sábado, 26 de novembro de 2011
2724) Os degraus do improviso (26.11.2011)
O improviso musical é uma coisa fascinante, e acho que fascina ainda mais aqueles indivíduos que têm um pouquinho de familiaridade com um instrumento mas não chegam a ser grandes músicos. Eles percebem (porque também tocam um pouco de piano, ou de guitarra, de sax, seja lá do que for) o quanto aquilo é difícil de fazer, e admiram melhor a aparente facilidade de quem o faz.
Para quem é totalmente leigo, tudo parece ou igualmente fácil ou igualmente impossível. Apenas o semi-talentoso é capaz de entender de verdade o que o talentoso está fazendo.
No caso da música, temos, por exemplo, aquelas circunstâncias em que não se espera do músico que ele improvise, e sim que execute com perfeição. Não pode engolir uma nota sequer, não pode pular uma pausa, tem que ser tudo do jeito que está escrito na partitura ou consagrado na memória.
Cabe ao músico juntar a essa reprodução perfeita uma dose de emoção pessoal que dê ao público uma impressão de algo novo, espontâneo, de uma coisa que está acontecendo ali pela primeira vez.
A música erudita, de concerto, tem um pouco desse espírito. O concertista não está ali para inventar música, mas para recriar algo que já existe.
Depois, há um degrau intermediário em que o músico trabalha com partes iguais de memória e de momento. É quando, na música popular, chega o momento do solo instrumental. O cara sabe a melodia que vai tocar, tem uma idéia aproximada do que vai fazer; mas o resultado, que não precisa ser igual a nenhuma versão anterior, vai depender do momento, de sua “inspiração”.
Inspiração é a capacidade de se concentrar no que está tocando e fazer, em frações de segundo, as escolhas melódicas mais adequadas, mais surpreendentes e mais cheias de informação nova, sem entrar em choque com a harmonia subjacente (a sequência de acordes que serve de base ao solo).
E existe o improviso total. O cara está ouvindo uma música pela primeira vez (no estúdio ou no palco) e precisa descobrir caminhos, sem muito tempo para pensar, confiando na sua bagagem musical (conhecimento de acordes e de escalas) e na sua “inspiração”.
Ele chega ao estúdio para tocar no disco de Fulano, mostram-lhe as partes já gravadas da música e o trecho onde ele vai tocar. Ele escuta, pega o jeitão da música, empunha o instrumento, manda gravar e toca. Às vezes tem que refazer, porque não saiu legal. Outras vezes, faz um improviso perfeito como se já tivesse tocado aquilo mil vezes.
Ou então sobe ao palco para dar canja num show alheio, com músicos com quem nunca tocou, numa canção que desconhece. E faz um improviso que fica para a História. Como? Não sei, mas já vi acontecer.
sexta-feira, 25 de novembro de 2011
2723) “O Grande Tertiano” (25.11.2011)
É um conto antigo do grande Anthony Boucher, escritor de romances policiais e de ficção científica, crítico, editor e, incidentalmente, o homem que fez a primeira tradução e publicação de Jorge Luís Borges nos EUA.
“The Greatest Tertian” (1952) é um conto em forma de artigo acadêmico de um pesquisador de uma civilização alienígena do futuro, estudando as lendas longínquas do distante planeta Terra.
Nesse futuro, a história da Terra se diluiu em lendas confusas e somente dois terrestres (=tertianos) ainda são lembrados. O primeiro, conhecido como Shark Oms, era um detetive de rara inteligência, que desvendava os crimes mais complicados. O segundo, chamado Shark Sper, era um dramaturgo e poeta que escreveu as maiores comédias e tragédias do teatro de seu tempo.
O lance de ousadia acadêmica do autor do artigo consiste num raciocínio indiscutível. Ele aponta o fato de que essas duas figuras lendárias viveram na mesma cidade terrestre, chamada “Londres”, em datas, segundo os registros, muito próximas. Sabem-se centenas de episódios da vida do detetive Shark Oms, mas nenhum dos seus escritos sobreviveu. Por outro lado, preservou-se toda a obra do dramaturgo Shark Sper, mas quase nada de sabe sobre sua vida. Ora (pergunta o autor), isto não sugere que os dois são um único indivíduo?
