sábado, 26 de fevereiro de 2011

2490) Drummond: “Poema do jornal” (26.2.2011)



A TV nos acostumou ao conceito de ver as coisas “ao vivo”. Copa do Mundo ao vivo era uma sensação, para quem antigamente escutava pelo rádio, e somente dias depois via as imagens (péssimas) na TV e tinha que esperar semanas ou meses pelo Canal 100. Mas a Internet nos acostumou ao conceito de “tempo real”, que é a mesma coisa, mas com uma distinção importante. A TV ao vivo dá uma sensação de imagem coletiva, compartilhada pelo mundo. A Internet em tempo real, por ser no computador, dá a sensação de que alguém está transmitindo aquilo só para mim. Lembro que na Guerra do Iraque, em 2003, passei uma madrugada inteira acordado, acompanhando no computador uma imagem “em tempo real” da invasão da cidade natal de Saddam Hussein, cujo nome agora me escapa. Num carro (ou num tanque?) a câmara percorria uma longa estrada, cruzava um portal, enfiava-se pelas ruas... E eu sem sono, acompanhando aquilo.

Um dos sintomas da Modernidade é a contemporaneidade com os fatos através da telecomunicação. O primeiro sinal disso na obra de Drummond é o “Poema do jornal”, do livro Alguma Poesia, onde essa idéia explode logo nas primeiras linhas: “O fato ainda não acabou de acontecer / e já a mão nervosa do repórter / o transforma em notícia”. Por um lado, é o triunfo da tecnologia, da capacidade de integrar as vidas pessoais à comunicação global. Por outro, é o conúbio duvidoso entre o crime e a notícia, porque a simultaneidade entre os dois é tão grande que desperta a nossa desconfiança. Se o sujeito estava tão presente ao fato, por que não o impediu? Continua Drummond: “O marido está matando a mulher. / A mulher ensangüentada grita. / Ladrões arrombam o cofre. / A polícia dissolve o meeting. / A pena escreve”.

Vejam que maravilhosos anacronismos, rupturas do espaçotempo. Os gerúndios se amontoam, tudo acontece no tempo presente: o crime, o grito, o arrombamento, e enquanto isto quem escreve não é o teclado do notebook, é “a pena”, a boa e velha pena abastecida em tinteiros do século 19. Modernidade e tempo-do-onça comem e bebem na mesma mesa, na poesia modernista. Será que Drummond escrevia com uma pena? Será que no tempo dele caneta-tinteiro era high-tech? (Aliás, vale registrar que o anglicismo “meeting”, na linguagem da época, era o que hoje chamamos de “manifestação” ou “ato público”).

O poeta encerra dizendo: “Vem da sala de linotipos a doce música mecânica”. Os linotipos, ao que parece, entraram em nossa imprensa por volta das décadas de 1880-90. Eram high-tech, quando “Alguma Poesia” foi impresso. Imagino que Drummond terá experimentado a mesma sensação que eu sentia aos 15 anos quando descia à oficina do jornal em que trabalhei e via aquelas máquinas imensas, sentia o cheiro de chumbo derretido, e escutava o estralejar contínuo das pequenas linhas-de-tipo sendo compostas. Aquilo era quase ficção científica; hoje seria, no máximo, uma nostalgia steampunk.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

2489) “O Discurso do Rei” (25.2.2011)



O arrastão do Oscar acaba me levando todo ano para ver alguns filmes que não me tirariam de casa em condições normais de temperatura e pressão. O que acaba sendo uma boa coisa, porque se deixarem um cinéfilo entregue ao seu próprio gosto ele vai se restringindo e se especializando cada vez mais. Em breve se limitará a ver somente um gênero, depois só um diretor, depois um único filme, depois uma única cena... Não, melhor deixar-se de vez em quando carregar pelo gosto alheio e dar uma checada no mundo lá fora.

