sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

2429) A pergunta boba (17.12.2010)



Todos nós, profissionais calejados, rimos quando vemos na TV a jovem repórter principiante (sim, minhas amigas, não é preconceito meu, mas geralmente é uma mulher) perguntando ao entrevistado famoso quem ele levaria para uma ilha deserta ou qual a sua cor favorita. 

São perguntas idiotas, mas no estreito mundinho mental em que ela foi forçada a viver, o das revistas-para-meninas e revistas-para-moças, essas perguntas são feitas com enorme frequência. Ela cresceu ouvindo-as e certamente imagina viver numa cultura em que não apenas todo mundo tem uma cor favorita, mas todo mundo se interessa em saber qual é a cor favorita dos outros.

Grande parte das perguntas feitas em entrevistas não são coisas que o público quer saber, e muito menos coisas que o jornalista quer perguntar. São perguntas que ele herdou. Perguntas que passam de geração em geração de repórteres, pelo simples fato de que é mais fácil usá-las de novo do que ter uma ideia nova. 

Além do mais, quem critica jornalistas não sabe o que é todo dia ter que encher aquela página que parece ter um hectare de superfície branca. Todo dia ter que reinventar o mundo a partir do zero. Todo dia ter que perguntar algo a desconhecidos, a alguém sobre quem o repórter leu meia lauda de informações colhidas às pressas, enquanto sobe no elevador para bater na porta do entrevistado.

Daí que muitas vezes o repórter faz uma pergunta besta e o entrevistado dá uma resposta áspera. Perguntaram a Nelson Rodrigues “que recado ele daria aos jovens”. Nelson jogou este paralelepípedo: “Envelheçam!”. Coitados dos jovens, que tiveram de obedecer-lhe a contragosto. 

O repórter (desta vez imagino que era um rapaz) certamente estava acostumado a entrevistar velhos cheios de conselhos e palavras de ordem.

Consta que alguém perguntou a Ariano Suassuna o que ele achava da Aids, e ele retrucou: “Prefiro Dostoiévski”. Menos mal para o entrevistador, que voltou para a redação com uma resposta pitoresca, ainda que revestida de um certo azedume. Ariano é o tipo do escritor que se irrita com a mania de se querer saber a opinião de um escritor sobre qualquer assunto, como se pelo fato de ser escritor ele tivesse obrigação de ter uma frasezinha espirituosa ou uma idéia revolucionária a respeito de qualquer tema.

Há autores que raramente dão entrevistas (Rubem Fonseca, Guimarães Rosa, etc). Não é por serem antipáticos ou misteriosos, é para não terem que dizer “onde encontram idéias para escrever tantos livros” ou “tipo, como foi que pintou essa coisa, assim, de escrever”. 

O problema não é a dificuldade de dar uma resposta, é o constrangimento de ter que escutar a pergunta. Perguntaram a Jorge Luis Borges o que faria se fosse nomeado Ministro da Economia da Argentina, e ele explicou: “Renunciaria”. Acho que é por isso que se perguntam tantas coisas, mesmo bobas, aos escritores. Eles só dão respostas pra lá de sensatas.





quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

2428) Mark Twain e a Internet (16.12.2010)




Uma diversão de quem mexe com ficção científica é tentar descobrir em textos antigos a menção a alguma coisa que não existia no tempo em que o texto foi escrito, e que pode ser interpretada como um vislumbre profético. 

Não que a função da FC seja predizer o futuro, assim como a função da literatura policial não é provar que o crime não compensa. Mas um escritor inteligente e bem informado é capaz de extrapolar o desenvolvimento ou as consequências futuras de algo que já existe no seu tempo.

No saite Cracked tomei conhecimento de um conto de Mark Twain que eu tinha (em The Science Fiction of Mark Twain, Archon Books, 1984, editado por David Ketterer) mas nunca lera. 

