sábado, 12 de setembro de 2009

1261) Manuscritos desaparecidos (29.3.2007)




(Samuel R. Delany)
Por alguma razão que os psicólogos talvez expliquem, a crítica literária tem um fascínio inesgotável pela Lenda dos Manuscritos Desaparecidos. Os exemplos são inúmeros. São livros escritos por autores de renome, que por uma razão ou outra se perderam e ninguém leu. Volta a meia um deles está sendo desenterrado. 

Recentemente os jornais noticiaram que uma autora holandesa, Hella Haasse, localizou em casa os recortes de um folhetim que publicou num jornal há 57 anos, e cujos originais se perderam. A autora não lembrava de ter recortado os capítulos, que só foram encontrados agora. 

A história é interessante, mas não se compara à valise cheia de manuscritos sem cópia que a esposa de Hemingway perdeu numa estação de trem de Paris. Ou à minha história preferida do gênero: Voyage, Orestes, romance de Samuel Delany, um dos grandes autores de ficção científica dos EUA.

Em 1963, Delany enviou este livro (cujo manuscrito datilografado tinha 1.056 páginas) para várias editoras, que o recusaram: o narrador era negro, o protagonista era gay... Delany, que na vida real é as duas coisas, viu que não era a hora de falar em tais assuntos. Anos depois ele ficou famoso com Dhalgren, outro romance de mil páginas, que vendeu um milhão de exemplares. 

Um dos editores de antes lembrou-se de Voyage, Orestes e ligou para o autor.Em 1963, um escritor de 22 anos não tinha dinheiro para fazer fotocópias de um livro. Não existiam, então, as hoje onipresentes máquinas xerox. Delany tinha apenas uma cópia datilografada. Seu agente literário precisou mudar de escritório, com dezenas de caixas de papelão com manuscritos. Uma dessas caixas, onde tinha ficado Voyage, Orestes após sua derradeira recusa, perdeu-se. 

Depois de algumas semanas de buscas, ele desistiu, e avisou ao autor. ”Não faz mal,” pensou Delany. Porque havia a cópia-carbono da versão datilografada, numa casa onde ele havia morado por alguns anos, na Rua 6, em Nova York. Estava num armário, em segurança, no porão da casa. 

Delany pegou o metrô e foi até lá, para descobrir que a casa tinha sido vendida há poucos meses, tinha sido demolida, e ali em cima ia ser construída outra coisa. Ele contactou os donos da casa, que lhe disseram: “Ficou tudo lá no porão.. só tinha uns trastes velhos... você falou que eram papéis sem importância...” E de fato eram, até o momento em que a primeira via se perdeu.

Um livro de mil páginas escrito ao longo de três anos merecia ter um melhor destino. Mas, como dizia o poeta, o Passado não está morto, ele nem sequer terminou de passar ainda. Eu não duvido que a próxima manchete “Autor encontra manuscrito desaparecido há meio século” se refira a Voyage, Orestes, quando uma caixa de papelão cheia de pastas amareladas pelo tempo aparecer num depósito em Coney Island, ou quando um comando da Guerrilha Literária Futurista abrir um túnel até o porão da casa da Rua 6.









1260) A diluição dionisíaca (28.3.2007)




(Dionisos)

Os filósofos descreveram estes dois aspectos do ser humano. 

O lado apolíneo, que vem do deus Apolo, é o lado do equilíbrio, da harmonia, das proporções corretas, da beleza obtida através da razão, do auto-domínio. 

O lado dionisíaco vem de Dionisos, ou Baco, que é o deus da farra. É o nosso lado exagerado, sensual, contraditório, voltado para a satisfação dos sentidos, das emoções, das paixões primitivas e corporais. 

O lado apolíneo nos conduz para as regiões mais elevadas da arte, da ciência e da filosofia; o lado dionisíaco nos conduz ao sexo, às drogas e ao rock-and-roll. 

