quarta-feira, 26 de outubro de 2011

2697) O leitor recalcitrante (26.10.2011)




Uma obra literária é um conjunto de imagens, idéias e emoções que brotam na mente de uma pessoa à medida que ela lê um texto. 

Por comodidade, dizemos que a obra literária é o texto em si, mas cada pessoa extrai daquele texto uma experiência distinta, formatada pela sua personalidade, seu conhecimento literário, etc. 

O texto é sempre o mesmo, mas sempre produz leituras (isto é, obras literárias) diferentes.

Essa experiência só acontece se o leitor se entregar a ela. Entregar-se a ela não é perder o senso crítico, não é aceitar passivamente tudo que o autor diz, mas é ter boa vontade, querer participar de um jogo jogado meio-a-meio, cada um dando sua colaboração para que o romance possa acontecer. Se o cara não quer participar disso, pra que diabo abre um livro?

Coleridge dizia que a literatura fantástica só funciona se o leitor proceder a uma “voluntária suspensão da descrença”, ou seja, deixar de lado o seu ceticismo, a sua convicção sobre a inexistência de vampiros, extraterrestres, etc., e disser: “OK, faz de conta que isso existe; qual é a história que você vai me contar?”. 

Eu diria que essa suspensão da descrença é igualmente necessária para a gente ler Gabriela, Cravo e Canela, ou até para assistir a novela das 8. Porque a gente sabe que tudo aquilo é invenção, é encenação, são atores pagos para recitar frases redigidas por terceiros.

Ora, existe na literatura um tipo de leitor que eu chamo o Leitor Recalcitrante, que é aquele que desde a primeira linha toma uma atitude hostil ou desconfiada. Fica perguntando mentalmente ao autor: 

"Ah, é? Quem disse que é assim? Por que você está me dizendo isto? Por que esse detalhe não está bem explicado? Para que serve isso? Por que esse personagem se chama Fulano?” 

E assim por diante. É um leitor cabreiro, sempre com o pé atrás, sempre pronto a descobrir um erro do autor ou a se queixar de que o autor não deixou claro um detalhe. Se o autor cita Fulano ou Sicrano, o leitor recalcitrante se encrespa: 

“Ôi, e eu tenho obrigação de ter lido Fulano? Pra ler esse livro aqui preciso ter lido quantos, antes?”.

O Leitor Recalcitrante não é um leitor crítico, não é nem sequer um leitor hiper-crítico, porque mesmo estes são capazes de mergulhar num texto com prazer e abandono, depois que suas exigências iniciais são correspondidas. (Críticos literários muitas vezes são assim.) 

O Recalcitrante se alterna em momentos de baixa estima (“Eu não consigo entender esse livro, está além da minha capacidade”) e de arrogância (“Não vou perder meu tempo, esse cara pode ser famoso mas não sabe escrever”). É um leitor que não sabe abrir a porta e sair pra brincar.






terça-feira, 25 de outubro de 2011

2696) Severino Marinho (25.10.2011)




(Marinho e D. Lurdinha)

Recebi a notícia do falecimento de Severino Marinho Leite, e me vejo mais uma vez, nas últimas semanas, diante dessa missão impossível: dizer o que uma pessoa representou em algum momento da nossa vida. Uma morte é um desses momentos que nos deixam sem saber o que dizer. Não porque não haja coisa alguma a ser dita, pelo contrário. De repente há uma vida inteira, milhões de coisas para serem ditas. Pode-se começar por qualquer ponto e prosseguir indefinidamente; esse excesso de caminhos acaba por nos condenar à imobilidade.

Marinho foi um dos grandes amigos do meu pai, e em muitos momentos foi uma espécie de anjo da guarda que orientava nossa família em situações difíceis. Uma vez, quando Seu Nilo estava meio enfarruscado com a vida, por causa de projetos que não andavam pra frente, alguém lhe perguntou se ele não tinha amigos, e ele disse: “Tenho, sim: Severinos Marinhos Leites”. Não o disse certamente para menosprezar os outros; mas sem dúvida porque naquele momento era Marinho o único capaz de ajeitar os óculos dourados de lentes verdes, passar a mão pelo cabelo e dizer: “Calma, Nilo, isso vai se arranjar, vamos analisar o problema”.

