anonymous tirou do ar por algum tempo saites das autoridades, como o FBI, e de empresas. O que foi chamado nas redes sociais de Primeira Guerra Digital pode ter sido a primeira escaramuça de uma guerra maior. Até que ponto um lado tem poder policial e político para continuar fechando saites e aprovando leis de censura? Até que ponto o outro lado pode bloquear saites, e que outras formas de represália cibernética (ou não) ele pode utilizar?

Em 1992, Bruce Sterling lançou o livro The Hacker Crackdown, sobre a operação do Serviço Secreto norte-americano, que em 1990 invadiu a “Steven Jackson Games” e apreendeu material da empresa (em 1993 um tribunal considerou essa operação “executada sem cuidado, ilegal, e completamente injustificada”). O livro de Sterling mostra como a Internet recebeu o poderoso afluente das tecnologias telefônicas dos EUA para ser o que é. E foi também o primeiro livro (ou pelo menos o primeiro livro que já era sucesso de vendas) a ser oferecido gratuitamente para download. Neste momento, alguém envolvido nessas guerras deve estar juntando material para escrever um livro análogo. Ou o livro está sendo escrito ao mesmo tempo por pessoas que não se conhecem, em países diferentes, sem que elas mesmas tenham isto em mente; é um livro descentralizado, sem índice, sem ordem cronológica, um livro apenas páginas de texto que vão sendo digitadas no dia a dia por escritores tão anônimos que não sabem que são escritores.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

2775) A arte de rir (25.1.2012)





Um homem e uma mulher, que não se conhecem, viajam por acaso no mesmo vagão de trem noturno. À noite, cada um se deita no seu beliche e pega sua manta. No meio da noite, a mulher se levanta e vai até o beliche do homem: “Por favor, estou com muito frio... Você podia me emprestar sua manta?”. Ele diz: “Tenho uma idéia melhor. Poderíamos fingir que somos casados, só por esta noite!” Ela dá um sorriso malicioso e diz: “Claro... Por que não?” Ele responde: “Então larga minha manta, vai dormir, e não enche!”.

Toda piada se baseia na descrição de uma situação, numa inferência errônea que fazemos sem perceber, e na revelação brusca, na derradeira linha, do que estava de fato acontecendo.  

No presente caso, a inferência errônea é a mesma que a mulher fez, ou seja, de que com esse papo de “fingir que eram casados” o homem estava propondo que fizessem sexo para se aquecer. Com a frase final dele, ficamos sabendo o que de fato ele estava pensando. 

Achamos graça porque é uma versão plausível dentro da nossa cultura, em que o casamento é muitas vezes abordado como uma fonte permanente de pequenas disputas, discussões, pequenos egoísmos, pequenas indelicadezas. As duas possibilidades são igualmente plausíveis (o homem quer sexo; o homem quer ser deixado em paz), e a habilidade da piada (e de quem vai recontá-la) é dar a entender uma coisa e surpreender com a outra.

Matthew Hurley, co-autor de Inside Jokes: Using Humor to Reverse-Engineer the Mind (MIT Press, 2011) afirma que nossa mente trabalha sem parar, fazendo hipóteses e presumindo coisas a respeito de tudo que nos cerca, tentando não ser apanhada de surpresa.  

Acontece que um número enorme dessas hipóteses se revelam erradas e são descartadas, mas lidar com elas faz parte de nossa atividade mental. Será que esse motoqueiro vai mesmo cortar na frente do meu carro? Será que o guarda me viu passar o sinal vermelho? Será que aquele é Fulano no carro ao lado? 

Muitas dessas possibilidades podem gerar situações tensas ou constrangedoras que nunca se verificam, mas nossa memória não as abandona totalmente. O humor serve muitas vezes como uma reconstrução dessas coisas que não aconteceram, muitas delas por serem absurdas ou altamente improváveis; e a descarga nervosa representada pelo riso é nossa reação diante de algo absurdo que ameaça acontecer e não acontece, ou então algo comum que acaba acontecendo de maneira absurda.

Diz Hurley (http://b.globe.com/sXfzh7): “O humor é agnóstico com respeito ao conteúdo, porque consiste apenas na descoberta de uma falsa suposição, e este processo não requer nenhum conteúdo em especial. (...) O que é universal no humor é o processo, não o conteúdo”.




terça-feira, 24 de janeiro de 2012

2774) A 1a. Guerra Digital (24.1.2012)



A Primeira Guerra Digital ocorreu entre quinta e sexta-feira passadas, quando o coletivo Anonymous, reunindo cerca de 5.600 computadores espalhados pelo mundo, tirou do ar os computadores do FBI, numa represália ao fechamento do Megaupload, saite de compartilhamento de arquivos, acusado de pirataria digital. É provável que não tenha sido a primeira (sempre haverá quem já viu outras); a única certeza é de que não será a última, e de que em breve será tão permanente e banal quanto as balas perdidas.