Todo mundo tem algo de ambos, todo mundo oscila entre o predomínio de um ou do outro. Em alguns tipos humanos um deles prevalece; os nossos clichês e preconceitos nacionais se cristalizam muitas vezes em torno desses aspectos. Aos nossos olhos, um sueco ou um alemão são invariavelmente apolíneos; um jamaicano ou um camaronês têm que ser dionisíacos.

O Brasil é um quebra-cabeças em forma de colcha-de-retalhos, mas quem nos vê de longe, da Europa, digamos, tende a nos achar dionisíacos. Para eles, somos um povo eternamente voltado para a festa, a comemoração ruidosa, o prazer, a sensualidade, o hedonismo. E de fato, basta olhar em volta para ver o quanto isto está presente em nossa vida. E o quanto é justamente este aspecto que irrita e impacienta muitos dos nossos intelectuais, que vêem o povo pulando carnaval ou dançando axé-music na praça e dizem: “Por isso que o Brasil não vai pra frente!”

Esta é uma questão interessante, porque o dionismo (valha a palavra nova) não é bom nem mau, em si, é apenas uma possibilidade do ser, tanto quanto o seu reverso, o apolismo. 

Se me perguntassem a proporção ideal entre os dois eu diria que precisamos ser 51% apolíneos e 49% dionisíacos. Por que? Porque para mim existe um princípio fundamental na natureza, inclusive a natureza da alma humana, que é o equilíbrio. Sem equilíbrio, a coisa desanda; e o equilíbrio, virtude suprema, é uma característica apolínea.

Para esta questão, vale a lei do mel e da farinha: quando temos muito de um, precisamos equilibrar as coisas adicionando o outro. Quando vivemos num ambiente basicamente apolíneo, a tendência é irmos nos tornando cada vez mais sérios, cada vez mais formais, cada vez mais civilizadamente escandinavos. Aí é preciso que Dionisos entre pela janela para bagunçar as coisas, para instaurar por alguns momentos o Reino da Gréia e da Bagunça. 

Por outro lado, quando o mundo está bagunçado demais, festivo demais, permissivo e hedonista demais, e principalmente quando tem grupos econômicos fortíssimos impondo esta situação porque extraem dela enormes lucros, é preciso a gente chamar Apolo e a voz da razão. Nem a ditadura, nem o caos. Equilíbrio acima de tudo, para que Apolo e Dionisos possam conviver pacificamente. Festa é bom, mas o ano letivo tem que começar em algum momento.






1259) “Doidinho” (27.3.2007)




Continuação de Menino de Engenho, este romance de José Lins do Rego é também uma ruptura. O livro anterior era rural, este é interiorano (chamá-lo de “urbano” seria exagero). O anterior trazia para o leitor dos anos 1930 a novidade de um ambiente exótico, os engenhos de cana-de-açúcar da Zona da Mata paraibana. Este, contando a vida de Carlinhos no internato, perde o exotismo de superfície. Molda-se com mais facilidade à mente do leitor, que já lhe conhece a ambientação através do clássico com que é tantas vezes comparado: O Ateneu de Raul Pompéia. Valeria a pena rastrear na literatura brasileira o sub-gênero “Romance (ou Conto) de Internato”, a que pertencem estes dois títulos. Pela importância que os colégios internos tiveram na formação escolar e literária de tantos brasileiros de famílias abastadas, a lista deve ser longa, embora o único outro título que me ocorra à memória seja o conto “Pirlimpsiquice” de Guimarães Rosa, uma das escassas histórias não-rurais do autor.