Esse indivíduo seria “o grande tertiano”, famoso pelas suas deduções brilhantes e pelos seus versos geniais.
O conto de Boucher ironiza as nossas tentativas de interpretar os farrapos de evidências que temos a respeito de civilizações desaparecidas. Pedaços de biografias, datas contraditórias, fatos cheios de lacunas, versões conflitantes que às vezes coincidem num ponto secundário, nomes que soam de um jeito parecido e podem ser o mesmo...
A idéia (um tanto borgiana, com um viés satírico) de considerar que Sherlock Holmes e Shakespeare foram a mesma pessoa não está muito longe dos estudos de hoje em dia tentando determinar a existência de um imaginário poeta chamado Homero que teria escrito a Ilíada e a Odisséia.
Lembra também uma especulação de Carl Sagan (acho que no livro Cosmos) ao falar das tragédias de Ésquilo ou Sófocles, das quais só conhecemos um pequeno número. Diz Sagan que é como se uma civilização futura ouvisse falar em Shakespeare mas só tivesse preservado peças como Timon de Atenas, Bem está o que bem acaba, Coriolano, e tivesse vagas referências a textos perdidos com os títulos de Hamlet, Rei Lear ou Romeu e Julieta.
A história é uma montagem de cacos e farrapos, feita, em partes iguais, de deduções como as de Sherlock Holmes e de uma imaginação criadora como a de Shakespeare.
quinta-feira, 24 de novembro de 2011
2722) A segunda Brasília (24.11.2011)

(elefante branco da África do Sul, foto de Gero Breloer)
A Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 se aproximam. Olhando o horizonte de eventos, ainda não consegui enxergar a bola rolando no gramado nem os atletas correndo nas pistas. O que enxergo são as partes superiores dos estádios, dos ginásios, dos viadutos, dos complexos esportivos e das vilas que serão erguidas por construtoras eufóricas. Tanto dinheiro gasto talvez tenha um bom reflexo na pirâmide social brasileira. Alguém vai passar da classe C para a B, e alguém vai passar da B para a A-. A classe A+, como sempre vai continuar sendo um clube fechado com número fixo de sócios. E o fato de toda essa movimentação atingir menos de 1% da população não tem muita importância, porque ao restante caberá o consolo de sempre, a “geração de empregos”.
Na África do Sul, a maioria dos estádios construídos para a Copa de 2010 está entregue às baratas, porque o futebol local não tem força econômica suficiente para torná-los rentáveis. Estão fechados para jogos, abrindo apenas para que turistas de todos os países entrem e tirem fotos para mostrar na volta para casa: “foi aqui que nossa Seleção ganhou de Fulano ou Sicrano”. Não sei como anda a média de público no Campeonato Brasileiro, mas me lembro que no primeiro semestre o campeonato regional com maior média de público era o pernambucano, com 7 mil pagantes. Na maioria dos Estados (com exceção de Rio e São Paulo) existe apenas um grande clássico unindo duas grandes torcidas: Gre-Nal, Ba-Vi, Cruzeiro x Atlético, etc. Esses jogos serão capazes de tornar rentáveis os elefantes brancos?
O que se desenha no horizonte é uma nova Brasília de concreto, cimento, aço, cifrões invisíveis e tenebrosas transações. Brasília (independentemente das coisas positivas que sua criação acarretou) provocou rombos gigantescos e fortunas instantâneas. Quando eu era pequeno ouvia histórias de como Brasília tinha sido construída. Fulano de Tal se comprometia a entregar pelo preço X um total de 50 caminhões de areia. O caminhão entrava no canteiro de obras, sua entrada era registrada (“Primeiro caminhão!”), ele ia até o final, saía, dava a volta, entrava de novo (“Segundo caminhão!”) e passava o dia assim.
