domingo, 16 de maio de 2010

2050) “Terra em Transe” (3.10.2009)



Liguei a TV por acaso e vi a imagem em P&B de um mar filmado de cima para baixo, ao som de vozes e atabaques de candomblé. Era a primeira cena de Terra em Transe, de Glauber, filme que eu não revia há uns dez anos. Plantei-me ali em frente e só saí quando acabaram os letreiros finais e voltou o logotipo do Canal Brasil. Tenho o DVD em casa, mas ver na TV é diferente. Não sei por que. A imagem é praticamente a mesma. O DVD tem a vantagem dos “extras”, a vantagem de poder parar, voltar, ver de novo... Mas ver o filme passando na TV a cabo nos dá uma sensação de vida real. Aquilo está acontecendo, independente de nossa vontade. Eis uma boa definição para vida real: algo que não depende de nós para continuar acontecendo. Ver o filme na TV me dá a sensação de estar numa experiência coletiva como a da sala do cinema, de estar vendo aquilo na companhia, mesmo implícita e virtual, de um bocado de gente. O DVD é uma experiência solitária, intransferível, não compartilhável.

Terra em Transe é meu filme preferido de Glauber, acho que por ter sido o primeiro que vi, em 1968 (só assisti Deus e o Diabo algum tempo depois). O impacto que senti foi de um tiro de canhão na caixa-dos-peitos. Glauber foi o rei do filme B, do filme feito com recursos toscos. Ele pegava uma dezena de excelentes atores que eram seus amigos, uma parelha respeitável de fotógrafos (Barretão e Dib Lufti), e saía de rua afora como quem puxa sozinho um bloco de carnaval. Hoje os problemas técnicos aparecem muito mais, principalmente os de sonorização. Glauber dublava as vozes dos atores; praticamente não há som ambiente, são apenas as vozes, e por trás delas uma cacofonia de efeitos que parecem uma “Revolution 9” dos Beatles “avant la lettre”: é jazz, é tiroteio, é rufar de bateria, é vozerio de multidão. A impressão é a menos realista possível.

Na época eu não conhecia as locações do filme, que hoje me são familiares: o Parque Lage (cenas do governador Vieira, José Lewgoy), o Teatro Municipal (cenas com Porfírio Diaz, Paulo Autran). O Eldorado fictício do filme me lembrava um conjunto de arquiteturas barrocas numa paisagem amazônica; aquilo parecia mais Manaus do que o Rio de Janeiro. O teatralismo delirante das falas e das interpretações está aqui no ponto ideal, ponto que infelizmente seria ultrapassado nos filmes que Glauber fez nos anos 1970. As críticas políticas são surpreendentemente atuais. E o fascista Diaz está a cara do atualmente grisalho Fernando Collor, inclusive “o olho rútilo e o lábio trêmulo”. Só falta alguém pegar os dois e fazer uma montagem-paralela no YouTube.

Continua a ser meu filme preferido de Glauber. É uma explosão de criatividade e erros, de improvisação criativa e precariedade técnica, de melodrama político e semi-documentarismo sem roteiro. Como obra de arte cinematográfica, tem virtudes e defeitos. Como retrato de sua época e do seu autor, não tem igual.

2049) A afinidade criativa (2.10.2009)





É bem conhecido o reparo feito por Julio Cortázar a uma das mais célebres afirmativas estéticas de Edgar Allan Poe, em sua “Filosofia da Composição”. Ao explicar como concebeu seu poema “O Corvo”, Poe explica a escolha do tema central, a morte de uma bela mulher, por ser este “o mais poético dos temas”. 

Cortázar observa que “nada de livre há nessa imposição profunda da sua natureza”. O tema é poético para Poe, por corresponder a uma obsessão pessoal sua, mas mil outros poetas se sentirão autorizados a escolher mil outros temas como “o mais poético”, de acordo com suas próprias idiossincrasias.