A leitura de Doidinho (1933) me traz à mente uma obra com a qual parece não ter nada a ver: Anos de Ternura (“The Green Years”, 1944) de A. J. Cronin. Meu pai tinha as coleções completas de Zé Lins e de Cronin editadas pela José Olympio nos anos 1950, a de Cronin em verde, a de Zé Lins em azul-marinho. Anos de Ternura, posterior a Doidinho, mostra como mais importante do que a influência de um autor sobre outro é a influência de mundos semelhantes sobre mentes parecidas. As angústias e os deslumbramentos do menino irlandês num colégio da Escócia não são muito diferentes do que Carlinhos vem a conhecer no colégio de Itabaiana. Os livros de Cronin e de Zé Lins conheceram o sucesso popular em virtude das mesmas qualidades: uma memória vívida a serviço da imaginação romanesca; estilo claro, mesmo quando o pensamento é tortuoso; senso de humor; senso do melodrama; crítica social por um viés humano, mais do que político.

Doidinho ocorre numa zona intermediária entre o mundo rural e o mundo urbano. No Capítulo 32, Carlinhos descobre a história de Carlos Magno e dos Doze Pares de França, clássico que hoje pertence mais ao sertão nordestino do que à Europa tão globalizada e “high-tech”. Diz Carlinhos, com candura: “Grande livro, que nada tinha que ver com a vida, mas que me veio mostrar que eu era ainda criança, porque acreditei nele, da primeira à última página. (...) Era um livro de capa encarnada, grosso, de páginas encardidas, amarrotadas. Com ele aprendi a temer mais a Deus do que com o catecismo”. No Capítulo 29, ele descobre o Cinema, recém-instalado em Itabaiana, passando seriados, dramalhões, faroestes, comédias do “Bigodinho”. Aquelas projeções artesanais, primitivas, coruscantes, que Carlinhos descreve numa frase exemplar: “O cinema de Chico Sota tremia como um velho”. Um cinema de cordel, de clássicos toscamente adaptados, mas transmitindo a excitação da descoberta de uma maneira nova de enxergar o mundo.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

1258) Resistência Cultural (25.3.2007)




(Monteiro Lobato)


Às vezes me acontece estar numa mesa-redonda ou coisa parecida e alguém me apresentar assim: “E agora vamos passar a palavra a Braulio Tavares, escritor, compositor, um batalhador da resistência cultural nordestina”. Sei que é um elogio, e que se aplica a mim, até certo ponto; mas gostaria de ir agora um pouco além deste “certo ponto”.

“Resistência” lembra a Resistência Francesa, do tempo da ocupação da França pelos nazistas, na II Guerra Mundial. Indivíduos heróicos, agindo na clandestinidade, lutando contra um ocupante poderoso e bem armado, mas conseguindo atingi-lo de vez em quando por meio de táticas de guerrilha. Lembra também a luta atual de alguns grupos de iraquianos contra a presença do exército americano no país. (Nem todos, é claro. Grande parte não passa de gangues religiosas aproveitando o caos da guerra para liquidar os membros das gangues rivais.) A “resistência” é um movimento que cerra fileiras em torno de um território qualquer que está sendo invadido, e tentar rechaçar esta invasão.

Até aí, tudo bem. Se o nosso time está sendo atacado, precisamos de uma zaga eficiente. A questão é que, quando se trata de cultura nordestina, precisamos de muito mais do que meia-dúzia de zagueiros e volantes rebatendo bolas para a lateral. Precisamos de um meio-de-campo que receba essas bolas e as repasse para um ataque. Ou seja: não basta resistir ao lixo cultural que vem de fora, precisamos exportar o nosso Não-Lixo cultural, invadir os espaços alheios, proclamar a alta qualidade do que fazemos. A melhor defesa é o ataque.

Caetano Veloso, numa canção famosa, disse: “Sejamos imperialistas!” Como tudo que o baiano diz, tem uma ambigüidade crítica muito útil. Criticamos o imperialismo cultural que quer invadir nossa cultura, mas precisamos reconhecer que, se tivéssemos o mesmo poderio econômico deles, faríamos a mesma coisa. Então, tentemos fazê-la mesmo sem ter esse poderio. Sejamos imperialistas. Vamos fazer os filmes de Vladimir Carvalho passarem nos shoppings da Califórnia, vamos promover tributos a Jackson do Pandeiro em Paris, vamos obrigar “The New Yorker” a dar matéria de capa sobre Augusto dos Anjos. Como? Não sei, mas se a Bahia e Pernambuco fazem isso com seus figurões, então não é impossível fazê-lo.

