quinta-feira, 14 de outubro de 2010

2373) Livro Eletrônico Incrementado (14.10.2010)



A Feira do Livro de Frankfurt está recolocando em novos termos a evolução do livro eletrônico e o eterno debate sobre “o Fim do Livro de Papel”. A tendência agora é o que eles chamam de “Livro Eletrônico Incrementado” (“enhanced e-book”). Já vi uns protótipos dele por aí, de diversas fábricas e modelos. As variações são muitas, como em todo produto novo que está tateando o mercado. É um tablete leve, achatado, com uma tela e alguns comandos, e uma memória onde a gente pode descarregar arquivos digitais com milhares de títulos.

Ali você tem a chance de ver o livro em diversos formatos, com as opções de mudar o estilo da fonte, o tamanho da fonte, a cor da fonte, a cor do fundo... Eu sou meio fetichista visual, e gosto de variar o aspecto da minha página. Quando escrevo estes meus artigos, por exemplo, raramente estou usando letras pretas sobre página branca (por acaso, é justamente o que estou usando agora; mas sou honesto, e não mentirei). Em geral gosto de usar (por exemplo) fundo preto com letras brancas em fonte Courier New; ou letras amarelas em fonte Paladino Linotype sobre fundo vermelho; ou letras azul-marinho em fonte Georgia sobre fundo vermelho-claro; e assim por diante. Por que isso? Ora, porque isto me dá uma sensação de enorme liberdade visual, depois de quatro décadas contemplando letras pretas sobre papel branco.

O Incrementado, no entanto, traz muito mais do que isto. Ilustrações à pampa, é claro, sem que isto modifique o preço do livro. Profetizo que o livro eletrônico será o grande mercado para as obras sobre pintura, História da Arte, etc. – imagine só, todas as obras do Louvre, em alta resolução, com opção de zoom nos detalhes, num livro bem levezinho, e pelo mesmo preço dum livro comum! Além disso, o Livro Eletrônico incrementado terá hipertextos com ensaios críticos, históricos, biográficos. Links para fontes específicas na Internet onde será possível baixar arquivos ou informações atualizadas sobre o assunto do livro. Clips de entrevistas com o autor ou com críticos literários; trechos de filmes ou de séries de TV baseadas na obra. Pequenas ilustrações animadas, grande atrativo para os livros infantis. Brincadeiras interativas que darão ao livro um perfil quase de jogo.

Tudo muito bom, mas por alguma razão o gutemberguiano em mim olha isto com desconfiança. Porque na verdade não é o livro que está se expandindo, é o mundo do videogame e da TV que estão se expandindo para dentro do livro. O livro eletrônico é do mesmo tipo sanguíneo que essas coisas, e vai virar um “recebedor universal”. Eu não coloco em momento algum a questão do eletrônico versus papel. O problema aqui é texto versus imagem. Em vez de nos preocuparmos com o fim do livro de papel, deveríamos nos preocupar com o encolhimento do Texto, da Literatura, espremida por mídias mais intuitivas. Estamos inventando, passo a passo, o Livro Para Quem Não Sabe Ler.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

2372) Colégio de Brotos (13.10.2010)



Oscarito é a cara da chanchada brasileira, e uma coisa que ele fazia muito bem era macaquear o discurso pomposo, fosse científico ou político. No começo de Nem Sansão nem Dalila ele aparece como um professor universitário dando uma aula sobre o Tempo, e utilizando-se do Paradoxo de Zenão, que Jorge Luís Borges cita a três-por-dois em sua obra. Em Colégio de Brotos de Carlos Manga (1956), ele é Agapito, o zelador de um colégio interno. Em sua primeira aparição na tela, está fantasiado de professor, empunhando uma caveira, e dando para uma sala vazia uma aula sobre as teorias de Lombroso, para quem um criminoso tinha sempre um conjunto característico de traços faciais.