 O conto é “From the London Times of 1904” e foi publicado em 1898. A história, contada sob a forma de reportagem, é vista como uma prefiguração da Internet. 

Um homem, o Capitão Clayton, é acusado do assassinato de seu desafeto, o cientista Szczepanik, inventor do “telectroscópio”. Este invento, depois de demonstrado na Feira Mundial de Paris, em 1901, é conectado à rede telefônica mundial. Diz Twain: 

“Este sistema aperfeiçoado de telefone sem limite de distância foi introduzido, e assim os fatos diários de todo o planeta tornaram-se visíveis a qualquer pessoa, podendo ser comentados, também, por testemunhas separadas por qualquer número de léguas”.

Condenado à morte, Clayton pede para passar seus últimos dias observando o que se passa no resto do mundo através do telectroscópio. 

“A conexão foi feita com a estação telefônica internacional, e dia a dia, noite a noite, ele chamava um recanto do globo, depois outro, e observava sua vida, estudava suas estranhas paisagens, falava com seus habitantes, e percebia que graças a esse maravilhoso instrumento ele era quase tão livre quanto as aves no ar, mesmo prisioneiro por trás de cadeados e barras de ferro”. 

O desfecho da história é quando o condenado reconhece, num evento que está acontecendo em Pequim (a coroação do Czar da China!), a suposta vítima, Szczepanik, que tinha fugido à fama mudando de nome e de aparência; e tudo acaba bem.

A simultaneidade do processo é destacada por Twain, após o reconhecimento: 

“Um mensageiro levou a notícia a Szczepanik no pavilhão, e era possível ver a perplexidade em seu rosto enquanto escutava. Então ele veio até a outra extremidade da linha, e falou com Clayton e com o governador e os demais”.

Nada mau para quem escrevia em 1898, não é mesmo? 

O telefone era uma invenção recente, mas de rápida propagação nos EUA. Em 1890 cobria toda a Nova Inglaterra; em 1893 tinha alcançado Chicago, em 1897 Minnesota, Nebraska e Texas, e em 1904 cobria todo o continente. 

Twain reúne em seu conto despretensioso algumas ideias básicas, se não da Internet inteira, pelo menos do Skype: a malha telefônica, a transmissão de imagens e sons em tempo real, a possibilidade de visualização de cenas e de diálogo áudio-visual entre pontos remotos do globo.






quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

2427) Os monstros do colonialismo (15.12.2010)



(Marlon Brando interpretou no cinema tanto Moreau quanto Kurtz)

Ter lido num intervalo de alguns meses estes dois livros me mostrou o quanto são semelhantes em forma e substância, se bem que na maioria dos ensaios que consultei sobre cada um não vejo menção ao outro. Refiro-me a A Ilha do Dr. Moreau de H. G. Wells (1896) e O Coração das Trevas de Joseph Conrad (1899). O livro de Wells é uma novela de ficção científica com ressonâncias alegóricas; o de Conrad é uma novela realista com ressonâncias góticas (no sentido do triunfo de forças malignas e incompreensíveis sobre as racionalizações da mente civilizada).

O livro de Wells é o relato de Prendick, um náufrago que vai parar numa ilha remota no Pacífico onde Moreau, expulso da comunidade científica pelas suas experiências cruéis, dedica-se a vivisseccionar animais para transformá-los em arremedos de seres humanos, produzindo assim um Homem Cão, um Homem Macaco, um Homem Leopardo, além de híbridos semi-humanos como a Hiena Suína e o Cavalo Rinoceronte. Todos eles têm uma consciência rudimentar equivalente à de um ser humano bronco, todos falam, todos andam eretos e são proibidos de comer carne. Para mantê-los sob controle, Moreau inventa uma Lei que eles repetem sem cessar, terminando o rosário de proibições com o refrão: “Então não somos Homens?”. Qualquer violação da Lei será punida com o retorno à Casa da Dor, o laboratório onde foram criados (as cirurgias que os transformam em semi-homens são feitas sem anestesia).