Não vou insistir apenas na minha perda pessoal. Melhor dizer logo que a perda de Campina Grande foi muito maior do que a minha. Não apenas pelo cidadão, mas porque Marinho foi o torcedor-símbolo do Treze, o homem que manteve ao longo de seus mais de 80 anos de vida o registro permanente dos jogos do Galo (jogo, data, local, placar, autores dos gols, escalação do Treze). Quantos times brasileiros podem se gabar de um torcedor assim? Em 1975 quando fizemos, sob a orquestração de Hélio Soares e do presidente Zé Agra, a revista do cinquentenário do Galo, foi dos arquivos de Marinho que extraímos as estatísticas de todos os resultados do Galo naqueles cinquenta anos. O mesmo com Mário Vinícius ao compor seu livro monumental sobre a história do alvinegro.

Uma bela lembrança que guardo, do meu tempo de garoto, é de uma viagem noturna ao Recife, quando ele e meu pai me levaram de carro para ver um torneio na Ilha do Retiro, que teve na preliminar Náutico x Palmeiras (a única vez em que vi Djalma Santos jogar) e na principal Sport x Corinthians. Estudei no Alfredo Dantas com seus filhos Marcos e Fernando. Depois tornei-me amigo de sua filha Cida Lobo, que foi há pouco tempo sub-secretária de Cultura do Estado. Marinho era para mim uma figura paterna, um pai mais jovem e mais comedido, levemente brincalhão e sempre sereno. O Treze que ele tanto amou deu-lhe alegrias nos últimos tempos. A cidade que ele defendia cresceu tanto que hoje nem percebe o quanto sente sua falta.

domingo, 23 de outubro de 2011

2695) O pintor de portas (23.10.2011)




Surgiu em nossa cidade um pintor especializado em portas. Cobrava muito caro, mas mesmo assim os candidatos a cliente faziam fila. Deixavam no escritório do “marchand” um documento contendo descrição e foto dos membros da família, e um texto de vinte linhas dizendo por que motivo queriam o quadro. Quando o artista escolhia a família, ela tinha que hospedá-lo durante o tempo necessário para que ele se familiarizasse com a casa, escolhesse o aposento e a parede, e pintasse ali a porta. 

Na casa do advogado Hrabel ele pintou no corredor uma porta feita de água verde do mar, um retângulo trêmulo e salgado onde se via às vezes passar como uma flecha um peixe arisco, ou flutuar uma água-viva. 

Na casa da família Yssahid, pintou na sala de jantar uma porta de carvalho maciço, coberto de musgo, com uma pesada aldraba de metal; mas suspensa a um palmo acima do piso, e numa inclinação de 30 graus. Era possível cerrar os dedos em torno da aldraba. 

No apartamento da viúva Tenmory, ele demorou quase dez dias para encontrar o lugar adequado, e foi preciso desmontar um armário para que naquela parede descolorida e arranhada ele produzisse uma porta esférica, que preenchia totalmente a abertura onde estava encaixada. Era possível usar as mãos para fazê-la girar, e cada movimento revelava formas e cores diferentes, distribuídas na superfície daquele globo de madeira; até mesmo palavras.

Seus sucessos se acumulavam. A porta vazia que pintou para a família Blinemuth; a porta narrativa que até hoje desconcerta os visitantes do mosteiro copta; as duas portas gêmeas e reversas no banheiro do usineiro Fargas. Para ter em casas essas obras merecedoras de contemplação e hipóteses valia a pena (segundo os clientes) suportar a presença do artista, cujas venetas pareciam mudar de acordo com a moradia onde se instalava. Soturno e arredio numa, impudente e ofensivo em outra; nesta, passava o dia deitado no tapete, bebendo vinho em silêncio e coçando os pés; naquela, devorava a biblioteca do dono, enquanto os pincéis e as tintas secavam, inúteis, sobre uma mesa de jantar de onde ninguém ousava aproximar-se. (Na minha casa, estranhamente, não demorou mais que meia hora, para executar às pressas uma porta no muro de pedra que dá para a rua, uma porta que só pode ser vista pelo lado de dentro.) 