Monteiro Lobato também afirmou: "Nada de imitar seja lá quem for. Temos de ser nós mesmos. Ser núcleo de cometa, não cauda. Puxar fila, não seguir". Lembro isto porque falar apenas de “resistência” acaba tendo uma conotação imobilista, conservadora. Temos que resistir às mudanças impostas de fora, e nesse impulso acabamos resistindo a qualquer mudança, acabamos imobilizando e fossilizando nossa própria cultura. Mas se somos um exército que invade o território alheio não podemos ficar imóveis, temos que nos expor ao imprevisível, ao imponderável, temos que nos adaptar, nos modificar, se quisermos sobreviver. A melhor maneira de resistir à expansão alheia é expandir-se.

1257) É proibido proibir (24.3.2007)



Entre as pichações de paredes de maio de 1968, no movimento estudantil-operário que botou Paris de pernas para o ar, uma das mais famosas é: “É proibido proibir”. Ela deu origem a uma canção de Caetano Veloso (“A mãe da virgem diz que não... e o anúncio da televisão...”) que levou uma tremenda vaia num festival de TV, não por causa da música em si, mas porque Caetano inventou de interpretá-la no palco vestindo roupas de plástico e acompanhado pelas guitarras elétricas que na época estavam provocando uma polêmica interminável na MPB. Reza a lenda que foi Guilherme Araújo, espertíssimo farejador de modismos (que faleceu dias atrás), quem praticamente obrigou Caetano a compor uma música usando este slogan, que, ele previa, ia pegar mais do que chiclete em cadeira de cinema.

Já vi muita gente questionando esta frase. Um professor de Lógica Formal tentou me demonstrar o quanto ela é absurda, visto ser uma frase que nega a si mesma num “loop” recursivo, equivalente ao de “Esta frase é uma mentira”. Ariano Suassuna se insurgiu, em mais de uma aula-espetáculo, contra a permissividade moral que ela implica: “Então quer dizer que se um sujeito quiser estuprar e matar uma criança nós não podemos proibi-lo? Eu, hein!” Um amigo meu, com vocação para professor de Melancolia, afirmou: “Dizem isto porque têm vinte anos e são radicais. Quando tiverem quarenta, dirão que É Coibido Coibir”.

Eu vejo a frase de um modo diferente. Levá-la ao pé da letra, claro, nem pensar. O verdadeiro libertário é contra as proibições, mas sabe que alguma coisa pode ser proibida. O que a frase significava para os rapazes e moças daquele tempo era “Você não pode me proibir todas essas coisas que vive me proibindo”. O “você” em alguns casos eram os pais, em outros casos o governo, e por extensão quem quer que tentasse nos impor uma proibição que sabíamos injusta. Não só injusta como eticamente comprometida. Pais que enchiam diariamente a cara de uísque proibiam os filhos de beber ou de experimentar maconha. A frase tinha então como subtexto: “Você não pode me proibir uma coisa que permite a si mesmo”. Claro que mesmo assim o pai poderia ter seus argumentos para justificar a proibição, mas naquele tempo a maioria dos pais não argumentava com os filhos. “Tá proibido e tamos conversados”. Se o filho recalcitrasse, tome bofete. Por isto, haja barricada nos bulevares, haja carro incendiado e paralelepípedo na testa dos gendarmes.

“É proibido proibir” é uma dessas frases que não exprimem uma verdade lógica. Exprime o dilaceramento emocional de quem experimenta uma situação-limite da qual só consegue se evadir pela ruptura de conceitos, pelo estilhaçamento da razão, pela violentação da lógica, pela afirmação paradoxal e contraditória de uma coisa impossível. Uma afirmação que traz em si uma crispação emocional de revolta e inconformismo, imediatamente reconhecível a quem já tenha se sentido vítima de uma injustiça.