O Discurso do Rei de Tom Hooper (diretor que nunca vi mais gordo) acaba sendo um exemplar agradável daquele gênero que Hollywood talvez tenha criado, O Antagonismo Inicial Que Resulta Em Amizade Profunda. O provável (e depois efetivo) Rei da Inglaterra, George VI, é gago. Como vai poder se dirigir ao seu povo, agora que inventaram o maldito rádio, onde o sujeito tem que falar ao vivo, não pode receber os benefícios de uma edição que suprima seus vacilos? (É curioso ver como os personagens de 1930 pronunciam com reverência e fascínio a palavra “wireless”, num tom que só retornaria com a Internet, 70 anos depois.) Ele contrata um especialista meio informal que é uma mistura de fonoaudiólogo, psicólogo e treinador de futebol. O especialista dá um sacode no Rei e deixa-o em condições de discursar.

Em termos de estilo e linguagem, é um filmão tão tradicional quanto os ambientes por onde circula: Palácio de Buckingham, Abadia de Westminster... Não sei se é fiel à “verdade histórica”, porque antes dele eu só conhecia os fatos muito por alto. O roteiro é cruel com o Rei Edward (que abdicou em favor de George) e com a desquitada norte-americana Wallis Simpson, pelo amor de quem ele renunciou ao trono. O retrato que o filme faz dela, especialmente, é de uma acidez impressionante. Tudo para contrapor melhor os temperamentos de Edward (expedito, resoluto, mas que baqueia diante de uma sirigaita) e de George (tímido, tartamudo, mas que se ergue à altura da situação quando necessário). Como dramaturgia emocional, funciona. A verdade histórica (seja lá qual for) acaba de ser recoberta por mais uma espessa camada de fantasia coletiva.

Colin Firth (o Rei) se sai muito bem, mas eu gosto mesmo é do ator Geoffrey Rush, com um personagem mais cheio de nuances do que o Rei, irreverente, pouco ortodoxo, mas também com suas limitações e pontos-cegos. Firth faz uma interpretação heróica de um personagem tecnicamente difícil (não é brincadeira gaguejar com espontaneidade, quando não se é gago) mas unidirecional. Rush pega um personagem que ninguém conhecia, ajudado por um roteiro perceptivo (a relação dele com a mulher e os filhos, mesmo pouco explorada, é bem interessante) e o enriquece. Nos filmes em que um especialista cura um problemático, em geral o especialista fica meio na sombra. É virtude do roteiro e de Rush que neste caso seja (pelo menos para mim) o contrário.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

2488) “O Retrato de Dorian Gray” (24.2.2011)



As sincronicidades são as rimas da vida real. Estão para ela assim como a simetria está para as artes visuais. No cinema temos dois tipos de rima. Podemos cortar entre imagens parecidas com idéias diferentes: em Viridiana, Buñuel corta de uma coroa de espinhos para um disco tocando na vitrola; em 2001 Kubrick corta de um osso flutuando no ar para uma nave flutuando no espaço. Ou podemos cortar entre imagens diferentes com idéias parecidas: Hitchcock corta de um casal na cama para um trem entrando num túnel.

Costumo ler livros e ver filmes sem planejamento, mas sem dúvida existe um impulso subterrâneo me levando a procurar obras que, quando justapostas, produzem uma fagulha. A fagulha do presente caso foi produzida pelo fato de, enquanto estou relendo O Médico e o Monstro de R. L. Stevenson ter assistido o DVD de O Retrato de Dorian Gray de Albert Lewin, adaptando o livro de Oscar Wilde. Estes dois textos são clássicos do romance fantástico vitoriano e são, por assim dizer, duas variações sobre o mesmo tema. Algo que poderia ser expresso no antigo slogan da série O Sombra, de Maxwell Grant: “Quem sabe o Mal que se oculta no coração do homem? O Sombra sabe”.