Essa lenda urbana lembra a bolsa inesgotável das histórias de cordel; e bate com a das republiquetas latino-americanas que no desfile do Dia da Pátria, diante de embaixadores estrangeiros, faziam a mesma meia-dúzia de batalhões darem a volta ao quarteirão e desfilarem de novo. Algo me diz que depois desses mega-eventos esportivos o valente Eduardo Galeano vai ter que acrescentar um apêndice de 50 páginas ao seu clássico As Veias Abertas da América Latina.
2721) A morte da menina (23.11.2011)

No século 19, grande parte da literatura popular era publicada em folhetins, aqueles rodapés dos jornais diários, em forma de narrativa seriada. Todo dia, ou toda semana, conforme o caso, saía mais um capítulo da história. O leitor recebia o jornal em casa, se fosse assinante; ou ia até a banca para comprá-lo. Exatamente como hoje. E nesse contato diário com o jornal ele ia, entre outras coisas, acompanhando aventuras policiais, de capa-e-espada, melodramas sentimentais ou dramas familiares.
O folhetim era mais típico da França, mas foi Charles Dickens o grande folhetinista inglês, e um dos maiores de todos os tempos. A maioria dos seus romances foram publicados primeiro assim, como folhetins serializados, que os leitores corriam a comprar assim que o jornal saía às ruas. Um desses romances foi A Velha Loja de Curiosidades (1840-41), do qual se conta a seguinte história.
A protagonista é Nell, uma órfã de bom coração que vive perseguida pelas piores adversidades, como é de praxe no gênero. Todo mundo se comovia com a bondade da menina, os sacrifícios que era obrigada a fazer, e a doença que ia minando sua resistência, fazendo todo mundo ficar temeroso pela sua vida. Os jornais com a história de Nell vinham de navio da Inglaterra para os EUA. Cada navio trazia um pacote de jornais com novos capítulos da aventura. E a ansiedade dos leitores era tanta que, reza a lenda, quando um desses navios chegou ao porto de Nova York os marinheiros no convés viram lá embaixo, no cais, uma multidão de gente se espremendo, se empurrando, e gritando para eles no navio: “A menina morreu?...”
A ansiedade em saber o que acontece num folhetim (e a telenovela cumpre hoje a mesma função) impedia os leitores de ficarem em casa, esperando que o jornal fosse enfiado por baixo da porta. Não, eles trocavam de roupa, pegavam um tílburi ou um cabriolé (sei lá o que servia de táxi naquele tempo) e iam até o cais do porto no dia e hora previstos para a chegada do navio. E o grito coletivo da multidão mostrava que todos supunham, provavelmente com razão, que a tripulação do navio já tinha lido os episódios mais recentes e sabia o desfecho da história.
Hoje, lemos nas revistas os resumos de todos os capítulos de novelas que irão ao ar durante a semana. O suspense novelesco cumpre duas etapas. Primeira, sabermos “se a menina morreu”. Segunda, saborearmos, munidos desse conhecimento, cada momento de drama, cada diálogo sentimental, cada arroubo dos atores. Temos primeiro a notícia da cena (a fruição do enredo) e depois a cena em si (a fruição do estilo). Não são emoções contraditórias; são complementares.
2720) O mar e o sertão (22.11.2011)
Há uma forte interpenetração entre profecia e poesia. Aí estão livros como Mensagem de Fernando Pessoa, as visões versejadas do sapateiro Bandarra, as Centúrias de Nostradamus.
As profecias das bruxas de Macbeth, da pitonisa de Delfos, ou dos sermões de Antonio Conselheiro compartilham essa linguagem. Estamos sempre a um passo de entendê-la por completo, e ela sempre nos escapa por um pouquinho. E cada fato que acontece diante dos nossos olhos parece confirmar, de um modo diferente, essas visões.
Minha profecia predileta ainda é a do Padre Cícero: “Vai chegar o tempo em que a roda grande vai passar por dentro da roda pequena”. A frase de Deus e o Diabo na Terra do Sol também traz embutida em si essa promessa de que o mundo sofrerá mudanças radicais – promessa, aliás, que é a mercadoria mais vendida pelos profetas de todos os tempos.