1256) Ern Malley (23.3.2007)



Desde que assisti Verdades e Mentiras de Orson Welles (“F for Fake”), há quase trinta anos, passei a encarar de maneira diferente o falsificador de obras de arte. Ele difere do mero plagiário (que tenta fazer passar como sua a obra de alguém) ou o copista (que reproduz um quadro alheio e tenta vendê-lo como original). Naquele filme, Welles nos apresentava Elmyr de Hory, um sujeito capaz de pintar um Modigliani inexistente tão bem quanto Modigliani o teria feito. Isto é crime? É arte? É metacrítica? Cartas para a redação.

A fraude literária é um capítulo desse fascinante romance. Ela ocorre quando alguém inventa um autor inexistente, escreve obras e as divulga, atribuindo-as ao “fantasma”. Um caso famoso ocorreu na Austrália em 1943, em torno do escritor imaginário Ern Malley. Um belo dia, o editor da revista literária “Angry Penguins” recebeu alguns poemas enviados por uma leitora. Os poemas, meio vanguardistas, tinham sido escritos pelo irmão dela, falecido aos 25 anos. Max Harris, o editor, adorou os poemas e fez com eles uma edição especial da revista. Acabou sendo processado e preso porque alguns poemas tinham conteúdo obsceno. Mas o pior foi quando descobriu que “Ern Malley”, o falecido poeta, não existia, bem como sua “irmã”. Tudo era uma fraude concebida por dois desafetos literários seus, James McAuley e Harold Stewart.

Li uma resenha do livro (The Ern Malley Affair, de Michael Heyward) em que o episódio é reconstituído. É uma história de fofocas e picuinhas, típica da feira de vaidades que cerca a Poesia, país onde não circula dinheiro e onde a única moeda é o prestígio. Ou talvez fosse melhor dizer que a Poesia é um país onde não há dinheiro e cada poema é um cheque, que vale pela assinatura de quem o oferece. Cabe ao interlocutor decidir, pela assinatura, se o cara tem saldo na conta ou não.

Alguns episódios colaterais do caso são instrutivos. Numa universidade um professor de literatura colocou, lado a lado, um poema de “Ern Malley” e um do respeitado poeta inglês Geoffrey Hill, perguntando qual dos dois era a fraude. Deu meio a meio. Outro aspecto interessante destacado na resenha é que o livro de Hayward traz longos relatos das discussões, no tribunal, em que respeitáveis juristas analisavam os poemas de “Ern Malley” para que a Corte decidisse se eram obscenos ou não, e se eram autênticos ou não. Segundo o resenhador, “é uma redução-ao-absurdo da desconstrução literária”. Fiquei com vontade de encomendar o livro só para ler esta parte.

Quem decide se um verso é Poesia ou não? Se um verso de alguém é atribuído a outra pessoa isto pode torná-lo melhor, ou pior? Qual é a diferença entre uma fraude e um heterônimo? Um verso medíocre pode ser lido diferentemente, se descobrirmos que foi Drummond quem o escreveu? O monólogo de Hamlet torna-se literariamente inferior quando descobrimos que quem o escreveu foi um tal de Shakespeare? Cartas para a redação.

1255) “Menino de Engenho” (22.3.2007)



Menino de Engenho é o romance rural que me revelou, como a muitos brasileiros urbanóides, o cheiro doce-azedo dos canaviais, os bois mortos descendo na enxurrada da cheia, o estralejar do fogo nas taquaras, a senzala abafadiça com suas avós centenárias, o carneirinho arreado e selado para o sinhôzinho cavalgar, o escravo gemendo no tronco, Antonio Silvino de pé no terreiro com o bando perfilado às suas costas, as crueldades e as doçuras das sinhás da Casa Grande, as safadezas dos meninos com as negrotas pelo meio do mato. Devemos lembrar, também, que a adaptação de Walter Lima Jr. foi um dos filmes mais equilibrados e autênticos do Cinema Novo, e só não foi mais valorizado na época porque não era um filme sobre a Revolução, sobre o levante armado dos camponeses, e não se parecia em nada com o cinema de vanguarda europeu. (Na melhor das hipóteses, parecia um roteiro memorialista de Fellini filmado por Kurosawa.)