Partiu um dia, após embolsar seu último pagamento. Deixou atrás de si polêmicas, contradições acaloradas, residências a cuja entrada se formam, ainda hoje, filas de turistas empunhando guias explicativos e câmaras de filmar; e essa coleção de passagens que não levam a lugar nenhum.





sábado, 22 de outubro de 2011

2694) O papel do crítico (22.10.2011)




(de Random Meanderings)

Um leitor indignado escreveu uma vez para Pauline Kael, a famosa crítica de cinema norte-americana, fazendo-lhe a tradicional pergunta: “Se você é tão segura a respeito de quando um filme é bom ou é ruim, por que não faz um?”. Ela respondeu que uma pessoa não precisa saber botar um ovo para poder dizer se um ovo frito está bom ou não. 

Existe um consenso difuso dentro do Clube dos Espectadores Irritados de que um crítico de cinema é um cara que tentou fazer cinema e não deu certo, ou que teve tanto medo que jamais tentou. Isso é tão injusto quanto imaginar que um espectador é um cara que quis ser crítico e não deu certo, etc etc.

Se um espectador pergunta a um crítico: “Quem é você para dizer que este filme é ruim?” o crítico tem todo o direito de perguntar de volta: “E quem é você para dizer que é bom?”. O direito do crítico é o mesmo de um espectador; os seus deveres é que são mais numerosos e mais sérios. 

O crítico pode ser aquele monstro horrendo de nossa época, o Especialista, o sujeito que dedica todas as horas de sua vida ao estudo de alguma coisa. Enquanto eu estou vendo futebol na TV, ele está estudando cinema. Enquanto eu tomo cerveja no boteco com os amigos, ele está estudando cinema. Enquanto eu escovo os dentes, penteio o cabelo, ele está estudando cinema. Quando eu e ele nos sentamos para discutir, ele me esmaga a cada frase como se fossem patas de elefantes: “Você sabe o que é diegético? Você já assistiu algum filme de Samuel Fuller? Você sabe a diferença entre um travelling e uma panorâmica? Você sabe qual é o clássico do cinema que está sendo citado na famosa sequência do varal de lençóis em Legendas de Krisnampur?” 

E assim por diante. Discutir com um Especialista é como jogar xadrez com um cara que tem onze damas, trinta torres, dezesseis bispos e noventa cavalos.

A função do crítico não se confunde com a do diretor; exigir que o crítico dirija um filme para ter o direito de criticar é o mesmo que exigir que um diretor escreva uma crítica para ter o direito de dirigir. 

Há pessoas que sabem olhar apenas o filme, o espetáculo. E há pessoas que sabem ver ao mesmo tempo o filme, a platéia e a cabine de projeção. Claro que ele pode ter a opção (se lhe convém) de se deixar arrebatar pelo filme, ver um filme primeiro como espectador e só depois como crítico; mas um “crítico” é quem sabe usar esses dois modos, e um “espectador” é quem só sabe usar um. 

Esta é uma das diferenças mais importantes, e o que às vezes irrita um espectador é perceber que está sendo considerado parcialmente cego, e que quem o considera assim tem mesmo razão.






sexta-feira, 21 de outubro de 2011

2693) Saul Steinberg (21.10.2011)


Eu tinha perdido no Rio de Janeiro esta exposição de desenhos de Saul Steinberg, As aventuras da linha, mas paguei essa dívida a mim mesmo indo vê-la na Pinacoteca de São Paulo. 

Quando estou sacolejando num metrô ou num ônibus rumo a um museu fico me perguntando por que diabo me dou esse trabalho todo na era da Internet, quando basta clicar um “abre-te sésamo” qualquer para que tudo apareça pixelando em nosso monitor. 

Uma das respostas possíveis, no presente caso, é que nenhum monitor pode dar uma sensação equivalente a ver uma faixa de papel com quatro metros de comprimento em que Steinberg traça uma linha horizontal e a vai recheando e rodeando de imagens, como numa imensa Tapeçaria de Bayeux que se desenrola diante dos nossos olhos. 