Não foi uma batalha bélica, não houve perda de vidas nem de patrimônio material. Uma dúzia de presos, parece. Não houve tiroteio; apenas ofensivas e contraofensivas virtuais por parte dos dois grupos. O grupo pró-SOPA (que defende a lei Stop Online Piracy Act), numa carga fulminante ladeira acima, invadiu e apossou-se do território Megaupload, de aliados do Anonymous. A invasão se deu em circunstâncias tais que dificilmente esse território será retomado. Já o Anonymous mostrou que não pode anexar território para si (provavelmente é disperso demais para isto), mas, em contrapartida, bombardeou uma dúzia de “pontes”, e engavetou o acesso a pontos cruciais do território inimigo: FBI, agências do governo, grandes corporações da música e do cinema.

O grupo da SOPA perdeu a chance de forçar uma discussão e votação imediata da lei, mas apossou-se de um ativo de grande porte, sem falar na vitória moral e no marketing. A guerrilha internética do Anonymous mostrou força, e usou inclusive, como veículo de ataque, computadores de usuários distraídos; convergiu sobre as redes dos adversários e as tirou do ar. 1x1.

São agitações como as da Primavera Árabe, Ocupem Wall Street, etc. Ocorrem confrontos, mas para as multidões anônimas não interessa muito o combate físico, inclusive contra um adversário bem aparelhado. As baixas mais sérias serão um efeito colateral, um risco aceito. Elas procuram a ocupação de espaços, o corte do fluxo de informações do inimigo. Não é muito diferente de ocupar ruas, barricar passagens, impedir o tráfego, intimidar os comerciantes, fechar a rua na marra.

Grupos assim são multidão apenas no sentido de serem plural e sem rosto; mas sua movimentação é a de um grupo especial de guerrilha. O grupo deve misturar anciãos, adultos, jovens, pessoas muitíssimo bem treinadas, uma rapaziada nerd e desocupada, com disposição para um novo game. Muitos mergulharam nisso às cegas, uns por aventura, outros por missão, outros por mera alegria de viver, outros por indignação cívica, outros por fama e fortuna. Juntos, podem ir da terra ao céu num pulo, como podem voltar do céu à terra num baque.

domingo, 22 de janeiro de 2012

2773) Souvenirs (22.1.2012)




Trouxemos da Malásia um casco de tartaruga, laqueado num tom de verde-lodo que lhe confere um aspecto de contemporâneo da Atlântida, algo encontrado por acaso por um mergulhador milionário que testava seu novo aqualung com amigos, num fim de semana. 

Da Califórnia trouxemos uma coleção de máscaras de borracha em forma de focinho de cão, de lobo, de leão, máscaras que parecem ajustar-se perfeitamente aos nossos rostos, e que ao serem tiradas deixam a sensação de quem de repente se vê privado de todos os seus dentes.

Da Capadócia trouxemos uma pedra-pomes do tamanho de um travesseiro, que reproduz em miniatura as cidades-galerias ocultas nas cavernas de calcáreo. 

De Málaga trouxemos rosas vermelhas, cada uma mais vermelha do que as outras, como se estivessem disputando entre si não só a nossa atenção como também as chances de um contrato milionário para aparecerem diariamente na televisão das rosas. 

De Benares trouxemos um elefante vivo, pouco maior que um cão. 

De Addis-Abeba trouxemos um robô de madeira que bate num pequeno bombo e funciona com duas pilhas AA, do tipo comum, e com isto passa o dia inteiro batendo no bombo, abrindo e fechando a boca sem emitir sons.

De Berlim trouxemos uma bomba da II Guerra, ainda intacta e capaz de explodir; foi colocada na sala, onde as visitas podem tocá-la com curiosidade, e, quem sabe, um dia... (a angústia do perigo nos excita). 

De Brunei trouxemos uma pequena peça de artesanato feita em papel de seda e fios de cobre muito finos; sua estrutura lembra as camadas sucessivas de uma cebola, sendo abertas por um corte longitudinal que se alarga puxando de dentro de si a camada seguinte e fechando-se do lado oposto, como um leque esférico, de tal modo que, quando se fecha a última camada, emerge de dentro dela a primeira de todas, e tudo recomeça em loop.