Em ambos os casos, um respeitável cidadão britânico mantém uma fachada de indivíduo exemplar enquanto se dedica a prazeres indescritíveis e crimes imperdoáveis. No livro de Stevenson, ele o consegue através de uma poção que o transforma fisicamente em outra pessoa, um corpo físico que corresponde a uma parte de sua mente onde habitam os “baixos instintos”. No de Wilde, essa divisão é simbólica: Dorian Gray pratica os piores excessos e ao longo dos anos permanece jovem e belo como sempre, ao passo que é seu retrato quem envelhece e decai. Há certamente outras obras com perfil semelhante, mas eu diria que, principalmente no mundo de língua inglesa, estas duas novelas tão curtas criaram o padrão para as histórias de dualidade entre virtude aparente e pecado oculto.

Somos tentados a dizer que isso é a cara da Londres vitoriana, mas os exemplos contemporâneos mostram que a coisa vai mais longe. Talvez os mais conhecidos sejam Psicopata Americano (livro de Bret Easton Ellis, filme de Mary Harron) e Clube da Luta (livro de Chuck Palahniuck, filme de David Fincher). Em ambos, um sujeito extremamente comum e enquadrado no mundo corporativo desenvolve uma segunda personalidade agressiva, sádica e impossível de controlar, um “monstro do Id”, instinto puro, auto-gratificação pura. Nestas obras ficamos sabendo em detalhe quais os atos escabrosos praticados pelos modernos Dr. Jekyll e Dorian Gray, atos que a discrição da época não permitia aos escritores mostrar de maneira gráfica, explícita. Ainda somos vitorianos. Mesmo na mais permissiva das sociedades, ainda existe espaço para a cisão da personalidade entre um “cidadão acima de qualquer suspeita” e um monstro – ou, como disse Olavo Bilac, “um demônio que ruge e um deus que chora”.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

2487) “A Mulher que Enganava a Lua” (23.2.2011)




Por obra e graça de Glauco Mattoso, que conhece minhas idiossincrasias literárias, chegou às minhas mãos este livro fora-de-esquadro, de autoria de A. Dari, publicado em São Paulo, 1984. 

A edição é avara em informações, mas a foto na quarta capa deve ser do autor – um sujeito de seus 30 e poucos anos, moreno claro, cabelo preto, nos fundos de uma casa ou apartamento, sorridente, abraçado a um cãozinho. 

Não li o romance ainda, que é uma espécie de ode ao “eterno feminino”, e se inicia com um preâmbulo laudatório, cujo primeiro parágrafo transcrevo a seguir:

“Revestida de uma divindade milenar, de natureza fugitiva e universalmente perseguida, a mulher, retilínea em suas atitudes, deixa-se flutuar em seu enigma, arrasta a sua existência a decantar a sua sensualidade e, ainda que as décadas ligeiras imprimam em suas faces as marcas indeléveis que inibem a vaidade, ela persiste em querer as ternuras pré-fabricadas”. 

Não pense o leitor que todo o livro é um prolongamento desse enunciado; há personagens, há ação, como neste trecho, colhido meio ao acaso, na página 79: 

“Às duas e dez daquela manhã cinzenta, apática e emburrada, peguei Kelvia pela cintura e a levei para visitar algumas vitrinas. Segui em curtas passadas pela Regent Street. Lembrei-me de que ali em 1978 eu vi a minha imagem refletida numa vitrina e atrás dela desfilava sem pressa Jadranka e sua secreta fantasia. Um minicab inquiriu: ‘Awaiting a taxi?’ Disse que preferia caminhar”.

Bom, se não percebeu ainda, aqui vai: A Mulher que Enganava a Lua é um livro escrito sob “contrainte”, sob uma limitação voluntariamente estabelecida pelo autor. No caso, é um livro em que não aparece a letra “O”. 

Eu sou fascinado por essas façanhas, e acho um prodígio que o sujeito faça um livro com (no presente caso) 141 páginas, onde o “O” não apareça uma vez sequer. Lembro o exemplo clássico de Georges Perec, que fez um livro (La Disparition, 1969) sem usar a letra “E”. 