A faixa começa com o desenho de uma mão que empunha a caneta e traça essa linha horizontal que sucessivamente se torna o chão de um desenho, o céu de outro, o horizonte de outro, a linha do mar em mais um, uma balaustrada, um meio-fio, sempre a mesma linha que corre horizontalmente e é cooptada por uma série de imagens, cada uma dando a ela uma leitura diferente. 

Esta é apenas uma das muitas magias do Rei do Traço, o romeno que por ser judeu teve que fugir da Europa e buscar refúgio nos EUA, onde se tornou um dos mais famosos ilustradores e capistas da revista The New Yorker

Conheci o trabalho dele nos anos iniciais do Pasquim, quando Millor Fernandes, Ziraldo e outros reproduziam seus desenhos e entoavam alalaôs ao mestre. Mestre deles, virou mestre meu também; mesmo quem não é desenhista pode absorver da linha enxuta de Steinberg alguma coisa para sua escrita, assim como um músico pode lucrar o mesmo para o seu piano (eu diria que foi o caso de Erik Satie, se um não fosse tão anterior ao outro) e até um jogador de futebol pode usar algo em seu trato com a bola. (Eu diria que Sócrates, Zidane e Paulo Henrique Ganso têm momentos verdadeiramente steinberguianos.) 

A exposição em SP traz numerosos exemplos das famosas séries em que Steinberg pega um tema (um cowboy; uma perua; uma passeata; um gato; um casal; um casaco de peles) e o reproduz incansavelmente, cada exemplo com um tracejado diferente que sugere diferentes interpretações visuais, leituras críticas, piscadelas irônicas, citações rebuscadas, ou apenas (e sempre) o mero prazer de desenhar. 

Vi na exposição montes de crianças, acompanhadas pela professoras, deitadas no chão da Pinacoteca, lápis e bloquinho na mão, copiando, imitando, parodiando e distorcendo os desenhos do mestre. E vivendo na idade certa a descoberta do prazer de desenhar, um reino onde as possibilidades, como sempre, são infinitas.




2692) O Espaço Selvagem (20.10.2011)





Um tema que a ficção científica brasileira tem cultivado, sem nenhum planejamento ou esforço coordenado, é o que poderíamos chamar de Espaço Selvagem, o espaço do vasto interior brasileiro, o Brasil profundo que ainda não foi descoberto e que pode guardar para a humanidade variados tipos de surpresa. 

Não é uma novidade no gênero, porque os ingleses (H. Rider Haggard, principalmente) inventaram o gênero dos Reinos Perdidos na Floresta. Os romances brasileiros, no entanto, não nos interessam por terem inventado um gênero novo, mas por terem utilizado uma fórmula européia para refletir sobre o Brasil.

Menotti Del Picchia escreveu dois romances fundamentais desse ciclo, A República 3.000” (ou A Filha do Inca, 1930) e Kalum, o mistério do sertão (1936). 
Jerônymo Monteiro, um dos pais da FC brasileira, publicou em 1934 A Cidade Perdida e em 1949 A Serpente de Bronze, onde aparecem os atlantes. 

O mito de Atlântida retorna em Os Bruxos do Morro Maldito e os Filhos de Sumé de Agostinho Minicucci (1992), e é ressuscitado na Paraíba (mais especificamente, na Pedra do Ingá) no poema épico A Atlântida de Amílcar Quintella Jr. (1957)

Descendentes do império inca também aparecem em A Amazônia misteriosa de Gastão Cruls (1925) e em A Clã Perdida dos Incas de O. B. R. Diamor (1958). Herberto Salles é um caso curioso de romancista regional (Cascalho, 1944) que depois se voltou para a FC com romances como O fruto do vosso ventre (1984) e A porta de chifres (1986), romances ambientados no interior, num contexto de apocalipse ecológico. 

Em épocas mais recentes, Roberto de Sousa Causo tem feito da Amazônia o cenário de seus “thrillers” militares futuristas, como Terra Verde (2000), O Par: uma novela amazônica (2001), etc. Cristovam Buarque, em Os Deuses Subterrâneos (1994), explora uma civilização no subsolo do Planalto Central.

