sábado, 12 de setembro de 2009

1259) “Doidinho” (27.3.2007)




Continuação de Menino de Engenho, este romance de José Lins do Rego é também uma ruptura. O livro anterior era rural, este é interiorano (chamá-lo de “urbano” seria exagero). O anterior trazia para o leitor dos anos 1930 a novidade de um ambiente exótico, os engenhos de cana-de-açúcar da Zona da Mata paraibana. Este, contando a vida de Carlinhos no internato, perde o exotismo de superfície. Molda-se com mais facilidade à mente do leitor, que já lhe conhece a ambientação através do clássico com que é tantas vezes comparado: O Ateneu de Raul Pompéia. Valeria a pena rastrear na literatura brasileira o sub-gênero “Romance (ou Conto) de Internato”, a que pertencem estes dois títulos. Pela importância que os colégios internos tiveram na formação escolar e literária de tantos brasileiros de famílias abastadas, a lista deve ser longa, embora o único outro título que me ocorra à memória seja o conto “Pirlimpsiquice” de Guimarães Rosa, uma das escassas histórias não-rurais do autor.

A leitura de Doidinho (1933) me traz à mente uma obra com a qual parece não ter nada a ver: Anos de Ternura (“The Green Years”, 1944) de A. J. Cronin. Meu pai tinha as coleções completas de Zé Lins e de Cronin editadas pela José Olympio nos anos 1950, a de Cronin em verde, a de Zé Lins em azul-marinho. Anos de Ternura, posterior a Doidinho, mostra como mais importante do que a influência de um autor sobre outro é a influência de mundos semelhantes sobre mentes parecidas. As angústias e os deslumbramentos do menino irlandês num colégio da Escócia não são muito diferentes do que Carlinhos vem a conhecer no colégio de Itabaiana. Os livros de Cronin e de Zé Lins conheceram o sucesso popular em virtude das mesmas qualidades: uma memória vívida a serviço da imaginação romanesca; estilo claro, mesmo quando o pensamento é tortuoso; senso de humor; senso do melodrama; crítica social por um viés humano, mais do que político.

Doidinho ocorre numa zona intermediária entre o mundo rural e o mundo urbano. No Capítulo 32, Carlinhos descobre a história de Carlos Magno e dos Doze Pares de França, clássico que hoje pertence mais ao sertão nordestino do que à Europa tão globalizada e “high-tech”. Diz Carlinhos, com candura: “Grande livro, que nada tinha que ver com a vida, mas que me veio mostrar que eu era ainda criança, porque acreditei nele, da primeira à última página. (...) Era um livro de capa encarnada, grosso, de páginas encardidas, amarrotadas. Com ele aprendi a temer mais a Deus do que com o catecismo”. No Capítulo 29, ele descobre o Cinema, recém-instalado em Itabaiana, passando seriados, dramalhões, faroestes, comédias do “Bigodinho”. Aquelas projeções artesanais, primitivas, coruscantes, que Carlinhos descreve numa frase exemplar: “O cinema de Chico Sota tremia como um velho”. Um cinema de cordel, de clássicos toscamente adaptados, mas transmitindo a excitação da descoberta de uma maneira nova de enxergar o mundo.

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