Essa troca de posições entre o mar e o sertão parece também se harmonizar com o que a ciência nos diz sobre a forma antiga dos continentes. Havia o tal de Gonduana em que a América do Sul se encaixava no “sovaco” da África como duas peças de quebra-cabeças. Dizem meus amigos cearenses que as palavras atuais “Ceará” e “Saara” vêm de uma mesma palavra remota, que preservava a lembrança de quando essas duas regiões eram uma só, antes da separação dos continentes.
Glauber nos fez imaginar um sertão sendo invadido pelos tsunamis torrenciais produzidos pelo efeito estufa e pelo degelo dos polos, enquanto por uma descompensação geológica qualquer o leito do oceano ficaria exposto ao sol, o plancto ressecando em rochas indestrutíveis.
Mas talvez o sentido da profecia não esteja em “virar a moeda” de quem está quieto, no caso o Oceano Atlântico. Ela se refere somente ao sertão. Visitem o Cariri cearense, a feira de Juazeiro, vejam aquelas pedras fósseis com esqueletos de peixe, achadas nas regiões caririzeiras mais áridas. O sertão pode virar mar porque naquele mesmo local existia um mar que virou sertão.
O que esteve submerso um dia, e hoje não passa de um raso requeimado pelo sol, pode ser submerso de novo. O oceano talvez se detenha diante do Arquipélago da Borborema, rodeando-o. Os peixes encravados nas pedras do Juazeiro abrirão os olhos, abrirão as guelras e voltarão a nadar nas suas águas antiquíssimas. O sertão é uma mera fase entre dois momentos do mesmo mar oceano. Quem sobreviver, verá.
domingo, 20 de novembro de 2011
2719) O torcedor símbolo (20.11.2011)

(Jaime de Carvalho)
O futebol tem um Panteão de craques, de artilheiros matadores, de goleiros imbatíveis, de grandes capitães. Os cartolas só entram para a História de raspão, resvalando, como notas ao pé de página em que depois de um capítulo inteiro de comentários sobre um título de campeão, alguém diz de passagem: “Aliás, isso foi na gestão de Fulano de Tal, e o supervisor de futebol era Sicrano”. Existe uma certa injustiça nisto, porque sempre houve e haverá grandes diretores. Homens de visão que sabem ousar na hora certa e que trabalham pelo clube, não pelos seus cofres pessoais.
E existe o torcedor-símbolo, que sem fazer muito marketing pessoal fica associado à memória coletiva do clube que amou. Alguns sozinhos, outros organizando pequenas charangas, precursoras das atuais torcidas organizadas, que em muitos casos distorceram e estragaram o espírito do “ser torcedor”.
Pra mim os torcedores-símbolo dos estádios eram (entre muitos outros) o raposeiro Papa Sebo, que levava uma bela e enorme (para os padrões da época) bandeira do Campinense em todos os clássicos; e o do Treze era Zé Pezinho, um lavador de carros que tinha um pé torto e uma infinita capacidade de esbravejar palavrões. Entre os dois se travava, a dezenas de metros de distância, um verdadeiro duelo de titãs por entre gritos e foguetório. (Sem esquecer, claro, Zé Preá, aquele que batia com a almofada no chão da arquibancada do PV e provocava um grito coletivo de resposta.)
O Flamengo teve (na minha infância) a charanga de Jaime de Carvalho, um cara de cabelo e bigode grisalhos cuja bandinha de percussões e sopros foi imortalizada no samba que diz “Flamengo, joga amanhã que vou vou pra lá... (...) Pode chover, pode o sol me queimar, eu quero ver a charanga do Jaime tocar...”. Algumas pessoas dizem “Jorge”, mas é por contaminação do São Jorge citado na estrofe anterior. Era Jaime mesmo.
O Botafogo (na minha infância) tinha Tarzan, um sujeito parrudo, tipo um Ivan Gomes carioca, eternamente com a camisa alvinegra, bradando e sofrendo na arquibancada. O Vasco tinha Dona Dulce Rosalina, uma mulher morena, magrinha, que naquele tempo causava uma certa perplexidade, acho, porque liderava um grupo de torcedores naquele vibrante (e geralmente inútil...) “cazá cazá cazá!”. E tinha Ramalho, um negro magro tipo Chuck Berry, de boné na cabeça, que soprava um talo de mamona e fazia sozinho um barulho ensurdecedor. (É o que dizem. Eu era menino, nunca tinha ido ao Maracanã, sabia dessas coisas pela Manchete Esportiva ou pela Revista do Esporte).