A Amazônia e os cerrados do Centro-Oeste são os cenários preferenciais desses romances, é é curioso notar que a Atlântida e os Incas são frequentemente citados. É como se no Brasil, pela sua extensão e pela inacessibilidade de seu interior, essas civilizações estivessem tendo uma sobrevida. (Algo parecido com o que Conan Doyle imaginou em O Mundo Perdido: que no Brasil haveria um platô onde os dinossauros ainda existiam.) 

Não é exclusividade do Brasil a existência de um Espaço Selvagem literário; o que diferencia nossas histórias das demais é a variedade de paisagens físicas e geológicas, a proximidade histórica e geográfica com os Incas e a Atlântida, etc. São as fagulhas literárias do choque tectônico, ainda em pleno curso, entre a Europa e a América.




quinta-feira, 20 de outubro de 2011

2691) O ouvinte secreto (19.10.2011)




(detalhe do manto do rei Prempeh)

Esta história está contada com detalhes, e belas ilustrações, por David Apatoff, no saite “IllustrationArt” (http://bit.ly/po6IvV). Quando os ingleses derrubaram o império Ashanti, na África, impuseram ao rei derrotado uma série de condições humilhantes. Um dos oficiais ingleses era o coronel Baden-Powell (cujo nome foi herdado pelo violonista brasileiro). Em suas memórias, Powell conta: “Aquilo foi um grande golpe para o orgulho e a auto-estima dos Ashanti. Após a derrota, veio a exigência de pagamento de indenizações pela guerra. O rei Prempeh constatou que poderia dar aos ingleses apenas a vigésima parte do que lhe foi exigido, e recebeu a notícia de que seria levado prisioneiro, junto com sua mãe e seus chefes tribais”. Prempeh entregou-se, foi preso; os soldados ingleses saquearam e incendiaram seu palácio.

Nos últimos dias antes de se entregar, Prempeh mandou bordar um manto de rendição, medindo cerca de 2 metros por 3, coberto com símbolos gráficos ilustrando a cultura e a história do seu povo. O manto foi bordado em quadrados, com ideogramas simbolizando as lendas, provérbios e histórias dos Ashanti. Um padrão de círculos concêntricos, p.ex., simboliza o rei cercado por seus ancestrais, guerreiros e espíritos protetores. Um padrão chamado “pé de galinha” se refere ao provérbio Ashanti “uma galinha caminha sobre os pintinhos mas não os mata”, referindo-se ao rei poderoso que não esmaga seus súditos. Outro padrão em espiral, chamado “chifre de carneiro”, alude ao provérbio “a bravura de um carneiro vem de seu coração, não de seus chifres”.

Os ingleses não entenderam o significado do manto, mas um soldado apossou-se dele após a cerimônia, e levou-o consigo. Ele está hoje no museu da Smithsonian Institution, em Washington. Em seu blog, David Apatoff tenta adivinhar a função que esse manto poderia ter desempenhado, e comenta:

“Por que motivo Prempeh se daria o trabalho de criar uma obra de arte cuja mensagem não seria compreendida? Uma resposta possível é que as pessoas recorrem à arte quando nada mais lhes resta, e quando nossos sentidos não conseguem reproduzir o mundo de uma maneira suportável. O poeta Schlegel disse: ‘Através do ruído da vida – este sonho multicor – nossas canções são cantadas para um ouvinte secreto’. Muitas obras de arte são criadas assim, como uma mensagem numa garrafa, para que um dia possam chegar até esse ouvinte secreto capaz de entender o que nos aconteceu. O império Ashanti, com sua rica tradição, deixou de existir naquele dia, mas o manto de Prempeh serviu para que uma parte daquela cultura sobrevivesse e alguém ficasse sabendo que ela existiu”.