O livro de Conrad fala da viagem de Marlow, o narrador, em busca de Kurtz, administrador de um remoto entreposto comercial na África. Kurtz é elogiado por todos que o conhecem como sendo um homem notável, artista, intelectual, idealista, dedicado a civilizar os africanos. Quanto mais se aprofunda na floresta, ao longo de meses, Marlow vai se espantando com a desumanização absurda que os negros sofrem pela invasão branca; e quando encontra Kurtz percebe que este se transformou num contrabandista de marfim, assassino, e que participa com os negros de rituais abomináveis (que o livro não explica quais são, mas que horrorizam o narrador).

Moreau é morto pelos homens-animais; Kurtz morre de doença na viagem de volta, murmurando: “O horror, o horror”. Heart of Darkness é uma versão realista da alegoria mostrada em “A Ilha do Dr. Moreau”. O choque entre civilizados e primitivos, ao invés de civilizar estes últimos (ao invés de transformar “animais” em “homens”) gera um atrito espantosamente cruel que acaba por animalizar a todos. É da natureza do colonialismo usar um discurso missionário e civilizatório (“estamos aqui para transformá-los em criaturas superiores, iguais a nós”) e uma prática que acaba por desumanizar os próprios civilizados. No livro de Wells, Prendick foge da ilha e retorna a Londres, mas fica vendo os homens-animais em cada rosto com que cruza nas avenidas. São dois livros para se ler e se lembrar em conjunto, quase como se um fosse o espelho reverso do outro.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

2426) “Outland – Comando Titânio” (14.12.2010)



Este filme de FC dirigido por Peter Hyams (o mesmo de 2010, o ano em que faremos contato) não é um grande filme mas tem uma narrativa tensa, que combina bem com a ambientação claustrofóbica. (Ele concorreu ao Prêmio Hugo de “Best Dramatic Presentation”, perdendo para Os Caçadores da Arca Perdida.) Pode funcionar muito bem num curso ou numa oficina de roteiro, para discussão de elementos de gênero, porque é uma mescla perfeita de três gêneros: a FC, o filme policial e o faroeste.

A história se passa numa estação mineradora, num satélite de Júpiter de onde se extrai o titânio. A estação é visitada uma vez por semana por uma nave que traz material, suprimentos, turmas de operários para revezamento, etc. Sean Connery é O’Niel, um chefe de segurança (chamado de xerife, “marshal”) recém-chegado após algumas mortes misteriosas terem ocorrido. Logo de cara ele percebe que tem alguma coisa muitíssimo errada, e que isso provavelmente tem a ver com Sheppard, o diretor da mina. Não demora muito para ele descobrir que uma droga ilegal está sendo contrabandeada para a estação, sob a orientação do diretor. A droga faz os operários produzirem o dobro, mas depois de algum tempo provoca alucinações e ataque homicidas. O’Niel prende alguns dos traficantes, mas descobre que Sheppard chamou dois matadores profissionais que deverão chegar na próxima nave, daí a 70 horas. Ele começa a percorrer os corredores pressurizados da base, falando com uns e com outros, e descobre que ninguém, entre as centenas de operários da mina, está disposto a arriscar a vida para ajudá-lo.

O filme é FC pela ambientação interplanetária, futurista. É um thriller policial pela trama em que se sucedem mortes misteriosas, uma investigação científica, o desmascaramento dos criminosos, o confronto violento. É a categorização como faroeste que coloca o crítico numa situação curiosa. Pode haver faroeste sem cavalos, cowboys, índios, etc.? Pode ser faroeste sem a ambientação rural dos EUA no século 19? Eu diria que sim. O filme partilha com o faroeste uma característica mais sutil: a ambientação da vida na fronteira (no caso, uma fronteira interplanetária), e a presença de um representante do Estado tentando manter a ordem num ambiente em que vigora a lei-do-mais-forte. Há também, colateralmente, a citação explícita a Matar ou Morrer (1952), em que um homem sozinho aguarda, sem ajuda, a chegada dos bandidos que vêm para matá-lo.