Grandes artistas são, em geral, grandes intuitivos que se deixam arrebatar por obsessões que compreendem mal-e-mal. Passado esse arrebatamento inicial, eles constroem todo um edifício de estruturas cuidadosamente pensadas em cima desse alicerce de fantasias inconscientes. Tais fantasias, muitas vezes, são uma tubulação inesgotável de combustível que lhes sustenta o trabalho intelectual. Sem essa fixação quase monomaníaca no que lhe parece belo, ou importante, ou profundo, ou inquietante, ou vital, nenhum trabalho intelectual se sustenta, ou produz algo que preste.

Alguns artistas sentem isto com temas, situações humanas. Para outros pode ser uma simples afinidade com certas formas. 

Em The Creative Process (editado por Brewster Ghiselin), Julian Levi explica: 

“O artista se relaciona afetivamente com certas formas e desenhos. Acho que as suas escolhas são canalizadas pela compulsão de encontrar um veículo objetivo para imagens plásticas que ele tem no seu interior. Com certeza não sei por que, mas eu sou particularmente atraído por certas relações geométricas, certas formas retangulares e arabescos das quais nascem harmonias e ritmos peculiares. Ao decidir os temas sobre os quais vou pintar, sou irresistivelmente atraído para objetos que contenham o esqueleto desse tipo de estrutura visual.”

Isso tanto se dá com imagens quanto com estruturas narrativas. 

Por que John Dickson Carr escreveu dezenas de histórias sobre crimes impossíveis em quartos fechados por dentro? 

Por que Salvador Dali pintou chifres de rinocerontes a vida inteira? 

Por que Maurice Leblanc escreveu dezenas de histórias sobre crimes insolúveis do passado sendo decifrados no presente? 

Por que Machado de Assis dedicou-se a explorar a arte combinatória do adultério conjugal? 

Por que Francis Bacon pintava papas visualmente deformados? 

Por que Luís Buñuel passou a vida filmando um homem idoso tentando possuir uma mulher loura? 

Por que Borges escreveu repetidamente sobre labirintos?

Naquele mesmo livro, diz o artista Henry Moore: “Existem formas universais às quais cada indivíduo está condicionado inconscientemente, e às quais ele pode responder, desde que seu controle consciente não o bloqueie”. Quanto mais mergulhamos na obra de um artista mais percebemos as formas e temas que o impulsionam e o obrigam a criar.








2048) Micronações (1.10.2009)



Uma micronação é um pequeno território que se auto-proclama independente, elege um presidente (ou coroa um rei), manda compor um hino e desenhar uma bandeira, e daí em diante passa a se comportar como se fosse um país igual a qualquer outro, mesmo que tenha apenas meia dúzia de quilômetros quadrados e três dúzias de habitantes. Não preciso ir muito longe para me fazer entender: a “República de Princesa”, proclamada em 1930 pelo Coronel José Pereira, é um exemplo bem nosso de um processo que sempre ocorreu mundo afora, embora não conheçamos esses casos (como aliás pouca gente, fora da Paraíba, sabe da história de Princesa).

Talvez a mais famosa micronação do mundo seja Mônaco, que todo mundo conhece por causa do Grande Prêmio de Fórmula 1, do fato de que teve como princesa uma atriz de Hollywood (Grace Kelly), e dos cassinos de Montecarlo. Na verdade Mônaco é uma cidade-estado: os limites da nação coincidem com os limites da própria cidade, encurralada entre a França e o Mar Mediterrâneo. Sua área é de 2 km quadrados; sua população de 33 mil pessoas. Tenho pra mim que se Campina Grande cismasse dos pés e decidisse ficar independente, teria um cacife geopolítico muito maior.

Minto. A micronação mais famosa é a Cidade do Vaticano, uma ilha cercada de Roma por todos os lados. Dizem as más línguas, em todos os idiomas, que foi uma concessão territorial feita por Mussolini à Igreja Católica, o que teve como contrapartida uma prudente omissão papal diante das truculências subsequentes do fascismo. O Vaticano tem 0,44 km quadrados e uma população avaliada (em junho de 2009) em 826 habitantes.