2690) Profissional vs Amador (18.10.2011)



(foto: Yanik Chauvin)

Foi uma dessas semi-gafes em que sou especialista. A gafe é involuntária, é quando a gente paga um mico, mas agindo com a maior inocência. A semi-gafe é quando a gente pensa “se eu fizer isso vai ser uma saia-justa danada”, mas faz assim mesmo. Faz uns quinze anos, eu estava em São Paulo numa reunião cultural qualquer. Um cara colocou na minha mão uma revista enorme, em papel cuchê, a cores, com uma programação gráfica de cair o queixo, e disse: “É o número 1 da revista que estamos lançando, tem os melhores fotógrafos, os melhores ensaístas...” Folheei, fiquei de queixo caído; vi no índice os nomes de colaboradores dos mais ilustres, uma galera que abrangia desde catedráticos da USP até poetas independentes do Bexiga. Elogiei, o cara disse: “Pois é, nosso esforço foi para fazer uma revista literária de nível profissional, e acho que conseguimos. Você poderia nos mandar uma colaboração?” Perguntei quanto eles pagavam por um artigo. O rapaz pigarreou, ajeitou o nó da gravata: “Olha, como nós estamos ainda começando, essa questão da remuneração dos colaboradores ficou para mais adiante, quando a revista estiver mais estruturada”. Eu devolvi o exemplar para ele e disse: “Sei como é. Então quando passar essa fase amadora, e começar a fase profissional da revista, quem sabe eu mando uma colaboração”. O cara deu uma risada, um tapinha nas minhas costas e nunca mais falou comigo.

Eu vejo por aí as pessoas usarem os termos “profissional” e “amador” de um modo totalmente inadequado. Para elas, profissional é tudo que é super bem feito, super competente; amador é tudo que é tosco, desajeitado, imaturo. Eu discordo e proponho a seguinte fórmula: profissional é todo trabalho que é pago, e amador é todo trabalho que é feito de graça. Em ambos os casos existem gradações que vão do mais sofisticado ao mais tosco. E nenhum de nós é totalmente profissional ou totalmente amador. Eu mesmo todos os dias me alterno entre trabalhos profissionais (como esta coluna, pela qual recebo um salário) e trabalhos amadores, que não me rendem um tostão, mas que eu faço por amor à arte, ou por amizade, por desfastio, por curiosidade, por qualquer outro motivo que não seja um depósito bancário.

Tem muito trabalho profissional que é labrojeiro – a gente chama um encanador pra ajeitar um vazamento e uma semana depois tem que chamar outro, porque o conserto ficou igual à cara de quem fez. E muitos catedráticos escrevem artigos amadores de alto nível, porque a USP lhes paga um belo dum salário e lhes permite escrever de graça para revistas onde o único profissional é o cara que embolsa os lucros.

domingo, 16 de outubro de 2011

2689) Já batemos no iceberg (16.10.2011)



Meu primo, que mora perto da proa, me confirmou por email. O choque com o iceberg foi em novembro do ano passado. Aqui, no Convés 18, sentimos o abalo em dezembro, e foi então que começaram os boatos. Em fevereiro, um comunicado do Capitão aos passageiros disse que estava tudo bem, mas a essa altura, apesar da censura na mídia interna, já havia um certo consenso de que algo tinha mesmo acontecido. Há cada vez mais migrantes afluindo para o meio do navio. Todos são obrigados a dar versões tranquilizadoras dos fatos e desculpas esfarrapadas sobre os motivos de sua mudança às pressas. Há uma corrente oficial de otimismo nas TVs, no sistema de rádio e de alto-falantes que só nos dão dados positivos sobre o percurso e as condições meteorológicas. Mas há também uma corrente subterrânea de rumores, de histórias contadas pela metade, de fotos e vídeos em baixa resolução mostrando situações dantescas, e nos levando a duvidar de nossa sanidade mental. Porque basta olhar em volta, como insistem os tripulantes, para constatar o sol brilhando, o céu azul, a coreografia plácida dos albatrozes e das gaivotas; para ver à noite as nuvens esparsas arrastadas pelo vento, a luz prateando o espelho das águas. Como acreditar nesses vídeos clandestinos dos migrantes da proa, mostrando o rombo cataclísmico no casco, as catadupas de água, os marujos em capas de plástico amarelo bombeando água para fora, em mangueiras maiores que sucuris? Como acreditar que andares inteiros do porão de carga já estão invadidos pelas águas, como crer nas fotos que mostram um rastro de automóveis e eletrodomésticos boiando à deriva nas ondas revoltas? Nem mesmo o pranto histérico dos que perderam parentes ou amigos nos convence, porque a própria histeria os deixa incoerentes, há detalhes que não batem, datas, nomes, fatos cujos relatos não coincidem. Mas todos os dias, enquanto nos douramos ao sol na piscina, basta que nos debrucemos para ver, centenas de metros abaixo, no tombadilho principal, a extensa fila de viajantes, com malas, caixotes e trouxas de pano à cabeça, nos postos de controle, solicitando passagem. Não vêm para ficar aqui, claro; estão em busca de abrigo nos territórios mais baratos (e nos compartimentos populares) na região da popa. Mas o mero fato de atravessarem nosso território nos contamina de inquietação. “Por que passam por aqui?”, murmurou hoje de manhã a Duquesa de Beauséjour, massageando as narinas. “Se querem ir para a popa, bem que podiam alugar botes e ir remando”. Concordei, bocejei, fiquei contemplando meu uísque onde boiava um indestrutível bloco de gelo.