Dizem os críticos que quem revolucionou a cabeça do jornalista Zé Lins foi seu encontro com Gilberto Freyre. Este o convenceu de que era possível fazer romance sem pensar na literatura européia, usando apenas duas armas: a língua brasileira e a vida brasileira. Bastava isto para criar uma Literatura, e o romance regionalista da década de 1930 foi a melhor prova. Muita gente achou, depois do sucesso de Zé Lins, que tinha de escrever como ele e tinha que recordar coisas parecidas com as que ele recordava. Equívoco mais comum do que se pensa. Hoje está cheio de gente achando que para ser bom escritor tem que escrever como Jorge Luís Borges ou Guimarães Rosa. Zé Lins descobriu que já tinha em si todo o necessário para fazer grande literatura, que bastava olhar para dentro e narrar para fora. Daí em diante, foi um livro por ano, cada qual melhor do que o outro. Pelo menos metade de sua longa obra é de nível muito alto, ainda hoje.

Menino de Engenho, curiosamente, começa com uma cena de melodrama urbano (marido ciumento mata a mulher a tiros) e esta tragédia não tem prosseguimento na narrativa. O filho único é mandado para morar com o avô, e aos poucos ficamos sabendo que o pai era mentalmente instável e estava agora num manicômio. Como é de se esperar, ninguém fala as coisas às claras para o menino, e toda sua infância se passa cobrindo com camadas e mais camadas de experiências novas e explicações novas este fato central misterioso, cuja única justificativa é mais misteriosa ainda: a Loucura.

Não fosse esse núcleo doloroso, Menino de Engenho talvez fosse apenas um romance bucólico de exaltação às simplicidades e encantos do mundo rural. Do jeito que é, é uma história sofrida, onde cada experiência nova faz atrito na sensibilidade exposta do garoto, que tem um olho infalível para as violências, as crueldades, as coisas que ninguém explica. É um narrador de romance psicológico contracenando com personagens e ambientes de um romance de costumes regionalistas

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

1254) O poço artesiano (21.3.2007)




(Luzes da Cidade)

Reza a lenda que, durante as filmagens de Luzes da Cidade, Charles Chaplin empancou num detalhe não previsto no roteiro. A história tinha que aproximar o Vagabundo, seu clássico personagem, de uma florista cega, que deveria confundi-lo com um sujeito rico. Chaplin foi filmando até chegar à cena do primeiro encontro dos dois, e aí parou. 

Como fazer (ainda mais num filme mudo) com que a cega confundisse o Vagabundo com um ricaço? Todo dia a equipe ia para o estúdio e ficava esperando. Em vez de filmar as cenas seguintes, como se faria hoje, o diretor decidiu que a filmagem só continuaria depois que aquela cena específica fosse feita.

Acabou sendo, depois de semanas de espera e milhares de dólares gastos em vão. Chaplin pensou num engarrafamento de trânsito. O Vagabundo, para chegar à calçada passaria por dentro de uma limusine cujo banco traseiro estava vazio. Ele abria a porta, entrava, passava por dentro do carro, saía do lado oposto, batia a porta e chegava à calçada. 

A florista cega percebia apenas que aquele homem de voz macia que conversava com ela tinha saltado de dentro de um carro elegante. (Podemos supor que a cega sabe distinguir, pelo barulho, uma limusine de uma fubica).

O que quero comentar não é a cena em si, mas durante quanto tempo podemos bater numa mesma tecla, à espera da solução de um problema. Isso é discutido muitas vezes em Administração com a metáfora do poço artesiano. Você sabe que existe água naquela área. Perfura cinco metros, e nada. Perfura dez metros, e nada. Vinte, e nada. O que é mais sensato: continuar perfurando ali, ou começar outro poço um pouco mais adiante? 