Tão típico quanto os cavalos, para o western, é esse conflito e essa superposição de dois sistemas sociais. Um drama em que homens de um rude ambiente rural têm que se dobrar a uma lei remota, concebida nos gabinetes do mundo urbano. (É este o grande tema de clássicos como O Homem que Matou o Facínora de John Ford.) O western não é só a luta entre cowboys e índios, é também a história da luta entre a pistola do Sertão e o Código Penal trazido pelos representantes de um “contrato social” mais amplo.

domingo, 12 de dezembro de 2010

2425) Vou ali comprar cigarro (12.12.2010)



Eram 18:43 de uma noite de verão quando o dr. Amadeu Felinto, dobrando o jornal que lia, ergueu-se da poltrona, vestiu de novo o paletó, caminhou pelo corredor e, chegando à sala onde sua esposa, D. Marilena, estava pondo a mesa do jantar, anunciou: “Vou ali comprar cigarro e já volto”. Ela assentiu com um gesto, continuou a distribuir talheres e pratos no leiaute costumeiro, mas, ao ouvir a porta da frente se fechando, estremeceu.

Toda mulher sabe. Está gravado nos seus neurônios com o mesmo dedo de fogo com que os Dez Mandamentos estão gravados nas Tábuas de Moisés. Se um dia, antes do jantar, um marido sair dizendo que vai comprar cigarros, ele nunca mais volta. Dobrará aquela esquina pela última vez e nunca mais será visto. Sumirá na multidão, perderá o nome e o rosto, as impressões digitais, o código genético. Virará uma sombra sem substância, como o Wakefield do conto de Hawthorne. Um espectro que uma maldição milenar e enigmática proíbe de retornar ao lar.

D. Marilena puxou uma cadeira e sentou-se, pois percebeu que a vertigem a faria desabar. As crianças brincavam no quarto; a TV estava ligada baixinho na sala; o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranquilo em redor de D. Marilena. Só não estava tranquilo seu coração, corroído pelo mais sulfúrico dos ácidos: o pavor diante do Estava Escrito. Naqueles minutos cruciais que determinaram toda sua vida futura, ela equacionou bens contra despesas, a poupança contra as mensalidades escolares dos filhos, as prestações e seu minguado salário de enfermeira. Traçou um plano de resistência às ironias e falsa piedade das vizinhas. Localizou com presteza uma dúzia de conhecidos que em breve começariam a ligar: “A sra. precisa sair, espairecer, a vida continua...”, e para cada um rascunhou uma desculpa convincente. Não, não amaria mais ninguém depois de Amadeu. Mesmo sendo abandonada de forma tão humilhante. Até o momento daquela derradeira e fatídica frase, ele tinha sido um marido ideal. Mesmo tendo sumido para sempre, era o marido ideal.

Ergueu-se. Foi à cozinha verificar se água do café já fervera. Passou o café numa mistura de piloto automático e sonambulismo, calculando quando pediria pelo carro, pois não sabia dirigir. Descartou de início quaisquer proventos da seguradora, pois sabia que seguradoras só pagam diante de cadáveres, não de homens que saem para comprar cigarros e se transformam em ectoplasma.

Pôs o café na garrafa térmica, arrolhou-a. Foi à porta do quarto. Clarice e Amadeuzinho brincavam, nos últimos momentos felizes que teriam. Não deram pela sua presença; como reagiriam à ausência do pai? D. Marilena foi até a sala, e teve a sensação de estar vendo aqueles móveis e paredes pela primeira ou pela última vez. A porta se abriu. Dr. Amadeu entrou tranquilo, cigarro aceso nos dedos, olhou-a: “Que cara é essa?” Ela arrancou um suspiro, foi até ele, retirou um fiapo de sua lapela e disse apenas: “Demorou...”