E o Fluminense? O Fluminense tinha Nelson Rodrigues. Pra vocês verem – até nisso o Fluminense é uma elite.
sábado, 19 de novembro de 2011
2718) Cão do segundo livro (19.11.2011)
É uma dessas expressões bem nordestinas, equivalente a “cachorro da mulesta”, para qualificar um sujeito que está arrasando, que está botando pra quebrar. Um sujeito competentíssimo no que faz, sem rival, sem comparação.
“Rapaz, esse Ayrton Senna é o cão do segundo livro... A caixa de marcha quebrou, e ele levou o carro até o fim só no muque!”
"Meu amigo... aquele ponta-esquerda é o cão do segundo livro, recebeu dez bolas e cruzou todas dez na cabeça dos atacantes".
Fala-se no “cão chupando manga”, “cão chupando pena”, fala-se até no “raio da silibrina”, mas a discussão mais interessante é sobre a origem do “cão do segundo livro”.
Minha primeira impressão foi de que o Cão seria o Diabo, e que o segundo livro seria o Novo Testamento. O tal termo de comparação seria portanto aquele Diabo melífluo e insidioso que leva Jesus lá em cima da montanha e diz: “Tudo isto será teu, se prostrado me adorares”, ao que Jesus responde, em aramaico: “Vôte, capirôto!”.
No Blog “Gandavos – Os contadores de histórias”, de Carlos Lopes (http://tinyurl.com/d9hnxld), discute-se a origem do termo. Um texto de Augusto Sampaio Angelim naquele blog, reproduzindo uma imagem da carta “O Diabo”, do Tarô, diz:
“Usava-se a expressão ‘o cão do segundo livro’ em dois sentidos. Um de conotação negativa, quando se queria dizer que o indivíduo era ruim, feio ou horrível. Outro, positivamente, para identificar alguém como o melhor da turma, o melhor jogador, o mais astuto, o “tampa”, etc...”
E o autor afirma que o poeta Soares Feitosa, no seu “Jornal de Poesia”, teria provado que a origem do termo era uma fábula moralista (em que o Diabo mergulha um rapaz no vício do álcool), que aparece no Segundo Livro de Leitura, de Felisberto de Carvalho, famoso livro didático que as gerações mais antigas estudaram na infância.
Essa informação coincide parcialmente com um artigo do pintor José Cláudio (Diário de Pernambuco, 23-2-1999), onde este também atribui a origem aos livros de Felisberto. Ele cita essa mesma imagem do Diabo do Tarô, mas com certo desdém, e afirma: “Cão, pra mim, é o do terceiro livro!”.
O Terceiro Livro de Leitura de Felisberto de Carvalho contém a imagem de um cão ameaçador. Esse artigo no DP reproduz ambas as ilustrações, do diabo e do cachorro, e de fato a imagem do cachorro é muito mais impressionante.
É curiosa esta hesitação entre os dois sentidos da palavra “cão” e o fato de dois livros do mesmo autor conterem ilustrações que podem ter dado origem ao termo. A menos (como sempre) que uma nova explicação apareça, engenhosa e plausibilíssima como costumam ser as explicações inventadas.
sexta-feira, 18 de novembro de 2011
2717) Armadilhas de hotel (18.11.2011)

Eu sou diferente da maioria das pessoas: adoro dormir em hotel. Muita gente se queixa da “impessoalidade” dos hotéis, mas é justamente disso que eu gosto. Gosto de ambientes impessoais, onde ninguém sabe quem eu sou, e posso ser tratado com a cortesia e a distância que se dedica a qualquer cliente, freguês, usuário. Hotel é a coisa mais democrática que existe. Ninguém está me tratando bem porque eu sou eu, está me tratando bem porque tem o compromisso de tratar bem qualquer hóspede. (Estou falando dos bons hotéis, é claro. Que são muitos.)