Isto se liga ao que discuti recentemente no artigo “A morte quântica de James Kim” (13 de dezembro), em que um sujeito, preso com a família numa tempestade de neve, não sabia se ficava abrigado no carro ou se saía em busca de socorro. Saiu, morreu de frio, e o socorro encontrou o carro, salvando a família. Mas como ele poderia saber? Estava cavando no escuro.

No caso de Chaplin, tudo tem a ver com a teimosia do diretor e a fortuna de que o estúdio dispõe. Alguns empreendimentos artísticos estão dando prejuízo até hoje, como o disco do Guns’n’Roses Chinese Democracy, no qual já se gastaram milhões de dólares, e que já passou para a história como O Disco Mais Caro do Rock – e nunca foi lançado, porque até hoje (2007) não ficou pronto. Os músicos brigam entre si, brigam com os produtores, os produtores com o estúdio, o estúdio com a imprensa, os dólares continuam fluindo para o ralo, e o disco só deve ficar pronto, profeticamente, quando a China se tornar de fato uma democracia. 

O disco do Guns é o exemplo mais claro de um poço artesiano que já vai com quilômetros de fundura sem encontrar água. Claro que seus engenheiros têm todo o direito de supor que o lençol freático deve estar situado nos próximos metros, e acham melhor continuar apostando no sucesso final do que dar por perdido todo o investimento feito até agora.






1253) O prostiturismo (20.3.2007)


Millôr Fernandes situou a problemática do turismo numa frase, como sempre, brutalmente veraz: “Transformar sua cidade em atração turística é como colocar sua mãe na Zona”. Precisa dizer mais? Existem dualidades conflitantes nesse negócio de turismo. O turista alemão, louro e obeso, tem pela nossa cidade um interesse muito maior do que temos pela pessoa dele. Ele só nos interessa porque dispõe de dólares para espalhar à mão-cheia. Queremos os turistas em nossos shoppings, nossas lojas, nossos restaurantes. Se viessem aqui sem um tostão, apenas para andar na rua e fazer perguntas sobre nossa cidade, nossas vidas, nossos planos para o futuro, nossa opinião sobre a existência de Deus ou sobre o formato do Universo, nós os correríamos daqui a vassouradas. Não queremos o interesse espiritual deles. Queremos a grana, não é mesmo?

Aí, quando eles tentam estabelecer conosco uma relação prostitucional, ficamos ressentidos. Mas o modo como o turismo se organiza (“nós oferecemos as belezas naturais, vocês oferecem as riquezas artificiais”) conduz fatalmente a isto. Nem todos os turistas vêm pensando apenas em pegar nossas mulatinhas impúberes e conduzi-las ao motel mais próximo. Mas desde que se estabelece um interesse prioritário pelo dinheiro que deixarão aqui, qualquer um que tenha dinheiro se sente no direito de trocar esse dinheiro pelo que mais lhe interessa. Não importa se o que ele vem visitar são igrejas barrocas ou mulatas boazudas; o dinheiro que deixam aqui tem o mesmíssimo valor. Se não é isso que queremos, então vai ser preciso fazer muita força. Cuba foi o bordel dos EUA durante muitos anos; fizeram uma Revolução Socialista para acabar com isto (entre outras coisas) e hoje, meio século depois, Cuba voltou a ser bordel (pelo que me contam; nunca estive lá).