De Nairobi trouxemos uma serpente empalhada (ou embalsamada – não entendemos bem a diferença), cravejada ao longo do corpo com toda sorte de objetos pontiagudos: uma agulha hipodérmica, uma seringa contendo heroína malhada, uma varinha do jogo de pega-varetas, uma curiosa tesourinha-de-unhas com três lâminas, uma ponta de flecha neolítica, uma caneta tinteiro Mont Blanc, um parafuso de aço com rosca canhota; cada um corresponde a uma graça alcançada. 

E de uma cidade serrana, no nordeste do Brasil, trouxemos uma pedrinha encontrada na calçada enquanto caminhávamos de volta para o hotel; um seixozinho que rolava à toa, que todos chutavam ou pisavam sem enxergar; não nos custou nada mas hoje não o trocaríamos por todo o resto de nossa coleção, guardada nos seis andares do nosso museu hexagonal de vidro fumê.






sábado, 21 de janeiro de 2012

2772) Raymond Queneau (21.1.2012)




(Cent Mille Milliards de Poèmes)

Se eu fosse para uma ilha deserta (engraçado como todo escritor é ameaçado com isto, e é obrigado a escolher o livro que vai levar!) levaria Obras Completas de Raymond Queneau. Por muitas razões; a mais pragmática delas é que a obra de Queneau é imensa e variada. Num só volume eu teria romance, conto, poesia; romances fantásticos como As flores azuis, romances humorísticos como Zazie no Metrô; poesia cósmica; jogos de palavras; exercícios de estilo; recenseamento dos escritores e cientistas fora-de-esquadro.

Queneau era um trocadilhista, um fazedor de frases, um rei do texto de duplo sentido, ou melhor, do texto que parece infinitamente capaz de novos sentidos. Era um matemático diletante e estabelecia às vezes regras matemáticas que orientavam a composição de um livro, como o número de linhas de cada capítulo (Osman Lins fazia algo parecido em Avalovara). Sua obra tinha um impulso lúdico, irreverente, capaz de desviar o assunto no meio de uma argumentação seríssima para fazer um trocadilho bobo e depois prosseguir em alto nível retórico. Seus livros são intrincados e brincalhões.

Sua experiência mais ousada foram os Cem Mil Bilhões de Poemas, de 1961, um texto combinatório em que as 14 linhas que fazem o soneto podem ser recombinadas em 10 matrizes diferentes, dando o total possível previsto no título. Queneau chegou a editar um livro com as linhas dos sonetos separadas em faixas horizontais, numa edição que bibliófilos já chamaram “uma das mais belas aventuras tipográficas e criativas do século”. Uma experiência que agora se realiza plenamente com a Internet. Neste saite (http://bit.ly/vuDr65) é possível recombinar não apenas os versos originais em francês como a tradução de cada um para o inglês.

Queneau teve a precaução, é claro, de fazer com que cada linha específica do soneto tivesse a mesma rima em todas as versões, para permitir o rodízio entre elas. Além disso, as ligações sintáticas entre os versos, embora tênues, continuam permitindo, após a troca das linhas, uma leitura corrida, fazendo encadeamento com os novos sentidos. É uma façanha técnica impressionante. O resultado, como ele comentou, é uma quantidade de poemas que nem toda a humanidade poderia ler. Alguém dirá: Isso é poesia? A resposta é: Nem toda poesia pode ser assim; isto é apenas um vislumbre do quanto a poesia é capaz. Assim como as exibições de uma ginasta olímpica nas barras assimétricas servem para nos lembrar do que o corpo humano é capaz, mas ninguém espera que todos os corpos se comportem daquela maneira no dia-a-dia. Queneau escreveu O Maior Poema do Mundo; isto não é tudo, mas também não é pouco.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

2771) Reality Shows (20.1.2012)



(The Truman Show)

Não sei quem batizou de “reality shows” esses programas de TV, mas posso especular sobre suas intenções. O termo “realidade” deve ter aparecido aí para se contrapor a outro, que poderia ser ficção, encenação, representação, etc. Seria, em tese (sei lá se os autores pensaram assim; estou fazendo aqui a mais arriscada e a mais freqüente das especulações: tentar adivinhar o pensamento de pessoas desconhecidas em circunstâncias ignoradas), um programa em que coisas reais, não-manipuladas, aconteceriam de verdade, diante das câmaras. Algo mais próximo de um documentário do que de uma novela.