sábado, 11 de dezembro de 2010

2424) “Praça Saens Peña” (11.12.2010)



Tenho visto poucos filmes brasileiros, mas um que me deixou pensativo foi Praça Saens Peña de Vinicius Reis. A Tijuca foi um dos primeiros lugares em que morei no Rio, quando foi inaugurada a estação Saens Peña do metrô. Criei um afeto pelo bairro; e mesmo radicado na Zona Sul, que adoro, sinto-me pessoalmente ofendido sempre que o pessoal da ZS faz piada (e como faz!) com quem é da Zona Norte. Quanto mais você se afasta da Zona Sul, mais o Rio fica parecido com qualquer cidade brasileira. Em geral, quando se diz “o Rio de Janeiro” é apenas uma abreviatura de “a Zona Sul do Rio de Janeiro”. As praias.

O filme de Vinicius Reis fala de pessoas que moram num apartamento apertado, sonhando com casa própria, pagando as contas do mês na ponta do lápis. O marido, Paulo (Chico Diaz) dá aulas num colégio e fica entusiasmado quando uma editora o incumbe de escrever um livro sobre o bairro. Começa a recolher histórias, e a certa altura aparece entrevistando Aldir Blanc, tijucano ilustre. A esposa, Maria Padilha, fica meio jogada para escanteio e acaba tendo um caso com um rapaz cujo apartamento posto à venda ela foi avaliar. A filha única do casal sente o que está se passando e perde o diálogo com os pais.

Raras cenas do filme se passam fora da Tijuca. Tudo é contado de uma maneira intimista, aparentemente banal. O filme fala de droga (um tijucano, interpretado por Guti Fraga, queixa-se de que a polícia invadiu-lhe o apartamento e fuzilou seu filho no meio da casa). Mas a violência não aparece. A não ser, reiteradamente, nas conversas. Isto é realismo. É assim que grande parte dos cariocas vivencia a violência: falando sobre ela, todos os dias.

Uma cena resume o espírito deste tipo de cinema. A mulher casada vai à noite no apartamento do rapaz solteiro. Os dois sentam de lados opostos de uma mesinha pequena, encostados à parede, com uma iluminação meio fraca, ficam tomando cerveja na lata e comendo queijo. Charme zero. O rapaz pega a faca, tira uma fatia de queijo, come, oferece a ela... E os dois vão, para usar uma expressão em voga, “se conhecendo melhor”. É o que os romancistas franceses chamavam de “tranche de vie”, uma fatia de vida, um pedaço intensamente real, pelo menos na minha realidade, que já tomei muitas vezes aquela cerva.

O cinemão, no entanto, se tiver que colocar uma cena de um casal se conhecendo melhor, impõe que seja num colorido bar na praia, ou um restaurante metido a besta com maître de black-tie e champanhe na flauta. A cena do filme de Vinicius Reis me comoveu porque me deu aquela sensação cada vez mais rara no cinema de hoje, de ver algo importante que não é tratado como espetáculo. Que parece uma coisa acontecendo de verdade. Atores, diálogos, luz, gestual, o subtexto implícito empurrando um para o outro... Parece besteira, mas é até um negócio meio amedrontador, porque a gente vê o quanto o cinema pode, quando quer, se aproximar de nossos momentos mais íntimos.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

2423) WikiLeaks e os Little Brothers (10.12.2010)



(Julian Assange)

O mundo está acompanhando a batalha de Julian Assange, o cara do saite WikiLeaks, perseguido por governos do mundo inteiro, tendo à frente o dos EUA, por divulgar documentos secretos. Num mundo cada vez mais impregnado de informação transmissível (os telefonemas que dou, as compras que faço no cartão, os saites que acesso, os emails que recebo, as calçadas que percorro acompanhado por câmaras de segurança) somos massacrados pela impressão permanente do gigantismo do Estado. O mundo parece um imenso Big Brother, de olho nas pegadas que deixamos até dentro de nossa casa, copiando nossas impressões digitais em cada copo de plástico em que bebemos água, lendo nossos pensamentos e os transmitindo por encefalograma para algum misterioso Serviço de Segurança que arquiva tudo para utilização futura na hora em que a gente cometer a primeira bobagem.