Como se pode ver, são duas nonadas, duas tutaméias, duas pixilingas de país, e não obstante o mundo inteiro os conhece e respeita. O Vaticano rege a vida espiritual de um bilhão de pessoas. Mônaco é uma espécie de “Ilha de Caras” européia, um lugar que parece ter metade da população de gente rica e famosa, e a outra metade de “paparazzi”. Claro que nenhum dos dois resistiria a uma invasão armada, e até mesmo o Coronel Zé Pereira, se invadisse um dos dois, teria boas probabilidades de um belo triunfo militar.

Esta é uma questão interessante, porque a micronação é um fenômeno que irá se multiplicar no mundo caso venhamos a passar por uma grande catástrofe mundial (por exemplo, quando os Bancos quebrarem de novo e os Governos não tiverem 4 ou 5 trilhões de dólares sobrando; ou quando cair um grande meteoro no planeta). Quando um Estado central não consegue mais administrar a vida do país, a tendência é que ele se estilhace em pequenos feudos, onde caudilhos locais se encarregarão de armar parte da população para auto-defesa, e de coordenar a produção e distribuição de alimentos. Estas últimas décadas têm visto em grande escala a fragmentação de conglomerados em nações menores. Os exemplos mais evidentes são a URSS e a Iugoslávia. Gostaria de saber quantas e quais serão as principais micronações do mundo daqui a 50 anos.

2047) O respeito ou o afeto (30.9.2009)




Eu estava passando um fim-de-semana na casa de praia de uns amigos, anos atrás. Aliás, éramos eu e a torcida do Flamengo, porque tinha gente dormindo até na sala, e o almoço era em duas rodadas, cada qual com a mesa toda ocupada. 

A filha dos donos da casa, que teria uns 15 anos, tinha um jogo de xadrez bem bonitinho e chamava todo mundo para jogar. Joguei uma partida com ela no terraço, meio distraído, enquanto o pessoal tocava violão perto. Eu jogava, cantava um pouco, tomava cerveja... Levei xeque-mate, e a menina ficou super-orgulhosa. 

Cedi meu lugar a outro amigo, digamos que se chama Beto. Ele sentou-se, arrumou as peças, e mal começou a partida partiu pra cima “como a vaca partiu pra mestre Alfredo”. Massacrou o exército adversário e deu xeque-mate em cinco minutos. A menina recolheu as peças e recolheu-se, melancólica, para dentro de casa. 

Falei com Beto: “Devia ter deixado ela ganhar, como eu deixei.” (Mentira: se desse pra ganhar, eu tinha ganho.) Ele perguntou: “Pra quê deixar ganhar?” Eu: “Ela ficaria gostando de você.” Beto: “Eu não quero que ninguém goste de mim. Eu quero é que me respeitem”.

Esse dialogozinho de auto-ajuda ficou durante anos caraminholando no meu juízo, porque parecia uma conta de dividir com números primos, não fechava nunca um resultado definitivo. Tudo nessas frases é altamente questionável. 

Primeiro, a minha mentirazinha inofensiva. 

Segundo: a gente fica gostando de alguém a quem derrota num jogo? 

Terceiro: ser derrotado num jogo é a melhor maneira de ser gostado por alguém? (Se fosse, o Campinense seria o time mais querido do Brasil.) 

Quarto: quando a gente arrasa alguém num jogo, fica sendo respeitado? 

Quinto: o que é melhor, ganhar o afeto dos outros, ou ganhar-lhes o respeito? Sexto: uma coisa exclui a outra?