Colégio de Brotos foi sucesso naquela época, e um dos meus filmes preferidos quando garoto. Dele eu lembrava, acima de tudo, uma cena que se passa no museu do colégio, quando Oscarito entra lá à noite e é ameaçado seguidamente por uma armadura medieval, estátuas de guerreiros primitivos, e uma múmia. No fim descobre-se que era o vilão, infiltrado no colégio para roubar umas moedas raras, mas mesmo na época eu ficava me perguntando se o vilão se vestia de múmia e ficava à espera, para o caso de alguém entrar ali de madrugada.

Essas incoerências são a coisa mais encantadora do filme B, uma vez que os filmes A têm na equipe alguém para cortar tudo que não tenha uma explicação lógica. Vai daí que as chanchadas da Atlântida tinham de vez em quando essa saborosa imprevisibilidade. Por exemplo: o filme se passa num colégio interno, onde estudam rapazes e moças, todos dormindo nos respectivos alojamentos (assim como os professores); mas eles chamam aquilo o tempo todo de “universidade” e “faculdade”. E à noite alunos e professores ficam dançando numa boate (visivelmente dentro do colégio) ao som de uma orquestra!

Sérgio Augusto, no indispensável Este Mundo é um Pandeiro (Cia. das Letras, 1989), diz que o filme se inspira em Escola de Sereias (“Bathing Beauty”, 1944, filme de George Sidney com a anfíbia Esther Williams). O filme de Manga é uma chanchada curiosa, porque não se passa no Rio, ou pelo menos em nenhum momento se fala no Rio. Como o astro do filme é Francisco Carlos, a ação se divide entre o colégio, com boate e tudo, e uma emissora de rádio onde ele faz carreira. As únicas cenas externas são os jardins do colégio, onde rapazes e moças caminham sobraçando livros e cadernos, e, à noite, sentam nos gramados, ouvindo Francisco Carlos cantar serenatas. A noção de espaço e de tempo do filme B, principalmente o brasileiro, merece uma tese de mestrado. No caso de Colégio de Brotos, não sei se alguma universidade brasileira dos anos 1950 se parecia com aquele ambiente, e por que motivo é chamada de “colégio”. Há rapazes de terno, e há rapazes de pulôver, inclusive Augusto César Vanucci e Daniel Filho fazendo papéis, bem diluídos, de quase vilões. Por um lado, uma chanchada típica; por outro, um filme único e curioso.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

2371) A Presidência segundo Asimov (12.10.2010)




Isaac Asimov tem um conto, “Democracia Eletrônica”, sobre o possível futuro das eleições presidenciais nos EUA (o conto está traduzido na antologia Sonhos de Robô, Editora Record). 

Num futuro distante, as eleições presidenciais são controladas pelo grande computador Multivac. A família de Norman Muller está em polvorosa, porque o Estado de Indiana, onde eles vivem, será escolhido para a eleição. Esta é a primeira estranheza que o autor infiltra no conto. 

Vemos a expectativa da família, e o mau humor do sogro de Norman, que resmunga o tempo todo, relembra os bons velhos tempos, critica as eleições atuais: “Disseram que o sistema acabaria com os políticos radicais, o desperdício de dinheiro dos contribuintes na campanha e os joões-ninguém sorridentes, vendidos e anunciados para o Congresso ou para a Casa Branca...”

E de pista em pista vamos descobrindo como os presidentes são eleitos nesse futuro. Asimov explica que tudo mudou após o advento dos computadores, e principalmente do Multivac, o sistema que “tinha meia milha de comprimento e três andares”, e “cinquenta técnicos não paravam de andar pelos corredores, dentro de sua estrutura”. Pois é, amigos... o conto é de 1955, que poderíamos chamar A Era dos Computadores-Dinossauros. 

E logo ficamos sabendo que ele, Norman Muller, foi escolhido para ser O Eleitor. Agentes do Serviço Secreto ocupam sua casa, cortam as comunicações, e no dia marcado o conduzem para um lugar secreto. Ele é plugado a sensores que avaliam sua pressão sanguínea, batimento cardíaco, condutividade da pele, ondas cerebrais, etc. , enquanto ele responde perguntas sobre uma infinidade de assuntos, desde coleta do lixo até ser contra ou a favor de um incinerador central.