O lado positivo desse 1984 permanente é o próprio gigantismo da máquina. Quanto mais peças tem uma máquina maior a possibilidade de que uma delas dê defeito, e, como afirmou genialmente Conan Doyle, nenhuma corrente é mais forte do que o mais fraco dos seus elos. Um acúmulo tão espantoso de informação aleatória não pode passar muito tempo sem deixar vazar (vazar = to leak) filetes de uma informação que o Sistema preferiria deixar desconhecida e inalcançável.

O WikiLeaks cumpre uma função parecida com a que Daniel Ellsberg fez ao roubar e divulgar os famosos “Papéis do Pentágono” sobre o Vietnam, ou o que Mark Felt, da CIA, fez ao se transformar no “Garganta Profunda” que ensinou o caminho das pedras para a investigação que levou à renúncia de Richard Nixon. São centenas de milhares de gravações, transcrições de conversas reservadas, grampos de telefones e o escambau, envolvendo presidentes de vários países, ministros, embaixadores, agentes de segurança. Sem falar em vídeos revelando atrocidades de guerra e saias-justas dos bastidores da política.

Fala-se tanto em liberdade de imprensa. Nenhuma imprensa é livre para revelar essas coisas. É algo fluido demais para ser provado, ou explosivo demais para ser manipulado em público. Às vezes uma revelação assim queima nosso adversário, mas também respinga napalm em meia dúzia de aliados ou inocentes neutros. A imprensa, mesmo livre, se auto-censura, se auto-limita e com isto, também, se auto-protege. Um desses grandes jornais (o New York Times, acho) tinha como lema: “All the news that’s fit to print”, “Todas as notícias adequadas para publicação”. Vejam o espírito retentivo e puritano desabrochando em toda sua plenitude! O lema do Wiki Leaks poderia ser: “Todas as notícias que é possível publicar”.

Num mundo governado pelo Big Brother, sugiro batizarmos essa galera do WikiLeaks como The Little Brothers. Os pequenos irmãozinhos que vão à luta, rasgam a barriga de governos corruptos, ditatoriais ou invasivos, e mostram a sujeira no interior de suas entranhas. Ninguém escapa.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

2422) A renovação da linguagem (9.12.2010)



Li num jornal literário este comentário de um crítico, que transcrevo sem citar a autoria, porque na verdade não me interessa contradizer o autor, e sim examinar por que motivo eu, que já disse a mesma coisa numerosas vezes, sempre o fiz com um certo desconforto e insatisfação. Dizia ele: “Fulano de Tal, com seu livro, não se propõe a renovar a linguagem literária. Ainda bem, porque de tentativas de renovação da linguagem a literatura brasileira está saturadíssima. Hoje em dia, essa prática se tornou lugar comum entre os escritores ‘bem’ pensantes. Mas afinal, depois de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, isso seria possível?”

Me parece verdadeiro, mas também me parece insatisfatório. Tenho uma certa impaciência com tentativas de “renovar a linguagem literária brasileira”, como se isto fosse tarefa para cada novo escritor que desembarca nas livrarias. Ao mesmo tempo me pergunto: será que acabou tudo com Guimarães Rosa e Clarice? Será que fechou a tampa, e não é preciso renovar mais nada? E, aliás, por que usamos o termo “renovar”? Renova-se uma literatura como quem renova um guarda-roupa durante uma viagem? Ou como quem renova um modelo de automóvel (tirando o acendedor de cigarros e botando um tocador de MP3, p. ex.)?