Mas hotel é um lugar perigoso danado. Uma vez, eu estava fora do Brasil, sozinho, e saí para tomar umas cervejas. Ao retornar para o hotel de madrugada resolvi tomar um banho. Era uma daquelas banheiras de chão recurvo, e quando isso se juntou com o sabonete e a espuma do xampu, não precisou nem o efeito da cerveja para me fazer escorregar e cair com toda força. Sofri uma fratura no crânio e meu corpo só foi encontrado na manhã seguinte, quando a arrumadeira passou no corredor e viu a água saindo por baixo da porta do quarto. (Brincadeira: só fiz machucar o ombro, mas imaginem a perda que a Literatura Brasileira por um triz não sofreu!)
Outra armadilha de hotel, onde muita gente já se deu mal, é a tal da água aquecida. Parece que existe um “boiler” central no porão, que ferve a água e a distribui pelos encanamentos na direção dos quartos. (Lembram-se do “boiler” de que Jack Torrance tinha que cuidar, em “O Iluminado” de Stephen King?) A gente liga a água fria, e depois vai temperando com a água quente. Já vi notícias de jornal sobre gente que se atrapalhou (senhoras idosas, a maioria delas), ligou somente a torneira de água quente e postou-se embaixo. Amigos, aquilo desce fervendo. Altamente desaconselhável.
Pior é quando a gente esquece de trancar a porta por dentro ou colocar o “Não Perturbe”. De manhã cedo a arrumadeira mete a mão na maçaneta e emburaca quarto adentro, empunhando balde e esfregão. Vai ver que foi isso que ocorreu com Dominique Strauss-Kahn, aquele garanhão de terceira idade do FMI, que abrecou uma camareira em Nova York. Até agora não sei se foi ela que caiu na armadilha dele ou ele que caiu na armadilha dela – pense numa dupla de raposas!
Hotel de serial killer (o Bates Motel de Psicose). Hotel de onde não se consegue sair (“Hotel California”). Hotel povoado de fantasmas residuais (o “Hotel Avenida” de Drummond). Hotel transtemporal onde os universos paralelos se entrelaçam (Ano Passado em Marienbad). Todo hotel é uma área de superposição de destinos humanos, um máximo de linhas-de-tempo individuais por metro quadrado.
quinta-feira, 17 de novembro de 2011
2716) Getúlio, Jânio, Tancredo (17.11.2011)
A política é um gigantesco mecanismo coletivo que repousa, com um peso às vezes injusto, em cima de indivíduos.
É possível prever em linhas gerais o desenrolar e o desfecho de campanhas eleitorais, campanhas de oposição, movimentos de massa pacíficos (“Primavera Árabe”, etc.) ou armados. Nunca se pode saber, porém, como os indivíduos vão reagir àquilo, por mais que os conheçamos.
Um indivíduo é um “x”, uma incógnita, uma variável escorregadia que já nos deu (e nos dará) muitos dribles.
Ano: 1954. Getúlio Vargas é o homem mais idolatrado e mais perseguido do país. Ninguém já teve tanto poder popular quanto ele, por tanto tempo. (Não comparem com D. Pedro II; era outro Brasil.) Perseguido pela oposição e pela imprensa, acusado de corrupção, de ordenar assassinatos, de mergulhar num “mar de lama”.
Imaginava-se que Getúlio fosse capaz de prender, arrebentar, dar outro golpe de Estado, renunciar, vingar-se, pendurar as chuteiras... Fez o que ninguém imaginava: deu um tiro no peito e mudou a História.
Ano: 1961. Jânio Quadros era um político estabanado e veemente, com um discurso moralizante que agradou muito à classe média conservadora e cristã. No poder, fez avanços surpreendentes e teve uma porção de atitudes de Odorico Paraguaçu. Ninguém sabia o que ele faria no dia seguinte; ele próprio parecia não entender o que tinha feito na véspera.