Mas... por que Norman? Resposta: porque Multivac examinou os dados da população dos EUA, e considerou que ele era “...não o mais esperto, o mais forte, ou o mais sortudo, mas o mais representativo desse ano”. O mais mediano. O eleitor padrão. E é de acordo com as opiniões de Norman que o próximo Governo será eleito. 

No fim do interrogatório, Norman é liberado, e pergunta timidamente quem foi o candidato que ele acabou de eleger. Respondem-lhe que é segredo, e que terá de esperar a proclamação oficial. O que me lembra a velha história do coronel nordestino – o morador do sítio entrega-lhe a cédula em branco, o coronel preenche, bota na urna, o morador pergunta em quem votou e o coronel diz: “Oxente, meu filho, que pergunta é essa?! O voto é secreto!!!”.

O conto de Asimov ilustra um velho ideal científico: a perfeição total na arte da projeção estatística. Dizem os Ibopes que numa pesquisa de recorte bem feito (idade, classe social, região, etc.) chega um ponto a partir do qual a resposta é a mesma, com 2 mil, 200 mil, 2 milhões de pessoas. 

Asimov se pergunta se conseguiremos um dia encontrar a Amostragem Perfeita. Tema atualíssimo... abordado há 55 anos.






domingo, 10 de outubro de 2010

2370) Nova viagem à Lua (10.10.2010)



Pesquisando a história remota da FC no Brasil, buscamos algo que se assemelhe aos livros que Julio Verne ou H. G. Wells estavam publicando na Europa, e ficamos decepcionados quando não os encontramos. Os livros de Verne e Wells eram produto de sociedades muito diferentes da nossa. Surge aqui um ou outro título concebido no mesmo espírito (como o prova, por exemplo, O Doutor Benignus, de Augusto Emilio Zaluar), porém o mais normal é encontrarmos obras que tratam aqueles temas com outro espírito, outras intenções, e afeitas às expectativas de outro público.

Nessa linha, uma curiosa referência teatral é a opereta em 3 atos Nova Viagem à Lua, de Artur Azevedo e Frederico Severo. Artur Azevedo foi um dos principais autores teatrais de sua época. Sua peça Amor por anexins, escrita aos quinze anos, é montada ainda hoje. Esta opereta foi lançada em 1877, quando ele tinha 22 anos, com música de Le Coq, e foi representada pela primeira vez no Teatro Fênix Dramática, no Rio.

Trata-se de uma comédia de costumes, típica do autor, em que a viagem à Lua é apenas o elemento desencadeador de situações cômicas. A ação do primeiro ato passa-se em Ubá (MG), e os dois últimos na Corte (o Rio). Luís, o filho do fazendeiro Arruda, de Ubá, quer casar com Zizinha, filha do velho Santos, que é um antigo amigo de Arruda, embora agora os dois estejam com as relações estremecidas. Santos diz que só cederá a mão da filha a Luís se este convencer o pai a vir à Corte (ao Rio de Janeiro), coisa que ele jurara nunca mais fazer.

Machadinho, amigo de Luís e membro da sociedade carnavalesca “Netos da Lua”, fica sabendo do entusiasmo do velho Arruda com a leitura de Da Terra à Lua de Julio Verne, e convence o fazendeiro de que é possível construir um foguete e ir à Lua. Pede dinheiro emprestado e manda construir uma alegoria carnavalesca em forma de foguete, que fotografa e mostra a Arruda para convencê-lo de que está tudo pronto para a viagem.

Arruda é levado ao Rio, narcotizado e, ao acordar, está no meio de um baile carnavalesco na sede dos “Netos da Lua”. Os rapazes o convencem de que está na Lua e que o filho dele foi coroado Rei da Lua sob o nome de Luís I. O Dr. Cábula, um intelectual de discurso comicamente empolado, colabora na farsa. Depois, com o aparecimento do velho Santos, tudo se esclarece; os dois velhos retomam a amizade e Luís casa com Zizinha.