sábado, 15 de outubro de 2011

2688) A palavra vexame (15.10.2011)



É uma palavra que já vi produzir mais de um mal-entendido entre nordestinos e sudestinos em geral. Para o pessoal do Sudeste, vexame é sinônimo de constrangimento, vergonha, situação desagradável e embaraçosa: 


“Passei o maior vexame ontem no Banco, um cheque meu voltou e tive que ir lá cobrir o valor”. 

Desse sentido se derivam várias palavras correlatas: 


“Fiquei muito vexado quando no meio da reunião o vice-presidente falou para todo mundo que estava esperando um relatório meu há uma semana e eu não tinha apresentado nada”; 


“É melhor resolvermos isto internamente, pois eu não quero ficar exposto a uma situação vexatória diante dos alunos”.

No Nordeste, contudo, vexame significa pressa, açodamento: “Deixe de vexame, que o ônibus só sai às três horas e ainda é meio-dia.” Estar vexado é estar com pressa: “Olhe, vamos deixar para discutir isso outra hora, eu estou muito vexado porque deixei o táxi esperando aqui na frente”.

Um exemplo interessante e talvez pouco notado está no poema “Os doentes”, de Augusto dos Anjos: 


“Do fundo do meu trágico destino,
onde a Resignação os braços cruza, 
saía, com o vexame de uma fusa, 
a mágoa gaguejada de um cretino.” 


Note-se que o sentido do verso de Augusto é: “com a velocidade de uma música executada em fusa”. Uma fusa é uma das menores subdivisões do tempo musical, indicando notas executadas com grande rapidez. É uma imagem análoga à que o poeta emprega em “Gemidos da Arte”, onde um pássaro salta de galho em galho “com a rapidez de uma semicolcheia”.

Vexar-se, no sentido de apressar-se, fazer algo às pressas, aparece também no folheto Romance do Pavão Misterioso, de João Melquíades Ferreira: 

“Logo no segundo dia 
Creusa saiu à janela
os fotógrafos se vexaram 

tirando o retrato dela 
quando inteirou uma hora 
desapareceu a donzela. 

"João Batista viu depois 
um retratista vendendo 
alguns retratos de Creusa 
vexou-se e foi dizendo: 
quando quer pelo retrato? 
porque comprá-lo pretendo."

“Avexar-se”, no sentido de “apressar-se” virou um desses termos que os cariocas consideram típicos dos nordestinos, tanto assim que se dirigem a eles, em tom brincalhão, dizendo: “Não se avexe não, bichim!”. A expressão, que pelo menos nos meus círculos linguísticos era de uso muito raro, voltou à evidência com a canção “A natureza das coisas”, composição de Accioly Neto gravada por vários cantores: “Se avexe não, que amanhã pode acontecer tudo, inclusive nada...” 

Note-se também que essa construção é tipicamente nordestina, dizer “Se avexe não” ao invés de “Não se avexe”. Detalhes assim são tão típicos da fala nordestina quanto o vocabulário propriamente dito.