Claro que não é isso que vemos na tela. O que vemos tem um grau de elaboração e de manipulação igual ao de uma telenovela. E em alguns casos maior, porque nas novelas os atores são precisam ser manipulados, oferecem-se de bom grado (por um bom salário) para decorar e interpretar aquelas cenas, enquanto que num Reality Show os participantes precisam ser induzidos a algo, precisam morder as iscas que a produção lhes oferece o tempo inteiro pra ver no que vai dar.

Outra coisa: dizer que somos “voyeurs” diante de um programa assim é um uso errado desse termo. O voyeur é alguém que quer ver sem ser visto, quer espreitar o comportamento de alguém sem que esse alguém saiba que está sendo espreitado, como naqueles bordéis do século 19 em que cavalheiros ricos pagavam para ficar atrás de espelhos falsos, vendo o que os outros clientes faziam na cama. (Existem, claro, ocasiões específicas em que voyeurs e exibicionistas se relacionam de comum acordo, mas isto é uma variação do fenômeno original.) Portanto, um Reality Show só forneceria o que promete se os participantes não tivessem a menor idéia de que estavam sendo filmados e assistidos. Isto faz do filme O Show de Truman de Peter Weir o Reality Show por excelência, mesmo que todos os participantes fossem atores e apenas Truman estivesse pensando que aquilo era “a realidade”.

O grau de espontaneidade nesses “shows de realidade” é zero, tanto assim que a produção precisa criar tensões, competições, ameaças, além de produzir festinhas e embebedar os participantes, para extrair deles algum tipo de comportamento que não seja apenas de caras e bocas, ou o fortão olhando o bíceps no espelho. E na ânsia de fazer os participantes se excederem, é a produção quem se excede, e de repente se vê flagrada numa sinuca qualquer. É um dos raros momentos, no programa, em que algo acontece sem estar totalmente previsto ou totalmente controlado, pela interferência incômoda da realidade – que é a coisa menos bem-vinda num Reality Show, onde tudo se esforça para apenas parecer real.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

2770) FC tupiniquim (19.1.2012)




(http://bit.ly/zikEvD)

Como escrever literatura de ficção científica no Brasil? Este problema não é muito diferente do problema que deve ter se colocado a muitos escritores dos séculos 17 e 18 que queriam apenas escrever literatura brasileira, não importa sobre o quê, mas que fosse escrita no Brasil e sobre o Brasil. Havia alguns milhares de intelectuais formados em Coimbra e sei lá onde mais, cheios de ambições literárias, querendo cantar em prosa e verso aquele mundo bárbaro e fascinante. Liam grego e latim, tinham estudado Camões, Virgílio, Homero. Queriam escrever sobre o Brasil, e ser lidos pelos brasileiros.

Esses escritores-em-projeto tinham como instrumento uma tradição literária basicamente portuguesa e européia, e eram forçados a usar essa tradição para refletir uma realidade, a do Brasil dessa época, que deve em muitos momentos ter lhes parecido intraduzível, irreproduzível através daquele instrumento. A começar pelo fato de que, naquela época, a língua falada nas ruas e nas casas do Brasil não era propriamente o português de Camões e do Padre Vieira, o português que os literatos aprendiam nas universidades e nos claustros. O Brasil desse tempo era um fervilhar de feitorias, engenhos, fazendas e arraiais cheios de gente seminua e analfabeta, falando em nheengatu, a famosa “Língua Geral” criada pelos jesuítas. Fazer literatura assumindo o ponto de vista daquela gente bárbara era uma missão impossível para aqueles literatos. O que fazer, então? Prolongavam a literatura portuguesa, usando suas formas, seus estilos, seus gêneros, seus temas, sua linguagem. Essa literatura, principalmente a poesia, era uma espécie de verniz verbal que recobria a realidade rude, e resolvia para os autores o problema da auto-expressão. De Gregório de Matos aos inconfidentes, foi este precário equilíbrio que ajudou a produzir uma poesia brasileira. (A prosa, no sentido que a vemos no romance, ainda engatinhava.)