O Brasil apertou o cinto de segurança e preparou-se para quatro anos de turbulência. Com menos de oito meses de governo, Jânio fez o impensável: renunciou. Por quê? Não se sabe. Temos 735 teorias, o que equivale a não ter nenhuma.
Ano: 1985. Eleito presidente pelo Colégio Eleitoral, Tancredo Neves foi um improvável ponto de convergência entre direita, centro, esquerda, conservadores, liberais, o escambau – todos concordaram em que naquele momento ele era a melhor pessoa para assumir o leme do barco.
Uma euforia juvenil fervilhava nas ruas. Depois da derrota do “Diretas Já”, a eleição de Tancredo era uma saborosa vingança. Na véspera da posse, a TV anunciou que o futuro presidente não seria empossado: sofreria uma cirurgia de emergência no hospital de Base de Brasília.
Quem esperava por essa? Ninguém. Nem mesmo José Sarney, que tomou posse no lugar do presidente eleito.
Isto é a política, isto é a História, isto é a vida. Podemos calcular a trajetória dos grandes movimentos sociais. Mas vemos os indivíduos com a incerteza do físico que tenta calcular a velocidade e a posição de uma partícula subatômica.
Na História, o indivíduo não é importante por ser grandioso, genial ou heróico, e sim porque é nele que giram as dobradiças do Imprevisível.
2715) Uma doença nova (16.11.2011)

O mundo anda muito louco, só está faltando sair num jornal da Austrália que Philip Buckley, um fazendeiro lá do “outback”, adquiriu uma estranha doença mental. Ele pronuncia duas vezes seguidas cada frase completa que diz, e parece não ter consciência disto. Por mais que os médicos comentem e façam perguntas a respeito ele parece não entender o que estão lhe perguntando e muda de assunto, dizendo algo como “ Pois é, pois é, ando muito cansado, ando muito cansado, aquele chá me dá sono, aquele chá me dá sono, boa noite, boa noite”.
Ou então o vigilante noturno de uma estação de trem na Sérvia, Piotr Danilovic. Ele sofre de um desequilíbrio aleatório no eixo visual. Durante uma conversa normal ele de repente começa a girar o torso como se o interlocutor estivesse caminhando à sua volta e ele quisesse ficar sempre de frente; e ao mesmo tempo seu corpo da cintura para baixo fica imóvel, o que faz o corpo parecer um parafuso. A maioria das pessoas dá a volta para poder falar com ele de frente, o que o faz girar de novo. Às vezes chega a ficar assim por meia hora, e conversando normalmente, fumando um cigarro, descontraidamente, como se nada excepcional estivesse acontecendo.
Suponhamos, também, a existência de Rosa d’Amico, uma dona de casa numa vila da Itália atingida por uma inundação. A enxurrada arrastou todos os móveis e pertences que havia na sua casa, entrando pela porta da frente e saindo pela dos fundos. Depois que a água baixou, contudo, ela voltou para casa e continuou movimentando-se normalmente, como se cozinhasse, arrumasse, dormisse, etc., mesmo com a casa sem móveis e toda enlameada. Move as mãos como se estivesse manipulando os objetos costumeiros. Os vizinhos a retiram, e ela dá um jeito de voltar, protestando.
Aqui no Brasil não poderia deixar de ser o caso de um adolescente de boa família, de Copacabana, que tem o hábito de entrar por uma porta qualquer se vir que está aberta. Entra nos apartamentos do seu prédio, em lojas, em residências. Se entra numa residência senta na sala, puxa uma revista da mochila e fica lendo. Quando as pessoas o enxotam, ele pede desculpa, sai, e entra na próxima porta aberta que encontra. Assim como os outros, não fala a respeito com os médicos; no máximo diz que não pretendia incomodar ninguém, estava apenas querendo sentar um pouco, ou fugir da chuva, etc. Quando os pais lhe perguntam de onde veio essa mania esquisita, ele responde apenas: “Eu não me acho mais esquisito do que a maioria das pessoas. Eu sou normal. Todo mundo é normal. Todo mundo é esquisito. Estou aqui na casa de vocês há quinze anos e vocês ainda não chamaram a polícia”.
Assinar:
Postagens (Atom)