Mas Perec e sua editora dão um migué, um drible de corpo, nas restrições. Na edição da Gallimard, que tenho em casa, o texto é impresso em tinta preta mas os “complementos” são impressos em vermelho, e neles aparecem o nome do autor e outros detalhes que não prescindem da letra E (como o nome do selo da editora, Denoël).

No livro brasileiro, amigo, a lei é jagunça. A letra O não aparece nem por decreto. Vejam estas informações técnicas: 

“A. Dari – C.P. 19.217 – S. P. – Capital – É vedada a réplica textual, parcial e integral, sem a prévia anuência de A. Dari – Aplicáveis as penas da lei – Printed in Brazil”. 

Cada informação destas é uma profissão de fé: “serei fiel à regra que criei...” Este é o verdadeiro espírito de quem escreve sob “contrainte”. Até Perec, em seu livro de 318 páginas, teve que fazer pequenas concessões! 

Glauco me avisa que o mesmo cara publicou um livro sem a letra “A”, que já comecei a caçar. O único problema é saber como o autor conseguiu assiná-lo.






terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

2486) O sonho de Sun Tzu (22.2.2011)



(desenho de Cavani Rosas)

É uma minimalista fábula chinesa que Jorge Luís Borges cita em numerosos ensaios. Na sua Antologia da Literatura Fantástica ele a transcreve por inteiro: “Sun Tzu sonhou que era uma borboleta. Ao despertar, ignorava se era Sun Tzu que havia sonhado que era uma borboleta ou se era uma borboleta que estava sonhando que era Sun Tzu”. O tema do Duplo ganha nessa fábula (e em todas as narrativas que se assemelham a ela) uma reviravolta sempre eficaz quando se trata de contar histórias. Não se trata mais de dizer que Fulano, “A”, descobre a existência de Sicrano, “B”, que é seu sósia, ou seu reflexo, etc. É que a partir de certo ponto começamos a pensar que quem existe de fato é B, sendo A um involuntário impostor, uma sombra pensante.

Philip K. Dick escreveu um dos mais esquizofrênicos livros da FC em A Scanner Darkly, traduzido aqui como O Homem Duplo (e adaptado para o cinema por Richard Linklater sob o mesmo título – é aquele filme em forma de desenhos, com Keanu Reeves, ao estilo de A Waking Life, do mesmo diretor). Nele, um agente da polícia investiga uma casa onde vivem uns malucos que tomam drogas sem parar. Acontece que o policial e o maluco que é dono da casa são a mesma pessoa, e não sabem. Quando ele está dentro de casa, é o drogado. Quando sai, vai para a delegacia, veste seu uniforme, e volta para espionar a própria casa onde mora. Ele não sabe se é um maluco vigiado por um policial ou se é um policial que vigia um maluco. E na verdade é os dois.

No clássico O Médico e o Monstro, R. L. Stevenson conta a história do respeitável Dr. Jekyll, que fabrica em seu laboratório uma droga que o transforma (física e psicologicamente) em Mr. Hyde, um criminoso sádico e sem escrúpulos. Com o tempo, a personalidade de Hyde ganha tal força que começa a substituir o corpo e a mente de Jekyll sem o uso da droga; o doutor adormece como ele mesmo e acorda como Hyde. Hyde prevalece, e eclipsa o doutor Jekyll. Mas, como a polícia está atrás do criminoso, passa a ser este quem começa a tomar a droga, para se transformar em Jekyll e evitar ser descoberto.

O confronto com o Duplo tem esses dois momentos: a sensação de estar diante de um Outro que sou Eu Mesmo. Eu me vejo (de forma repelente, incômoda, ameaçadora) no Outro. Ele é igual a mim mas é um reflexo distorcido de mim, ele é o Estranho, o Estrangeiro, o Diferente, o Alheio, o Alienígena, apesar de ser “igual” a mim. E em seguida há outro momento de terror, que é quando eu percebo que estou olhando para mim mesmo com os olhos do Outro, eu me transferi para o Outro. O horror dessa situação foi explorado de maneira magistral por Julio Cortázar em contos como “Axolotl”, “A noite de rosto para cima” (no livro Final do jogo), em que o protagonista, por assim dizer, chega à conclusão de que sua vida era uma ilusão e que ele não passa de uma borboleta sonhando que era um filósofo.