Podemos desenvolver a partir daí uma teoria da vocação carnavalizadora (inclusive no sentido proposto por Bakhtin) que a narrativa brasileira (literatura, cinema, teatro) pratica com os temas tratados a sério pela Europa e EUA. Não é privilégio brasileiro: na Europa de 1870 certamente havia “farsas selenitas” nesse estilo. Mas essa carnavalização é coisa nossa, não há dúvida. Na chanchada cinematográfica, no filme B, no teatro, nas letras de MPB, os temas da FC são geralmente pretexto para a sátira, a paródia, a brincadeira, em que tudo acaba num baile à fantasia.

sábado, 9 de outubro de 2010

2369) O gorila invisível (9.10.2010)




Christopher Chabris e Daniel Simons são os autores do livro The Invisible Gorilla, em que relatam e comentam uma experiência que fizeram. 

Dois grupos de voluntários recebem um vídeo de cerca de um minuto, mostrando dois times de basquete (um time vestido de branco e o outro de preto) que fazem um “esquente” na quadra, passando a bola uns para os outros. O primeiro grupo simplesmente assiste o vídeo. O segundo grupo recebe a instrução de contar o número de vezes que a bola é passada pelo ar ou repicando no chão. 

A certa altura do vídeo, uma pessoa vestida de gorila entra na quadra, para, dá murros no peito e sai pelo outro lado. Todos os voluntários do primeiro grupo viram o gorila. Os do segundo grupo, que tinham a tarefa de contar os passes, não o viram, mesmo estando com os olhos pregados na tela no momento em que ele aparecia. 

A conclusão inicial dos pesquisadores é que a concentração na tarefa (e a obrigação de ficar contando mentalmente) drena a maior parte da atividade mental dos voluntários. Quando exibiram novamente o vídeo e eles viram o gorila, deram um pulo de susto. 

Isto parece ter algo a ver com uma coisa que já me disseram: se você pedir algo a uma pessoa que está falando ao telefone, ela lhe obedece sem prestar atenção. Garotos esperam o telefone tocar e o pai atender para, alguns instantes depois se aproximar e pedir: “Pai, me dá dez reais”. O pai, dialogando através do fio, puxa a carteira do bolso, dá o dinheiro e continua conversando. É como se a parte principal da nossa cabeça estivesse totalmente concentrada numa tarefa e deixasse as demais no piloto automático. 

Também me vem à memória uma espécie de enigma ou “pegadinha”. Você avisa o interlocutor que vai propor um problema e diz algo como: “Um trem sai da estação de origem com 30 pessoas. Na próxima estação, descem 11 e sobem 23. Na outra, descem 20 e sobem 40. Na outra, descem 35 e sobem 14. Na outra, descem 18 e sobem 16...” E assim por diante. No final, pergunta: “Em quantas estações o trem parou?” 

Note-se que em momento algum foi dito à “vítima” que iríamos perguntar com quantos passageiros o trem chegou na estação final; mas essa sugestão foi induzida pela própria mecânica da narrativa. Alertada (falsamente) pelo entra-e-sai de passageiros, a vítima começa a fazer contas rapidamente, e esquece de observar quantas paradas fez o trem. 