Desse mini-episódio me ficou a impressão de que eu era um deficiente afetivo. Facilitava a vitória de uma garota, num jogo bobo, apenas para que ela saísse dali pensando que eu era “um cara legal”, não por qualquer virtude visível em minha pessoa, mas porque eu entrara, como-Pilatos-no-Credo, num pequeno episódio de afirmação pessoal lá dela. 

E eu não “era legal”, na verdade; apenas quando alguém falasse um dia em mim ela se lembraria de um episódio “legal” que tinha vivido, derrotar um adulto num jogo. E eu era tão carente de “ser legal para os outros” que uma idiotice desse tipo era contabilizada como lucro em meu livro-caixa.

Por outro lado... E Beto, era carente do quê? Carente de respeito, como ele próprio deixou claro. Preferia ser temido a ser amado. Talvez sua truculência tivesse um aspecto positivo: eu podia ser tomado como hipócrita, ele não. Com ele, era pão-pão, queijo-queijo. Não estava ali a fim de representar, de ser bonzinho com ninguém. 

Queria respeito, exigia respeito, precisava desesperadamente de respeito, como um náufrago à deriva precisa de água potável, de preferência gelada, de preferência água-de-coco.






2046) David Lynch (29.9.2009)



Tempos atrás, juntei-me a uma fila de mais de cem pessoas, numa livraria do Rio de Janeiro, para pegar um autógrafo do cineasta David Lynch, que esteve no Brasil lançando seu livro mais recente. Comprei o livro, e meu filho pegou seu autógrafo no DVD de Eraserhead, o primeiro filme (e certamente o mais bizarro) da obra do diretor de O Homem Elefante, Twin Peaks, Veludo Azul e Cidade dos Sonhos. Lynch veio aqui para lançar um livro de anotações e reflexões sobre meditação transcendental, que ele pratica há décadas. O livro é dedicado ao Maharishi Mayeshi Yogi, acho que o mesmo que passou um tempo levitando com os Beatles no auge do sucesso.

David Lynch é o Luís Buñuel dos EUA. Por mais diferentes que sejam um do outro (e nem sei se o americano gosta dos filmes do espanhol) os dois têm em comum o gosto pelo imprevisível, pelo inexplicável. Não há nem pode haver nenhuma explicação racional que “feche a conta” de um filme de Lynch ou de Don Luís. Eles sempre deixam resto. Sempre deixam uma margem de obscuridade que nenhuma razão ilumina. E nessa margem de obscuridade estão ocultos conceitos centrais sobre a história narrada; o fato de que não podemos explicá-los faz com que qualquer explicação sobre a história esteja eternamente dependendo dessas variáveis que não conseguimos definir.

Os filmes de Lynch são mórbidos e doentios. E no entanto eles me parecem menos mórbidos e doentios do que os filmes estrelados por Chuck Norris e Steven Seagal. Por que? Os filmes destes últimos se baseiam numa equação muito simples: o mundo é um lugar selvagem, violento, cheio de gente má, e a única maneira de sobreviver nele é ser mais selvagem, mais violento e mais mau do que os que nos ameaçam. (Preciso citar Augusto dos Anjos, mais uma vez?) Já os filmes de Lynch nos dizem que o mundo é um lugar estranho, desagradável, inexplicável; e que o ser humano é uma espécie de trapo pensante flutuando na correnteza de um esgoto e fazendo gestos incompreensíveis para os ratos que o observam das margens.

Lynch é uma espécie de Samuel Beckett “pop”. Existe nos dois a mesma repulsa instintiva pelo corpo humano, pelo sexo, pelas funções fisiológicas, pelo mero fato de sermos feitos de carne e termos as necessidades da carne. Beckett explora essa visão-do-mundo num contexto de vanguarda e de máxima rarefação da linguagem, desbastando-a até o minimalismo. Lynch explora esses temas no contexto tecno-barroco do cinema comercial americano; em vez de limar a linguagem até não deixar quase nada, ele a destrói de dentro ao multiplicá-la, porque multiplica os curto-circuitos narrativos, deixando desnorteado o espectador de filmes como “A estrada perdida”. Beckett acha a vida humana absurda e isto o faz sofrer, o reduz ao silêncio. Lynch também acha, mas isto de certa forma o diverte. Em vez de reduzir-se ao silêncio, ele dinamita o discurso pelo lado de dentro, e faz um cinema americano que é a negação do cinema americano.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