Não sabíamos (acho) que era possível ver o mundo com olhos como os de Kafka, até que Kafka surgiu e nos mostrou. Não imaginávamos (acho) que perscrutações íntimas, contraditórias, paradoxais e sem-desfecho, como as de Clarice Lispector, pudessem resultar em boa literatura; os livros de Clarice mostraram que sim. Muita gente escrevia romances sobre detetives durões que investigavam crimes brutais, cercados por mulheres sedutoras; eram livros rústicos, sensacionalistas, descuidados. Parecia impossível produzir boa literatura com ingredientes assim, mas Raymond Chandler mostrou que não. O romance regionalista rural era considerado um gênero estático, impermeável ao resto do mundo, sobre pessoas de baixo Q.I.; Guimarães Rosa mostrou que não.

Muitas tentativas de renovar a linguagem literária se frustram porque os autores, paradoxalmente, querem escrever parecido com o autor da renovação mais recente. A renovação se auto-destrói, cai no vazio, porque a comparação é inevitável entre o original e a cópia. O que seria de Rosa se tentasse escrever parecido com Afonso Arinos, e de Chandler se tivesse querido adotar o estilo de Dashiell Hammett, a quem admirava?

Não sei se todos os grandes autores queriam renovar nada. Queriam apenas se exprimir (acho) dentro de suas habilidades e seus limites. A literatura é uma Língua Geral cuja sintaxe e vocabulário pode receber acréscimos de qualquer autor. Os grandes individualistas trazem sua maneira de ver e maneira de dizer. Algo disso se incorpora. Mas aposto que eles não estavam querendo “renovar” nada. Escreviam assim porque não conseguiriam escrever de outra forma.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

2421) “The Diamond Age” (8.12.2010)



Li apenas dois livros de Neal Stephenson, e é como se tivesse lido vinte. Faz tempo não vejo um autor capaz de tal densidade informacional por página. Nevasca (“Snow Crash”), publicado pela editora paulista Aleph, com 470 páginas, tem mais peso específico do que a “Trilogia da Fundação” de Asimov. E agora acabei de ler este outro, que em 499 páginas é capaz de equilibrar uma balança que tenha no prato oposto toda a obra de Charles Dickens. A comparação não é despropositada, porque Dickens é uma das grandes inspirações de Stephenson para este romance vitoriano passado no futuro. Um dos prazeres proporcionados pela FC é essa possibilidade de decolar em voos históricos e sociológicos de longo alcance. Os escritores realistas acham que a FC é minúscula porque estão caminhando a pé e dela só veem o risco branco no céu azul.

A época da história é mais ou menos o ano 2100, quando a humanidade controla a nanotecnologia a ponto de todo mundo ter em casa, assim como tem hoje um microondas, um “compilador de matéria”. Basta digitar as coordenadas e ele produz dentro de alguns minutos uma calça, um par de sapatos, uma cadeira... Há limitações tecnológicas que impedem este aspecto de virar uma “varinha de condão”. A parte principal da história ocorre na região que hoje é Shangai, então habitada por uma sociedade neo-vitoriana de lordes e damas sofisticadíssimos a ponto de não recorrerem aos “compiladores”: roupas, móveis, etc., são todos feitos à mão, coisas que só pessoas riquíssimas podem encomendar.

Um Lorde lamenta que a nova geração esteja ficando muito acomodada e encomenda, para a futura Rainha, a criação de um e-book que não apenas contenha toda a formação cultural necessária a uma menina pré-adolescente, mas também estimule nela um temperamento rebelde, contestador, quase subversivo. Essa tarefa cai para J. P. Hackworth, que produz um Super-Livro, uma mistura de e-book e console-de-games em que a garota lerá histórias, aprenderá qualquer técnica (desde artes marciais até idiomas estrangeiros) e ao longo dos anos irá formando seu caráter através das etapas sucessivas das aventuras de “Princesa Nell”, um gigantesco game educativo, em que contracena (falando) com atores contratados para isto.