Este último truque é o que eu chamo “The Agatha Christie Effect”. Como sabem os leitores da Dama do Crime, ela é especialista em distrair a atenção do leitor, principalmente quando, por uma questão de “fair play”, está lhe dando informações essenciais, que mais tarde serão usadas por Hercule Poirot ou Miss Marple para deduzir quem foi o criminoso. O trem está indo de estação em estação diante dos nossos olhos, mas, distraídos na contagem dos passageiros, esquecemos de reparar quantas vezes ele parou.






sexta-feira, 8 de outubro de 2010

2368) Os Detetives Selvagens (8.10.2010)



Este imenso, inesgotável romance de Roberto Bolaño é (entre outras coisas) a crônica de um movimento poético de vanguarda. Só quem já participou de algo parecido sabe o quanto esses movimentos, mais do que literários, são “vivenciais”. Mais do que preocupadas em escrever e teorizar as pessoas estão ligadas em viver a vida intensamente: beber, farrar, namorar, travar polêmicas intermináveis, descolar dinheiro de uma maneira ou de outra. É o que fazem os “visceral realistas”, ou “real visceralistas”, ou “realistas viscerais” da Cidade do México na década de 1970, em que se concentra a maior parte do livro.

O romance começa sob a forma do diário de um jovem poeta que adere ao grupo, Garcia Madero. Segue-se uma longa segunda parte, que ocupa a maior extensão no livro, com depoimentos de pessoas que pertenceram ao grupo, ou que entraram em contato com seus membros. A terceira e última parte é a conclusão do diário de Garcia Madero. Este diário é de uma saborosa verossimilhança; quem quer que tenha escrito poesia a sério, na adolescência, irá se reconhecer em numerosos momentos. Garcia Madero é um desses garotos que leem muito e sabem a diferença entre um epitalâmio e uma ode sáfica. Adere ao grupo com entusiasmo, vive preocupado porque tem 16 anos e ainda é virgem (se bem que, depois de perder esta condição, ele trata de botar a contabilidade em dia com um zelo de fanático), e é ele quem nos dá as primeiras impressões sobre os poetas que são na verdade os protagonistas do livro, Arturo Belano (alter-ego do autor) e Ulises Lima. Dois rapazes escolados, radicais, cheios de expedientes, irreverentes, angustiados. E que nunca vemos “por dentro”. Só os enxergamos, no livro inteiro, pelos olhos das outras pessoas.

Na parte do meio, cada um dos depoimentos sobre os poetas é uma fatia da vida do depoente. São pequenos contos que chegam a ter 15 ou 20 páginas, o que torna o livro um “romance de contos” como outros autores já tentaram. São poetas, acadêmicos, críticos literários, boêmios, homossexuais, turistas, esposas de poetas, jornalistas, gente da América e da Europa, gente de todos os tipos. Cada um deles conheceu Belano ou Lima em diferentes circunstâncias, e narra esse encontro na primeira pessoa, como se estivesse falando para um gravador. Muitos destes textos poderiam ser lidos como contos isolados, sem relação com o livro.

Em momento nenhum Roberto Bolaño cita os poemas de seus poetas, os quais, na teoria e no discurso, são de um radicalismo de fazer inveja a André Breton. Ao invés de tentar produzir poemas à altura da fúria surrealista deles, Bolaño simplesmente pula por cima e nos deixa intuir, obliquamente, que tipo de poesia indivíduos como aqueles estariam produzindo. A palavra “detetives” está no título para despistar. O título mais fiel para este grande livro poderia ser Os Passos Perdidos. A Idade de Ouro. A Poesia em Pânico. Doce Pássaro da Juventude.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

2367) Noites de Autógrafos de Reinaldo (7.10.2010)



Não entendo por que motivo ninguém leva os humoristas a sério. Vejam o caso do carioca Reinaldo, por exemplo. É um intelectual, conhecedor da melhor literatura, músico de jazz, mas o público só pensa nele como aquele sujeito de óculos que se veste de flamingo-cor-de-rosa no programa Casseta & Planeta. A própria imprensa, se exigida a apontar um intelectual na família, provavelmente indicará algum dos seus irmãos, como o escritor e tradutor Rubem Figueiredo ou o jornalista Cláudio Figueiredo, autor de uma ótima biografia do Barão de Itararé. E no entanto, e no entanto...