2485) O fim do livro (20.2.2011)




Já comentei aqui (20 de janeiro) Não contem com o fim do livro, uma recolha de diálogos entre Umberto Eco e Jean-Claude Carrière, os quais discorrem sobre o incêndio de bibliotecas, a destruição de livros por ditadores e censores, a obsolescência dos meios de registro, o mero esquecimento. 

Carrière observa que a Biblioteca Nacional da França, criada por volta de 1820, tem pelo menos dois milhões de livros que jamais foram consultados. Com o livro eletrônico, esse sintoma pode se agravar. 

Como vai ser possível preservar cada vez mais, porque não teremos o problema de espaço (a Biblioteca Nacional da França caberia num HD do tamanho da minha mesa), serão cada vez mais preservados os livros inúteis, os livros redundantes, os livros desinteressantes, os livros que ninguém quereria ler mesmo que soubesse de sua existência. Tiro isto por mim, que leio compulsivamente: 90% dos livros que existem não me interessam.

Mais ameaçador do que o livro eletrônico, contudo, é o neo-liberalismo editorial, ou capitalistalinismo. 

Estou agora enfiado nas páginas de O Negócio dos Livros – Como as grandes corporações decidem o que você lê (Casa da Palavra, 2006). O autor é André Schiffrin, ex-editor da Pantheon Books, que já foi uma das grandes (em qualidade) editoras dos EUA antes de ser fagocitada pelos conglomerados econômicos que estão, mais depressa do que qualquer engenhoca feita de pixels, promovendo a destruição do livro. 

Não do livro como artefato de folhas de papel impressas, mas do livro como meio de transmitir idéias.

A bibliodiversidade (a pluralidade de idéias, de abordagens, de assuntos, de leituras e de leitores) é a própria natureza da cultura. O contrário de “cultura” é “monocultura”. Essas grandes corporações estão pegando a diversidade cultural, passando o trator por cima e transformando o mercado editorial num imenso campo de soja ou de cana-de-açúcar. 

É a lógica da maximização dos lucros através da uniformização dos produtos. Vender uma única coisa, produzida de uma única maneira, é mais rentável do que vender 400 coisas produzidas de 400 maneiras diferentes, mesmo que cada uma dessas 400 dê um pequeno lucro. Para a lógica de hoje, pequeno lucro é prejuízo. Já vi um neo-capitalista se queixando numa entrevista: “Se eu tinha um lucro anual de 200% e agora meu lucro caiu para 100%, é óbvio que tive na realidade um prejuízo de 50%”.

Hoje, cinco grandes conglomerados controlam 80% das vendas de livros nos EUA (Time-Warner, Disney, Viacom/CBS, Bertelsmann e News Corporation). Nenhum veio do meio editorial. 

São grupos de telecomunicações que estão comprando todas as editoras de livros, fechando as séries e coleções que dão pouco lucro, e transformando o livro num apêndice da telecomunicação. 

A ameaça não é o fim do livro de papel: é o fim do texto literário e crítico. Isso, sim, amigos, é de fazer perder o sono. O que é pior, um e-book com Shakespeare ou as memórias de Nancy Reagan num livro de papel?





2484) O Ulisses brasileiro (19.2.2011)



Joshua Cohen apontou Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa como sendo a nossa obra mais próxima do Ulisses de Joyce. Diz ele: 

“A intrincada e hipnótica história de Riobaldo, um fazendeiro idoso vivendo no interior do Brasil. A evocação feita por Rosa dos ritmos da fala, de suas repetições, e dos variados registros verbais faz de The Devil To Pay in the Backlands (título de tradução norte-americana, feita por Harriet de Onís) um exemplo de ponta do modernismo latino-americano. É também um dos poucos épicos da Modernidade – um movimento nascido nas cidades – a abordar a periferia, o interior selvagem”. 