Existem outras formas de fazer turismo? Eu, pelo menos, sempre fiz turismo por outras razões. Existe o turismo da fantasia simbólica, que faz um brasileiro abestalhado sair daqui até Liverpool (como ainda pretendo sair um dia) só para tirar uma foto junto a uma placa onde está escrito “Penny Lane”, ou cruzar metade do mundo (como ainda farei) para ver em Hiroshima a abóbada que sobreviveu à explosão da bomba. Por que as pessoas fazem isto? Porque se sentem intimamente ligadas, por questões espirituais ou artísticas ou literárias ou religiosas ou políticas – ou seja, por questões culturais – a lugares distantes. Um amigo alemão quase me estrangula uma vez porque afirmei que mesmo morando no Rio não sabia onde ficava o Museu Carmen Miranda. Já recebi em Campina Grande jornalistas que queriam conhecer a casa onde morreu o cangaceiro Antonio Silvino (não existe mais; ficava na Praça Félix Araújo, no Monte Santo). Podem ser motivos meio bobos para se fazer turismo, mas são motivos verdadeiros. Quem visita Veneza, o Cairo, Praga, Ouro Preto, o Lago Ness, Waterloo, Cordisburgo, Graceland, não vai atrás das menininhas locais.

1252) O roteirista e o diretor (18.3.2007)



(Guillermo Arriaga)

A imprensa tem debatido o recente arranca-rabo entre o diretor mexicano Alejandro González Iñarritu e o seu roteirista Guillermo Arriaga. A dupla fez três filmes em parceria: Amores Brutos (que vi e achei excelente), 21 gramas e Babel. Ao que parece, romperam porque Iñarritu achou que o roteirista estava aparecendo demais, dizendo-se co-autor dos filmes, etc. e tal.

Já vi este filme antes. Foi escrito pelo mesmo roteirista, que se chama “Vanity Fair”. É a mesma pinimba que separou Hitchcock do ótimo e hoje esquecido John Michael Hayes, que em apenas três anos de parceria escreveu para o mestre Janela Indiscreta, Ladrão de Casaca, O Terceiro Tiro e O Homem que Sabia Demais, Hayes não era o autor das histórias originais (todos os filmes foram adaptados de contos ou romances alheios). Mas conhecia a cabeça e o método de trabalho de Hitchcock, e colocava no papel coisas que certamente deixavam o diretor “se coçando” para entrar no estúdio e começar a rodar.

Para mim, um filme é do diretor, para o bem ou para o mal. É ele quem faz o filme prestar ou não. No chamado “cinema de autor”, que foi entronizado nos anos 1960, o roteirista era apenas um talento a mais contribuindo para concretizar a visão do diretor. Não lembro de casos, no chamado “cinema de arte”, de roteiristas que impusessem sua “visão” a um diretor, de diretores que se limitassem a cumprir obedientemente o que o roteirista tinha escrito. Essa obediência do diretor ocorria, ironicamente, dentro do esquema industrial de Hollywood, em que muitos diretores filmavam de forma escrupulosa e burocrática o que tinha sido colocado no papel, sem ousar mexer uma linha de diálogo. Isto significava uma ditadura dos roteiristas? De jeito nenhum: os próprios roteiristas trabalhavam com o Produtor, este sim, o chefão onipresente, olhando por cima do seu ombro. É o chamado “cinema de produtor”, em que o dono do filme contrata A para escrever, contrata B para dirigir, e quem não o fizer de acordo com sua vontade é substituído.

No cinema de autor, o roteirista levanta a bola para o diretor cortar. Dá o passe. Faz a assistência. Como no esporte, sua função é essencial; mas quem faz a jogada decisiva é o outro. Roteirista algum pode prever e redigir tudo que aparece na imagem, tudo que acontece num filme. Desempenho dos atores, jogos de luz e cores da fotografia, adequação de cenários e figurinos... Ele pode sugerir, mas não cria. Cabe a ele a primeira, mais humilde e mais essencial das funções: contar uma boa história. Cabe ao diretor filmar imagens que, além do valor-em-si que terão como imagens, consigam contar a mesma história que o roteirista contou em palavras. O melhor roteirista não é o cara que escreve bem, não é o bom escritor. O melhor roteirista é o cara que pensa em forma de imagens luminosas em movimento, mas não sabe ou não consegue filmá-las. O melhor roteirista é o diretor frustrado.