Noites de Autógrafos, o novo livro de Reinaldo (Editora Desiderata, Rio, 2010) é um passeio pelo mundo-pesadelo dessas ocasiões aparentemente festivas, em que o autor de um livro se submete à mortificação pública de ficar sentado, escrevendo dedicatórias para desconhecidos que ele logo descobre com horror tratar-se de amigos de infância, irreconhecíveis por trás de uma barba ou da ausência dela. Não há tormento maior para um autor do que perguntar, timidamente: “E o teu nome, como é?...”, apenas para ouvir algo como: “Ora, sou Fulano, teu editor, que publicou esse livrinho aí”.

Sem falar nos muitos casos em que a gente troca Leila por Lélia, Edilson por Adilson, coisas assim. Pensando nisto, as livrarias adquiriram o hábito de, na venda do livro, perguntar o nome do comprador e anotá-lo num papelzinho, para socorrer o infeliz. Mas basta o sujeito ter tomado uns chopes com o autor cinco anos atrás, para afirmar, confiante: “Não precisa! Somos amigos.” E não se sabe qual a decepção pior, a do autor ao constatar que não lembra ou a do fã ao descobrir que não é lembrado.

Parece que estou fazendo cerca-lourenço, mas não: o livro de Reinaldo é exatamente para explorar todas as gafes e desencontros possíveis nessas ocasiões. Só que, aqui, com autores consagrados. Stevenson escreve: “Para o dr. Jekyll, excelente figura humana...” enquanto Mr. Hyde brota do smoking do outro, facão em punho. Kafka contempla a barata morta diante da mesinha, junto à placa: “Esta livraria foi dedetizada”. Dom Quixote e Sancho pressionam Cervantes: “Autografa logo, porque o cavalo e o burro ficaram mal estacionados”. Jorge Luís Borges, cego, espera em vão numa mesa no centro de um enorme labirinto vazio. Machado se alegra ao ver um esqueleto: “Brás Cubas! Quem é morto-vivo sempre aparece!”. Ariano Suassuna, pedindo um autógrafo a Luís Fernando Verissimo, faz um longo discurso armorial diante do silêncio do colega.

São 61 cartuns com estes e outros personagens envolvendo-se em pequenas confusões e perplexidades diante de um livro a ser autografado. (Meus preferidos são os que envolvem Clarice Lispector, Ivan Lessa, Thomas Pynchon, Millôr Fernandes, Sartre, Lima Barreto). Todos com o traço anguloso e preciso de Reinaldo, todos revivendo a antiga arte de fazer da tragédia alheia a nossa comédia.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

2366) Palavras incômodas (6.10.2010)



Por que motivo a gente gosta de umas palavras e não gosta de outras? As razões variam em cada caso, mas o fato é que palavras assim nos dão uma sensação de incômodo, de desconforto, quando por pressa ou por falta de um equivalente mais palatável temos de enfiá-las numa frase.

Veja-se por exemplo a palavra “disponibilizar” e seus derivados, tão empregada hoje, principalmente em referência à internet, para exprimir a ideia de algo colocado à disposição de qualquer pessoa que se interesse. Se eu digo que estou colocando um texto meu à disposição do público, esta frase não dispara nenhum alarma. Mas todas as (raras) vezes em que escrevi “estou disponibilizando um texto”, a mera visão desse polissílabo numa frase de minha autoria me produziu um calafrio de horror, como se visse uma centopeia sobre a minha escrivaninha. Por que? Acho que porque me parece uma palavra desajeitadamente longa, e além disso uma palavra pretensiosamente metida a erudita. Pertence a uma longa família de palavras pomposas vindas do jargão administrativo/gerencial: disponibilizar, operacionalizar, viabilizar, etc. Palavras que se formam à maneira alemã, somando prefixos e sufixos para dar pequenas torções do sentido. O verbo “dispor” sugere o adjetivo “disponível” e este adquire a comprida cauda que o transforma em “disponibilizar”. Por mim prefiro dizer que “estou colocando à disposição”, ou, caso seja preciso dizer uma palavra somente, que estou oferecendo, expondo, entregando, distribuindo, qualquer coisa que se aplique melhor ao contexto.