Fico feliz que um escritor dos EUA conheça Rosa e o coloque em companhias tão ilustres quanto as que ele comenta (mas meu bairrismo inato me sussurra que Rosa é melhor do que todos os outros juntos). 

Mas a avaliação de Cohen sugere uma dúvida. Até que ponto é modernista uma obra tendo por cenário o sertão? E a própria linguagem de Rosa, que muitos críticos consideram barroca, pode ser considerada “moderna”? Pode ter sido apenas o impacto da tremenda originalidade que nos fez chamar de novíssima uma linguagem que era mais antiga do que todos nós, apenas nunca tinha sido registrada por escrito em escala tão desmedida. 

O impacto de Rosa foi modernizador por contraste. Trazendo à tona uma linguagem artificial, um misto de arcaísmos e neologismos, Rosa expôs o provincianismo mental e a timidez linguística até da nossa literatura urbana, que se supunha tão cosmopolita. 

A complexidade filosófica e narrativa do seu sertão botava no bolso muitos dos nossos autores de romances para costureirinhas, que posavam de figurões das letras. A comparação de Cohen entre o livro de Joyce e as obras de outros autores evoca, reiteradamente, a complexidade do mundo urbano, o surgimento de tecnologias de transporte e comunicação (automóvel, avião, cinema, fotografia, rádio, etc.), a crise de pessoas perdidas numa rápida substituição de valores. 

Isto está ausente da superfície do Grande Sertão, mas está presente na criação da mentalidade que produziu esse romance e seu autor. Rosa foi modernista ao quebrar o paradigma da literatura rural (descritiva, etnográfica, bem comportada, “costumbrista”) e por extensão o da literatura urbana, que, supondo-se mais afinada com o espírito do tempo, acabou sendo deixada para trás por um romance sertanejo. 

Marshall Berman usou uma imagem de Marx para seu livro sobre Modernismo: Tudo que é sólido desmancha no ar. O Modernismo é a ditadura do efêmero, do descartável, do que é construído hoje para ser destruído amanhã, do que (no verso de Caetano) “ainda é construção e já é ruína”. 

O romance de Rosa seria modernista não em sua temática (embora estudiosos como Willi Bolle vejam em sua estrutura profunda um registro da modernização-na-marra, econômica e política, do Brasil). Rosa desmanchou no ar a nossa idéia de um Sertão parado no tempo e de um passado imutável.









2483) O Oscar (18.2.2011)




Uma crítica que se faz aos filmes de vanguarda é que são filmes que só interessam a quem faz cinema. 

Filmes onde existe pouca história, pouca narrativa, pouco trabalho de ator, e a ênfase é toda na linguagem, ou melhor, na meta-linguagem, no exibicionismo do diretor através de suas imagens, seus cortes, seus movimentos de câmara. Até suas indisciplinas narrativas acabam sendo saudadas como inovação e assimiladas pelos diretores mais jovens. 

Isso ocorre em todas as artes, é claro. Quanto mais inventiva a linguagem de um autor, mais os outros autores (ou pretendentes a autor, ou críticos de gosto refinado) se apaixonam por ela. 

Um romancista como Proust, um pintor como Picasso, um músico como Stravinsky, todos eles são gurmês cozinhando para gurmês. Em inglês existe até uma construção frequente – chama-se a Fulano “a poet’s poet”, ou “a filmmaker’s filmmaker”, para dizer que é um poeta feito à medida para ser apreciado por outros poetas, ou um cineasta para ser visto por outros cineastas.

Eu diria que o cinema industrial também é assim, não é só o cinema de vanguarda. Todo espetáculo, toda produção industrial, tudo que envolva grandes recursos, grandes equipes, grandes problemas técnicos e grandes responsabilidades, tem um fascínio próprio, que é o desafio de fazer bem feito. 

Isso não tem nada a ver com Arte; tem a ver com profissionalismo, com artesanato (vá lá esse termo tão polêmico), com desempenho técnico. Isso está num comercial de TV, num desfile de modas, num treino de Fórmula 1. 