2045) Contracapa de cordel (27.9.2009)



(Question 2010, de Katinka Mason)

& é o tipo do cara que passa e joga uma moeda na boca do sax do mendigo & as neves do Kilimanjaro hoje gotejam no deserto de Gobi & só teremos verdadeira civilização quando estivermos cercados de trilobites lendo trilogias & não há nenhum problema com dinheiro falso enquanto as duas partes não descobrem que é falso & aquele casal era como duas TVs ligadas em canais diferentes e uma de frente pra outra & tema para um curta: soltar dez pitbulls num hotel cinco estrelas e sair filmando & é feito insônia de pai na noite de núpcias da filha & minha mente é um rádio que capta mas não sintoniza & perdulário de pérolas, semeando sem medo o lamaçal das pocilgas & como um trombonista se esfalfando no violino mas com a consciência em paz de que pode fazer melhor & quem é o lêmur espectral escondido por trás das minhas pupilas? & ok, tá certo, agora temos um Presidente da República tatuado e com dreadlocks, pode ser que agora a coisa ande & vou implantar um chip de rastreamento em mim mesmo pra saber onde estou & um orgulho contra a dor, um sonho contra o desespero, um sarcasmo contra a fatalidade sem rosto & me lembro de tu até quando tou contigo & um galão de querosene, um isqueiro, um celular & no dia em que pudermos instalar uma mente eletrônica num corpo clonado o pronome Eu desaparece & a morte embeleza as lendas que abalaram a vida & um elefante furioso invade a festa e o anfitrião o abate com um adjetivo & o arco do violino desferindo setas melódicas em várias direções & só falta agora pedirem exame anti-doping para bandas de rock & não há palavra perdida quando se pede perdão & ratos enormes que nem cabem nos esgotos, perseguindo-se uns aos outros e afugentando os cães & sabia que se você colocar um espelho grande no chão, virado para o céu aberto, à noite, fechar os olhos e pular para cima dele, vai parar noutro universo? eu vim & robôs de olhos laser lendo versos em códigos de barras & sinto-me inteiro como um milionário que acabou de perder tudo & melodia que compus de memória e só recordo ao adormecer & queimando dinheiro pra não morrer de frio & a classe operária vai ao paraíso fiscal & pra quem é gato de beco, todo cão é pitbull & duzentos lençóis brancos nos varais e nem um projetor 16mm disponível & só estarei realizado quando inventar, e o Brasil repetir, um termo de gíria, um palavrão novo e uma anedota & a Internet é o lugar onde se pode ser famoso e anônimo ao mesmo tempo & um talismã de três sílabas que, qualquer que seja sua ordem, formam palavras sinônimas & não sei o que seria preferível a esta altura, se uma amnésia ou uma eutanásia & em breve teremos um celular em cada célula & tão desconfiado que tem olho mágico na porta do quarto de dormir & vou descer de balão em Macchu Picchu, e assistir o eclipse do sol & a cidade é uma mulher deitada no horizonte & um texto é como uma pirâmide, começa grande e vai reduzindo &

2044) Arte ou Crime (26.9.2009)



A grande polêmica ideológica de 2017 foi o chamado “Crime da Bienal”, ocorrido na capital de um país latino-americano. No dia da abertura da Bienal de Artes local, um turista dinamarquês morreu ao intervir numa instalação do artista Luís Morales. A instalação consistia em uma sala, vazia à exceção de um pedestal de madeira branca com metro e meio de altura, sobre o qual estava pousada uma pistola Magnum, presa ao pedestal por um cabo metálico (aparentemente, para não ser levada embora). Na parede em frente, um espelho de corpo inteiro, e o letreiro: “Do You Want to Kill Yourself?”. Os visitantes empunhavam a arma, apontavam para sua imagem no espelho, faziam piadas, iam embora.