Há alguma semelhança entre essa situação e a situação do escritor-fã de FC no Brasil, porque ele também tem nas mãos um instrumento literário forjado no estrangeiro, e que para refletir o mundo que o escritor tem à sua volta precisa ser reformatado. Canibalizado. Desmanchado e recomposto. O erro do escritor brasileiro de FC é achar que seu compromisso é o de expandir a FC que aprendeu a amar como leitor. Talvez seu dever seja o de explodir essa literatura, enxertá-la de contradições capazes de gerar atrito e fagulha em contato com formas de pensar, de falar e de agir que inexistiam no mundo de quem gerou o mundo das espaçonaves, das viagens no tempo, dos impérios galácticos, das catástrofes cósmicas, dos super heróis.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

2769) A palavra peneirar (18.1.2012)




Grande parte do nosso vocabulário se forma através de estágios sucessivos. No primeiro, usa-se uma palavra para fazer uma alusão direta a alguma coisa concreta e familiar a todos. No segundo, essa palavra é transposta para significar algo também concreto, mas completamente diferente, por um processo de semelhança, alusão, associação de idéias, etc. No terceiro, passa a designar uma noção abstrata que já não tem nada a ver com a coisa concreta original; ninguém seria capaz de traçar o percurso até a imagem que deu origem a tudo. Toda aquela rede de utilizações anteriores produziu um sentido genérico que justifica o uso, mas fica difícil entender como o significado “Z” veio do significado “A”.

Usarei o exemplo do verbo “peneirar”, tão nordestino. Ele indica os movimentos circulares que uma peneira faz nas mãos de uma cozinheira; este é o primeiro estágio. Num segundo estágio, passa a indicar qualquer movimento parecido, daí o uso feito por Luiz Gonzaga em “Marimbondo”: “O marimbondo vindo peneirando as asas / pra entrar em nossa casa / chega chuva pro sertão...”. A origem do verbo fica ainda mais clara na canção “Peneirou Gavião”, em que Jackson do Pandeiro compara diretamente os dois movimentos: “Peneirou, peneirou, peneirou gavião / nos ares para voar; / tu belisca mas não come, gavião / da massa que eu peneirar”. O gavião é um exemplo melhor que o marimbondo, porque se parece mais com uma peneira com aquele seu jeito de planar baixo, oscilando horizontalmente, sem subir nem descer.

Ora, daí a pouco qualquer movimento circular começa a ser açambarcado por esse verbo, por associação de idéias – como o dos quadris de uma mulher que dança ou se rebola. Em O Mundo Mágico de João Redondo, de Altimar Pimentel, vê-se uma fala assim: “ROSINHA - O que é seu tá guardado, meu fio. Eu me chamo Rosinha, né Quitéria não. Vamo, seu tocadô, qu'eu quero penerá uma coisinha! (A música recomeça e ela dança) Ai, ai, ai meu tempo!”.

O verbo acaba assumindo a conotação de “mulher rebolando, atraindo atenções masculinas”, como na canção “O mistério do fundo do olho” de Lula Queiroga: “Tô peneirando, peneirando / Bar da Mira, Burburinho / Pina de Copacabana / Galeria Joana Darc, peneirando / Essa menina tem classe / até quando me deixa sozinho”. E desse sentido erótico, provocativo, o verbo ganha um sentido semelhante mas abstrato, também como “oferecer-se de maneira explícita, não disfarçada”: “Fulano está há anos no PDT mas agora vive se peneirando para ir pro PSD”. Cada novo significado abre caminho para novas associações de idéias serem feitas, cada vez mais afastadas do sentido inicial.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

2768) Escritor pop (17.1.2012)



(ilustração: Domitille Collardey)

Roberval é um escritor pop. Durante séculos a classe literária mofou no abandono, no anonimato, morando em mansardas, rabiscando trilogias à luz de velas, e vendo com inveja o modo como os repórteres e os “paparazzi” se amontoavam à porta dos músicos populares e das estrelas do cinema. Mas o mundo mudou. O marketing evoluiu. Os “publishers” perceberam que se era fácil transformar um brucutu analfabeto numa celebridade, deveria ser fácil fazer o mesmo com um intelectual de óculos. E o fizeram com Roberval, cujos romances agora vendem centenas de milhões de exemplares em trinta idiomas.

Roberval desce à rua para ir na padaria, e a imprensa se acotovela: “E aí? Terminou o capítulo?”. Ela se refere, claro, ao capítulo 18 de seu romance vampiresco “Tatuagem de Sangue”. Roberval (ainda novato, ainda se julgando na obrigação de responder tudo que lhe perguntam), diz: “Ainda não... Tive que parar agora de tarde, a cena se passa em Varsóvia, tive que consultar o Google Earth...” Flashes cintilam. Em segundos, a frase estará no YouTube; fãs poloneses abrirão bandeiras de saudação no telhado, mesmo sabendo que a chance de serem vistos pelo astro é remota.