Há uma tarefa complexa e delicada a ser executada, e um erro pode custar muito caro. O desafio é executá-la com perfeição. Fazer isso com pouco dinheiro é difícil, com muito dinheiro é difícil também.

Isto explica por que motivo o Oscar, esse boneco tão superestimado, fascina tanto as pessoas que o criaram e que garantem sua fama, ou seja, os membros da famosa Academia de Hollywood. 

O Oscar não tem nada, rigorosamente nada a ver com a Arte cinematográfica como eu a entendo. É um prêmio técnico, concedido e votado por técnicos, e que premia a competência técnica. É um prêmio corporativo no bom sentido, porque as pessoas que o votam sabem o quanto é difícil criar um efeito especial, interpretar um personagem, inventar um cenário, pesquisar um figurino, bolar uma história original. A Arte é importante; mas isto que estou descrevendo também é, por que não?

O Oscar é um prêmio que ignora o lado transcendental da Arte e premia os “artesãos competentes”, que trabalharam duro e fizeram um filme dar certo. 

Premia o envolvimento emocional das pessoas, suas noites em claro, seus dias de sangue, suor e lágrimas, suas ausências da família. Premia seus anos de estudo e treinamento, sua paciência inesgotável para trabalhar em equipe correndo contra o relógio. 

As longas listas de nomes nos agradecimentos explicam o que é o Oscar. Não é um prêmio para os artistas, é um prêmio para os profissionais, e é só neste aspecto que tem valor.





2482) “O Rei e o Baião” (17.2.2011)



Livros sobre a vida e obra de Luiz Gonzaga existem muitos; desde pesquisas acadêmicas até memórias na primeira pessoa, redigidas por ghost-writers. Me atrevo a dizer que nenhum desses livros até agora conseguiu ser tão bonito quanto O Rei e o Baião, editado por Bené Fonteles (Brasília: Fundação Athos Bulcão, 2010). Não que a substância, o texto do livro seja algo para se descartar, pelo contrário; mas a preciosa iconografia do livro é a primeira coisa que bate no olho da gente. É quase como fazer um passeio por um dos muitos Museus Luiz Gonzaga que existem no Brasil, com o do guerreiro José Nobre, em Campina Grande.

Começo pelas fotografias de Gustavo Moura retratando aspectos do Sertão e do Cariri: caatingas, várzeas, vaqueiros, meninos, tocadores de fole. Os paraibanos já conhecem o trabalho de Gustavo, mas neste livro, suas fotos, justapostas à história de Gonzagão, enriquecem o poder de evocação das paisagens descritas nos versos. O mesmo vale para as séries de belas xilogravuras de José Lourenço, João Pedro do Juazeiro, Francorli e Carmen, além de outros gravadores (que contribuem uma xilo cada um). Como já falei nesta coluna, o cordel é, como a música de Gonzaga, a junção ideal entre o oral e o escrito, o primitivo e o tecnológico. Folheto impresso é como disco prensado. É o modernismo abrindo uma brecha para a passagem do dilúvio do popular, e pense numa brecha que jamais se fecha de novo.

Os ensaios de análise e crítica dariam um excelente livro só de textos, e são assinados por Gilberto Gil, Bené Fonteles, Antonio Risério, Elba Braga Ramalho, Gilmar de Carvalho, Sulamita Vieira e Hermano Vianna. E Bené, o idealizador e realizador do livro, fecha o volume com uma farta e minuciosa (a maior que já vi) iconografia gonzagueana, posta em contexto e comentada: fotos de juventude, fotos da carreira, dezenas de capas de discos, anúncios e “reclames”.