Uma hora e meia após o início da visitação, o dinamarquês Gunnar Svenstrom, de 43 anos, apontou a arma para a cabeça da própria imagem e puxou o gatilho. Para susto e terror das demais pessoas, houve uma explosão, o espelho voou em pedaços em todas as direções, e verificou-se que por trás dele, num pequeno cubículo, havia uma pistola idêntica, aparentemente guiada (em movimentos, pontaria, etc.) por um controle remoto embutido na primeira. Quando o gatilho de uma foi apertado, foi a outra que disparou, matando instantaneamente o visitante.

O artista foi detido (e liberado sob fiança), acusado de homicídio doloso, em que há intenção de matar. Seus advogados alegaram que o gesto da vítima foi voluntário, e que a pergunta escrita era advertência bastante, não configurando ordem, coação ou injunção de qualquer natureza. A promotoria contra-atacou lembrando que em momento algum foi informado aos visitantes que havia uma arma de verdade escondida por trás do espelho, e que a vítima, muito compreensivelmente, julgara que se tratava apenas da proposição de um gesto simbólico, sem consequências mais sérias.

Três dias depois, o artista fez publicar nos principais jornais da cidade uma carta aberta à população, onde dizia, entre outras coisas: “À Arte cabe comunicar-se diretamente com o Inconsciente dos indivíduos, explorar suas pulsões, cristalizar conflitos, catalisar desfechos. A pergunta formulada em minha instalação foi respondida negativamente por todas as pessoas que ali passaram, precedendo o suicida. Vários empunharam a arma; nenhum puxou o gatilho. Que melhor demonstração de livre-arbítrio? Se o suicida disparou a arma, foi um gesto brotado das profundezas tectônicas de sua psique, foi um vigoroso SIM!, que ele pronunciou no deliberado e consciente gesto de apertar o gatilho. Cabe à arte desvendar e corporificar o destino individual dos que concordam em penetrar seu templo e submeter-se aos seus ritos. Uma sociedade como a nossa, que acaba de legalizar a eutanásia médica, não pode tratar com outro peso e outra medida a eutanásia psico-estética”. Pode ser sinal dos tempos, mas o fato é que Morales foi absolvido, em primeira instância, por 9 votos a favor e 3 contra.

2043) “The End” (25.9.2009)



Um editor literário me disse uma vez que ao receber um conto lia a primeira e a última página. Se visse algo interessante nelas, lia o conto inteiro. A teoria dele é que uma boa história deve agarrar o leitor de forma inapelável ao longo da primeira página; se não, o leitor vai embora e não volta nunca mais. Quanto à última página, ela deve não apenas “fechar a história”, mas deixar uma lembrança viva, mexendo, azucrinando-no-bom-sentido a memória do leitor por semanas, meses a fio.

O Website Filmcritic fez um levantamento dos 50 finais de filmes mais marcantes da história (http://tinyurl.com/elvcv). O saite observa que “final do filme” não quer dizer os últimos 20 minutos, mas, literalmente, a última cena do filme. Eu sempre vejo com restrições o uso excessivo do que chamamos de “final surpresa”, porque é um recurso que (principalmente na literatura, e no conto) foi usado até ficar “dessa finura”. Mas um grande final é sempre bem-vindo, quando é marcante, impressionante, quando não é uma mera reviravolta, mas uma informação nova que nos faz ficar pensando.

Comentando A Bruxa de Blair, diz Christopher Null: “O filme não é especialmente aterrorizante, a não ser nos dois minutos finais, que elevam o nível de tensão de 10 a 100”. Eu concordo. O estilo pseudo-documentário cria uma impressão de realidade (mesmo a gente sabendo que é tudo mentira), e os últimos minutos nos projetam no terror puro. Vi o filme na TV, numa tarde ensolarada, com gente em casa, e tremi como se estivesse a sós num iglu, em plena noite polar.