Se fosse sempre assim era uma maravilha. Mas, e quando Roberval deixa vazar pelo Twitter a morte de um personagem? Tem que desplugar os telefones, trancar-se em casa. Já foi seguido até o aeroporto pelo fã-clube de uma vítima. Outro momento delicado é o da assinatura de contrato com a editora. A imprensa se informa e o bota no canto da parede: “Por que cobrou 15% na tradução britânica, e somente 10 na tradução finlandesa?” E tome a vasculhar seus emails, e tome tentativas de quebrar seu sigilo bancário. Emissários de outras editoras vêm trazer-lhe ofertas irrecusáveis, que ele recusa sem piscar o olho. Queixa-se à esposa de que o celular do seu agente vive desligado; ela comenta que talvez lá em Ibiza o sinal não pegue.

O avanço de cada capítulo é acompanhado pela TV a cabo e pelas câmaras dos saites literários como se fosse a votação de uma emenda constitucional. É preciso justificar cada frase, porque entre seus leitores há os que torcem pelo vampiro, os que torcem pelo cientista, os que torcem pelo primaz da Igreja Ortodoxa (presente em todos os livros), os que torcem pelos agentes da Exterpol... E o pior é que depois do seu mais recente e avassalador sucesso a editora que obrigá-lo a usar um editor de texto capaz reproduzir num blog, em tempo real, tudo que ele digita e deleta em casa. Quando o mundo lhe dará um segundo de trégua? Dura é a vida de quem escreve com um milhão de fãs olhando por cima do seu ombro e dando palpites.

domingo, 15 de janeiro de 2012

2767) “20 Mil Léguas” (15.1.2012)



A reedição de 20 Mil Léguas Submarinas pela Ed. Zahar parece ser a mais completa até agora, principalmente pelas mais de 200 notas explicativas do tradutor André Telles, e pelo fato de que reproduz o texto completo do original. Esta é uma proposta importante porque poucos autores terão tido sua obra tão mutilada quanto Julio Verne, e quem já o leu entende por quê. Verne foi praticamente o criador da ficção científica “hard”, que se baseia meticulosamente nos conceitos científicos, e procura conseguir o máximo de plausibilidade. Em toda a obra de Verne são muito poucos os elementos fantásticos, coisas que não podem ocorrer no mundo como o conhecemos. Verne falou sobre façanhas científicas que ainda não tinham sido postas em prática em obras como 20 Mil Léguas..., Da Terra à Lua, etc.; mas apesar de cometer erros eventuais ele raramente distorce os fatos científicos. Verne se via no papel de um educador, e às vezes parecia um mestre-escola bretão, como na sua famosa reação indignada diante de certos livros de H. G. Wells: “Ele inventa!”.

Na introdução a esta edição do livro, Rodrigo Lacerda comenta (poucos estudiosos de Verne o fazem) os recursos usados pelo autor para dourar a pílula das numerosas descrições científicas que era seu propósito incluir. Verne e seu editor, Hertzel (o grande inspirador das “Viagens Extraordinárias”), ambicionavam “resumir todos os conhecimentos geográficos, geológicos, astronômicos e da física coletados pela ciência moderna, e refazer, sob a forma atraente e pitoresca que lhe é própria [a Verne] a história do universo”. Esta ambição lembra o projeto da enciclopédia fantástica de “Tlön” de Jorge Luís Borges: “Conjetura-se que este ‘brave new world’ é obra de uma sociedade secreta de astrônomos, de biólogos, de engenheiros, de metafísicos, de poetas, de químicos, de algebristas, de moralistas, de pintores, de geômetras... dirigidos por um obscuro homem de gênio”.

A narrativa típica de Verne, portanto, é salpicada de pequenas explicações científicas que vão de poucas linhas a várias páginas de extensão. Se somarmos a isto as notas de pé de página necessárias para situar, hoje, informações que eram de conhecimento público na França de 1871, resulta que poderíamos ter uma edição eletrônica desta obra em forma de hipertexto. As explicações e digressões científicas ficariam ocultas mas poderiam ser reveladas a um clique do mouse, bem como notas posteriores feitas pelos editores e tradutores de Verne. A mutilação que os seus livros sofreram tantas vezes se tornaria meramente parcial, superficial; o texto completo estaria contido na versão, para ser lido por quem se interessasse.