Meus leitores sabem que sou um sujeito contraditório. Vivo defendendo, nesta coluna, o barateamento do livro, as edições populares, os livros de bolso, a pulp fiction, o cordel, e mais recentemente os livros eletrônicos e as publicações internéticas – todos os formatos gráficos que multiplicam o texto literário e o deixam acessível a quem só tem centavos no bolso. Por outro lado, encanto-me com facilidade pelo livro primor-gráfico, o livro obra-de-arte. Como conciliar isto? Não sei. É um dos paradoxos do Brasil, o fato de que nossa faixa de compradores de livros se mantém sempre proporcionalmente a mesma, mas o mercado de livros de luxo não para de crescer. O Rei e o Baião é um livro que deveria ser espalhado pelas bibliotecas do país. Além de, depois, receber edições eletrônicas, em PDF ou formato semelhante, que o tornem mais acessível, porque os ouvintes de Luiz Gonzaga merecem ver uma homenagem tão bonita. Como prévia para o centenário de Seu Luiz, no ano que vem, não poderia haver coisa melhor.

2481) "A labareda que lambeu tudo” (16.2.2011)





(Caetano Veloso e Geneton Moraes Neto, em plena Era Paleozóica)

Este documentário idealizado e escrito por Geneton Moraes Neto (co-dirigido com Jorge Mansur) foi exibido pelo Canal Brasil, e talvez vire filme. Geneton é um dos melhores entrevistadores da TV Globo, embora a maior parte do seu tempo seja dedicada à edição-em-chefe de programas variados. Mas é um ex-cineclubista, um ex-superoitista, e ele próprio se questiona na primeira parte: “Será que não desperdicei com jornalismo um tempo que poderia ter dedicado ao cinema?”. 

O filme (ou programa, como queiram chamá-lo) é uma tentativa de acertar essas contas, e o faz com um tiro certo, misturando política, Tropicalismo e cinema novo. Geneton entrevista Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jards Macalé e Jorge Mautner, sobre o tempo em que viveram no exílio; mas o cinema entra por vias transversas, porque Glauber Rocha é uma presença constante nas lembranças de todos.

A primeira parte tem também Paulo César Peréio fazendo uma espécie de “alter ego” do diretor, recitando um texto em que ele explica a necessidade do filme e seu modo de concepção. As entrevistas se concentram no período em que os quatro músicos viveram no exílio. 

A identificação de Geneton com o Tropicalismo (e seu relacionamento de longo tempo com alguns dos entrevistados) o leva a conseguir tirar um novo leite de uma pedra já tão ordenhada. É divertido ouvir Caetano contar histórias de Glauber: como ele gostava de andar nu dentro de casa a qualquer hora do dia, ou de como conseguiu que Jean-Luc Godard escrevesse uma carta elogiando Caetano (sem conhecê-lo) para tentar livrá-lo da prisão. 

Gil descreve com detalhe o processo de criação da música “Cálice”, e Macalé conta história impagáveis, como a de quando, sob efeito do LSD, foi ver o Museu de Madame Tussaud e se apaixonou pela Branca de Neve, tendo que ser retirado aos prantos pelos amigos.

É de Macalé a frase que dá subtítulo ao filme (cujo título principal é Canções do Exílio), e que serve como metáfora da ditadura militar que “passou o rodo” na cultura brasileira. Na verdade, ele se refere ao calor carioca, que eles sentiram no momento em que, de volta ao Rio, a porta do avião se abriu e o calor entrou, dando aquela sensação de “finalmente cheguei em casa”. 

Geneton se pergunta (com a voz de Peréio) durante o filme: “Por que não fazer um filme com as pessoas simplesmente falando? Por que tudo tem que ser tão cortado, tão curto? Por que tem que se partir do princípío de que as pessoas não estão interessadas em coisa nenhuma?”.

Ver gente falando sobre assuntos que nos interessam ainda é um dos grandes trunfos da TV (e do cinema; e da Internet com seu YouTube e tudo o mais). É curioso ver essa discussão numa época de Big Brother, um programa que enclausura pessoas numa casa e precisa inventar gincanas imbecilizadas ou festinhas debilóides para dar-lhes algum assunto sobre que conversar. Parece haver um consenso de que é sempre interessante ver pessoas conversando. A diferença é apenas de repertório.