No outro lado do espectro de emoções, o final de Oito e Meio de Fellini (os personagens, vestidos de branco, dançando ciranda em torno da estrutura inacabada do cenário do filme) é talvez o final mais “pra cima” e menos piegas do cinema. Diz Chris Cabin: “Algum final de filme, ou mesmo algum filme, já conseguiu sintetizar melhor a compreensão da vida como esta grande e absurda piada que ela é?”

Finais-revelação são aqueles onde tudo que vimos antes precisa ser revisto, repensado, reinterpretado. É aquilo que se chama de “conceptual breakthrough”, ruptura conceitual, quando percebemos que estávamos avaliando tudo por um paradigma equivocado. Há muitos grandes exemplos; o saite lembra dois. No filme policial Os Suspeitos, Kevin Spacey monologa e improvisa diante do cético policial Chazz Palminteri, numa das maiores demonstrações da arte do repente na história do cinema, cujo sentido só é esclarecido no último minuto. Na FC, temos O Planeta dos Macacos com a descoberta (acho que a essa altura do campeonato posso dizer) da Estátua da Liberdade enterrada até a cintura na areia da praia, mostrando que o tal planeta é na realidade a Terra num futuro remoto. Virou uma imagem icônica, definidora, do “sense of wonder” que caracteriza a FC.

2042) O fim do mundo em 2012 (24.9.2009)



Falam que o mundo vai acabar em 2012 porque assim está previsto no calendário dos maias ou em algum outro códice obscuro. Não precisavam ir tão longe. Cientistas da NASA acham que esse apocalipse é possível, não por causa da ira dos deuses comedores-de-corações da Centroamérica, mas porque a estrutura elétrica que montamos para nosso planeta é extremamente vulnerável ao que eles chamam de erupções solares, provocando tempestades geomagnéticas. Quem diz, numa matéria da revista Wired, é John Kappenman, da empresa Meta Tech: “Temos uma grade de redes elétrica que cobre o país inteiro. Ao longo dos anos, voltagens cada vez mais altas têm sido aplicadas a ela. Isto aumentou nossa vulnerabilidade a tempestades geomagnéticas. Essas tempestades sempre existiram, mas involuntariamente nós criamos uma infraestrutura que serve como uma gigantesca antena para atraí-las”.

Segundo os cientistas, no estado de sobrecarga em que estão as redes elétricas dos EUA, uma dessas tempestades pode ser “fritar” toda a rede. O que causaria uma espécie de blecaute total em numerosas áreas... Bem, não sou engenheiro elétrico e não posso avaliar exatamente o que aconteceria. Mas Kappenman diz: “Grande correntes elétricas circulam em nossa rede, vindo da Terra através de conexões-terra em grandes transformadores. Precisamos disso por razões de segurança, mas as conexões-terra proporcionam entradas para cargas que podem danificar a rede”. Ou seja: é como se, tivéssemos construído algo que pudesse funcionar como um colossal para-raios. No dia em que cair um raio ali em cima, qual será o resultado?

Lawrence Joseph, autor de Apocalypse 2012:a Scientific Investigation into Civilization’s End, diz: “Transformadores de ultra-alta voltagem tornam-se mais delicados à medida que a demanda de energia cresce. Metade dos que temos hoje não podem mais suportar a corrente para a qual foram planejados. Um pouquinho mais de corrente pode “estourar” sua capacidade. Os de 500 e de 700 mil kilovolt são particularmente vulneráveis, e os EUA têm mais destes do que qualquer outro país”.