Outra palavra terrível que está na moda: “pertencimento”. A toda hora tem alguém dizendo: “Este projeto pretende aumentar a sensação de pertencimento das comunidades rurais...” Neste caso a origem parece ser o inglês, o termo “belonging”, que exprime essa ideia de pertence a algo contexto mais amplo. Temos o verbo pertencer mas não temos o substantivo correspondente, e traduzimos ao pé da letra “belonging” por “pertencimento”. Eu preferiria dizer integração, assimilação, vínculo, união... Há várias alternativas, cada uma mais indicada a um diferente contexto.

Mais um termo do jargão administrativo-gerencial: “empoderamento”. Quem diabo autorizou a circulação dessa coisa horrenda? Mais uma vez trata-se da tradução-às-cegas de um termo inglês, “empowerment”, que exprime a ideia de conferir maior poder a uma pessoa, seja o mero poder advindo de um novo cargo, seja uma atitude mais positiva que brota do próprio indivíduo, tornando-o mais dinâmico e mais capacitado. A única desculpa possível é que faltava ao idioma uma palavra isolada, baseada no mesmo radical (“poder”) capaz de exprimir esta ideia. O resultado, porém, ficou antieufônico e pouco evidente – é uma dessas palavras que precisam ser relidas e avaliadas para que a gente possa deduzir o que significam. Péssima receita para uma palavra não-literária, que se pretende de uso corrente.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

2365) Drummond: “Lanterna Mágica” (5.10.2010)



“Lanterna Mágica” é na verdade um conjunto de pequenos poemas numerados que Carlos Drummond incluiu no seu primeiro livro, Alguma Poesia, que está completando 80 anos. São oito poemas ao todo, sendo cinco deles sobre cidades mineiras, um sobre Nova Friburgo (RJ), um sobre o Rio de Janeiro e outro sobre a Bahia. A expressão “lanterna mágica” sugere a projeção de imagens coloridas, de “slides” com cartões postais projetáveis na parede, mostrando imagens de pontos turísticos do mundo inteiro.

O primeiro poema, “Belo Horizonte”, lembra em alguns aspectos o famoso “Noturno de Belo Horizonte” de Mário de Andrade (1924). O poema de Mário, ao que parece, surgiu da famosa visita que ele fez à capital mineira juntamente com Oswald de Andrade, Tarsila do Asmaral e Blaise Cendrars, servindo-lhes de cicerone para conhecer as cidades históricas de Minas. Hospedado no Grande Hotel de BH, o grupo paulista recebeu a visita de jovens intelectuais mineiros, entre eles Drummond. E a BH do curto poema de Drummond (“Debaixo de cada árvore faço minha cama, / em cada ramo dependuro meu paletó. / Lirismo. / Pelos jardins versailles / ingenuidade de velocípedes”) mantém algo do clima lírico e melancólico do longo poema de Mário (“Maravilha de milhares de brilhos vidrilhos / calma do noturno de Belo Horizonte... / O silêncio fresco desfolha das árvores / e orvalha o jardim só.”). Retorna no poema de Drummond uma das figuras de linguagem preferidas dos modernistas, o contraste por justaposição entre o solene e tradicional (“versailles”) e o banal e moderno (“velocípedes”).

O segundo poema, “Sabará”, é o mais longo do conjunto, e de certo modo o que tem mais autonomia. Todo ele se trava nesse choque de imagens entre o antigo e o moderno. Drummond transforma o ambiente em personagem, dando às coisas inanimadas alma e emoções de seres vivos: “A dois passos da cidade importante / a cidadezinha está calada, entrevada. / (Atrás daquele morro, com vergonha do trem”). Nesta linha uma sutileza, pois não fica claro se a cidadezinha tem vergonha de ser avistada pelo trem, ou se se envergonha dele. A maioria dos modernistas fazia esses contrastes para ironizar o passado; Drummond ironiza os dois lados.