A grande reviravolta, que ocorre a cerca de 1/3 do livro, é que Hackworth tira uma cópia clandestina deste Super-Livro, e ela vai parar nas mãos de uma menina pobre, que passa a ser educada por ele ao mesmo tempo que a Princesa. Não, leitor, não diga que já viu como vai terminar. Isto é só a ponta deste iceberg barroco-cinemascope (como dizia Brian Aldiss), que vai em muitas direções (todas surpreendentes e plausíveis) ao mesmo tempo. O futuro descrito por Stephenson é estonteante em sua riqueza, diversidade e coerência de detalhes. As aventuras são divertidas, e existe aqui um pouco mais de maturidade do que em Nevasca, outro excelente livro mas que às vezes parece feito apenas para garotos que jogam joguinhos.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

2420) Flu: campeão por exclusão (7.12.2010)



E assim chegamos ao final de mais um Campeonato Brasileiro meia-bomba, decidido sem emoção em jogos onde os candidatos ao título enfrentavam times desmotivados ou rebaixados. Assim como ocorreu ano passado com meu Flamengo, o Fluminense foi campeão por exclusão. No confronto dos pouco competentes, foi o que errou menos, o que tropeçou menos, e, assim como o Flamengo, nem pode dizer que conquistou um título, mas que o título perdido por todos acabou caindo no seu colo. Que aproveite. (O Flamengo é um exemplo de como não aproveitar.)

Durante muitos anos sonhei, eu, fã do futebol, com um Campeonato Brasileiro disputado em pontos corridos, acreditando que fosse esta a fórmula mais adequada para premiar o melhor time. Hoje tenho minhas dúvidas, não quanto à eficácia da fórmula para escolher o vencedor (premia-se o time mais regular e mais consistente, o que não são critérios de se jogar fora), mas quanto ao resultado disto para o espetáculo.

Há muitos jornalistas que torcem o nariz para o presente modelo, e acho que estou começando a torcer o meu também. No ano passado vi um Flamengo travado e sem convicção ser campeão diante de um Grêmio que claramente não queria beneficiar seu rival, o Inter. Este ano vi um Fluminense travado e nervoso ser campeão diante de um Guarani tecnicamente fraco, psicologicamente entregue. Jogos chochos, sem técnica, sem emoção. Tive saudade daquelas decisões de alguns anos atrás em que só dois times podiam ser campeões: os dois que entravam em campo para se enfrentar, “com a faca nos dentes” e na ponta dos cascos.

Não digo isto para menosprezar o título tricolor. Foi merecido pela campanha sólida, mesmo com repetidos escorregões e tropeços em jogos bobos, que só não lhe custaram a Taça porque os adversários fizeram exatamente a mesma coisa. Foi merecido, por exemplo, por Conca, um jogador que não é nenhum Maradona mas é um exemplo de jogador que eu gostaria de ter no meu time, tanto pela técnica quanto pelo caráter (ou pelo menos o que percebemos dele pelas suas atitudes).

O título do Flu carimbou um valor simbólico especial para o técnico Muricy. Como os torcedores se lembram, logo quando Dunga foi demitido da Seleção após o fracasso na Copa a CBF convidou Muricy para ser o técnico, e ele aceitou. Isto foi às 10 da manhã. Ao meio-dia, Muricy informou a CBF de que o Fluminense não o liberava, e que ele, como tinha contrato assinado, tinha que manter a palavra e obedecer à ordem do Fluminense para que ficasse.

Muitos técnicos guardariam um gosto de azinhavre na boca e, mais adiante, iriam tirar o pé do acelerador, numa vingança quase inconsciente contra a diretoria que cancelou seu maior sonho profissional. Muricy trabalhou como um mouro e deu a Taça ao clube que o prejudicou. Isto deve significar alguma coisa, num futebol tão egoísta quanto o nosso. Não acho Muricy o sujeito mais simpático do mundo, mas é a ele (não à diretoria do Flu) que dou meus parabéns.