Transformadores desse tipo, segundo Kappenman, não podem ser consertados no local, geralmente há um período de um a três anos para que um deles seja substituído. Os cientistas acham que um grande curto-circuito custaria aos EUA de um a dois trilhões de dólares de prejuízo no primeiro ano, mas, mais do que isto, seriam necessários uns dez anos para recompor a rede do modo que era antes.

Pensamos muito no fim do mundo como sendo uma guerra nuclear ou o choque de um meteoro gigante. O fim do mundo, entretanto, pode ocorrer de uma maneira mais indireta, sem custar uma vida humana sequer. Pode ser apenas uma catástrofe tecnológica que faça nossas comunicações entrarem em colapso. E a economia. E a governabilidade das nações. E a produção de alimentos, que, ao fim e ao cabo, é quem define o limite entre a vida e a morte para bilhões de pessoas.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

2041) “Lóki” (23.9.2009)



Vi no Canal Brasil este documentário de Paulo Henrique Fontenelle sobre Arnaldo Baptista, o Arnaldo dos Mutantes, uma figura lendária no rock e na música brasileira em geral. A história de Arnaldo é conhecida por alto; o filme organiza os fatos de uma maneira eficiente, sem narração ou “voz autoral”, mas justapondo fatias de depoimentos de onde emerge o quebra-cabeças. Arnaldo (nascido em 1948) e seu irmão Sérgio (n. 1951) criaram Os Mutantes com Rita Lee, em São Paulo, e participaram da onda tropicalista dos anos 1967-70. Faziam algo que não era rock, nem pop, nem MPB, era uma mistura de tudo, com um mergulho corajoso nas novas sonoridades da época (distorção, variação de velocidade, vozes deformadas, colagem de sons, etc.). Veio uma época de muitas drogas, a banda se desfez, Arnaldo separou-se de Rita (com quem tinha casado) e passou por um período brabo de crises de depressão, internamentos em clínicas psiquiátricas, e uma tentativa de suicídio que o deixou dois meses em coma. Recuperou-se, mas com seqüelas. O filme é uma homenagem simpática, onde ele próprio comparece com depoimentos francos e honestos.

O mais curioso dos Mutantes é que eles foram, pelo menos no período 1967-70, a banda mais experimentalista que o Brasil já tivera, e numa época em que uma banda com esse perfil ganhava um programa próprio numa grande rede de TV aberta. Foi o único período na história da nossa música popular em que vanguarda e sucesso comercial foram sinônimos. Depois das brigas e separações, a banda ainda teve alguns sucessos nos anos 1970 mas depois sumiu de vez. Eis senão quando, na década de 1990, a fama dos Mutantes renasceu fora do Brasil, através de gente como Kurt Cobain, David Byrne, Sean Lennon e outros, que deram entrevistas dizendo que anos atrás existira no Brasil a melhor banda de pop-psicodélico do mundo.

A história de Arnaldo lembra a de Syd Barrett, o gênio maluco do Pink Floyd, e no documentário Sean Lennon faz essa conexão. Assim como ocorreu com Arnaldo, Barrett entrou pesado nas viagens de LSD e isto, combinado com outros problemas, o desmontou psicologicamente a ponto de seus amigos o eliminarem da banda, embora continuassem cuidando dele. Arnaldo recuperou-se muito melhor do que Barrett (que morreu há pouco tempo). Continuou gravando, tocando, e participou normalmente de um ”revival” que a banda teve em 2006, com Zélia Duncan substituindo Rita Lee.

Lóki é mais um filme de uma safra recente que reconstitui a vida de músicos brasileiros que morreram tragicamente ou ficaram avariados: Cazuza, Wilson Simonal, Raul Seixas (em preparo)... Temos uma fascinação por esses personagens, porque o Moloch da música exige esses sacrifícios. Alguns artistas ficam famosos e ricos cedo demais para entender que aqui é uma nuvem passageira. O Ego infla a ponto de elevá-los e desencostar seus pés do chão. Muitos não sobrevivem; nesse quadro trágico, Arnaldo Baptista é hoje um menino feliz.