Este poema é um dos poucos em que ele emprega repetidamente o “português errado” que Mário usava com tanto liberalismo e descontração: temos “jinelas”, “Penção”, “Juaquina”, “maginando”, “quede”. Retorna aqui o “forde” usado em “Também já fui brasileiro”, num tempo em que essa marca era sinônimo de automóvel. Drummond faz um retrato visual da cidadezinha entre montanhas, e na penúltima estrofe deflagra a ruptura modernista: “O presente vem de mansinho / de repente dá um salto: / cartaz de cinema com fita americana”. Como o “forde”, a “fita” americana é símbolo do futuro, ou melhor, do Presente que encurrala as cidadezinhas refugiadas atrás dos morros.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

2364) A entrevista de Vandré (4.10.2010)




A TV Globo exibiu a entrevista feita por Geneton Moraes Neto com Geraldo Vandré, feita no dia em que este completou 75 anos. 

Foi ótimo para desmentir os boatos que ouvi nas últimas décadas: Vandré ficou doido, Vandré aderiu aos militares, Vandré está com depressão profunda, Vandré perdeu a memória, Vandré está incoerente. 

Pelo contrário. O autor de “Ventania” se tornou um cara ensimesmado, solitário, introvertido. Isto se soma à idade e à desilusão com a música para dar uma imagem diferente do cantor passionário e grandiloquente que arrastou multidões. Mas Vandré mostra em toda a entrevista ser um sujeito tranquilo, articulado, de vez em quando bem-humorado e brincalhão. 

Ajuda a desmontar algumas das lendas que se criaram em torno dele, recusa com sensatez e bons argumentos a pecha de “antimilitarista”, rejeita o ambiente de showbiz que se criou para a MPB de hoje. 

Foi uma das entrevistas mais sensatas e equilibradas que vi de um músico brasileiro, mesmo discordando de algumas de suas opiniões. Vandré só parece um excêntrico porque não exibe o comportamento dos compositores e cantores de hoje, cheios de frasezinhas espirituosas, caras e bocas, humildade fingida, etc. É um cara que olha de frente para a câmara e diz: “Perdi a guerra, paciência, a vida continua”.

Vandré era de uma faixa radical da MPB que unia de um lado a visão-do-mundo marxista e nacionalista, e do outro a curiosidade pelas formas populares e “folclóricas” de escrever e compor. 

Suas melhores canções pertencem a esta linha: “Disparada”, “Caminhando”, “Cantiga brava”, “Aroeira”, “Requiem para Matraga”, “Porta Estandarte” e tantas outras. Mas suas canções de amor, bem trabalhadas e de melodias intensas, são igualmente fortes: “Quem quiser encontrar o amor”, “Pequeno concerto que virou canção”, etc. 

Seu talento ninguém discute. O que se discutiu na época foi sua aposta kamikaze no confronto ideológico. Compositores igualmente engajados (Chico Buarque, Edu Lobo, Sérgio Ricardo, etc.) souberam recolher as velas e se manter à tona na hora da tempestade. Vandré tentou beber a tempestade. Não conseguiu.

Vandré diz que a única coisa da MPB que lhe chamou a atenção nas últimas décadas foi o Movimento Armorial. Isto mostra que seu esquerdismo pode ter se atenuado com o tempo, seu nacionalismo não. O Armorial não faz a música que ele fazia, mas certamente faz a música que ele gosta de ouvir. 

Vandré não aceitava a guitarra, não aceitava o Tropicalismo, as roupas de plástico, a parafernália pop. Perdeu a guerra, porque foi esse modelo que se impôs na música brasileira. Não como modelo único (ainda há espaço para numerosos seguidores do próprio Vandré), mas como modelo predominante, preferido pela mídia e enriquecedor. 

Vandré tem suas razões para balançar a cabeça e dizer: “Tô fora”. O que fez é inapagável, definitivo, mas ele não quer voltar a fazê-lo. Vandré foi o artista de um momento único, e passou com esse momento.