quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

0757) Eu blogo, tu blogas (21.8.2005)



O caro leitor ou a cara leitora tem um blog na Internet, ou já teve? Então está devendo um dólar a Jorn Barger, e se cada um desses numerosos devedores comparecesse na caixinha quebraria o maior galho para esse sujeito que é mais um dos heróis anônimos do ciberespaço. Já falei aqui nos blogs (“Blog”, 17.2.2005) e já homenageei Scott Fahlman, o cara que inventou o emoticon, aquela carinha engraçada tipo :-) feita com sinais de pontuação (“Os emoticons”, 15.8.2003). Pois agora quero tirar um chapéu metafórico para o sujeito que inventou a palavra “weblog” para esta mistura de diário íntimo e manifesto público, de caderneta de anotações e de discurso-numa-caixa-de-sabão no meio da praça, este sucedâneo da poesia mimeógrafo, do jornal mural e da carta pros amigos.

Barger tinha uma página na World Wide Web, “a rede do tamanho do mundo”, intitulada “Robot Wisdom”, onde ele colocava todas as coisas interessantes que achava na Internet, onde garimpava o dia inteiro. Isto era no final de 1997, e o título da página era “Robot Wisdom WebLog”. Vejam a colocação da maiúscula: ela indica que se trata de uma palavra composta de “web + log”, sendo que “log” significa diário, livro de anotações periódicas. Coube a Peter Merholz, em 1999, quebrar a palavra de maneira diferente: “we + blog”, criando um verbo novo: “nós blogamos”. Blogar virou sinônimo de manter uma página da Web onde o titular “posta” (verbo típico do jargão dos blogueiros) textos periodicamente, às vezes todos os dias e até várias vezes por dia, o que dá aos blogs adolescentes essa equivalência aos diários ou agendas onde registram suas emoções e os fatos do seu cotidiano. Um blog, tipicamente, permite a colagem de fotos e ilustrações, permite que se coloquem links para outras páginas da Web, e permite também que os leitores postem os seus comentários a qualquer material incluído no blog, os quais podem ser lidos por todo mundo. Um blog é um empreendimento pessoal, mas interativo.

Jorn Barger ainda mantém o seu “Robot Wisdom”, que pode ser acessado em: http://www.robotwisdom.com/ . Ele não é de postar comentários longos, e seu blog hoje é uma infindável coleção de links com descrições breves. Barger é um típico nerd da geração Internet (hmmm, acho que acabei de inventar uma palavra nova, “internerd”). Leitor de filosofia, de misticismo oriental, de James Joyce e de informática, sempre teve um problema danado com essa coisa irritante que é ganhar dinheiro (“mon semblable, mon frère!”). Bateu cabeça pra lá e pra cá, e meses atrás um jornalista o encontrou na rua com um cartaz: “Inventei a palavra blog e nunca ganhei um centavo”. Morava na casa de amigos, e sobrevivia com um dólar diário. Vamos, pessoal. Nós todos que usamos estes troços não ficamos comprando produtos da Microsoft? Vamos mandar um dólar para Jorn Barger. Alguma coisa me diz que estamos financiando a América errada.

0756) “The Waste Land” (20.8.2005)



Ele já foi chamado “o maior poema do século 20”, e embora eu seja inimigo declarado de conceitos como “o maior, o melhor, o mais importante” não se pode negar que é um texto utilíssimo para entender o sentimento apocalíptico e sombrio da civilização ocidental na década de 1920. “The Waste Land”, de T. S. Eliot (título que Paulo Leminski, brilhantemente, sugeriu traduzir por “Devastolândia”) é um poema que fala de ruína, vazio espiritual. Algumas de suas expressões viraram citações recorrentes: “Abril é o mais cruel dos meses”, “Beladonna, Lady of the Rocks”, “ó doce Tâmisa, flui devagar, até que eu encerre minha canção...” É um belo poema, embora crivado demais de citações poliglotas para meu gosto. Fico pensando como seria a tal versão original que, reza a lenda, Eliot mostrou a Ezra Pound, e na qual Pound meteu a caneta, reduzindo o poema à metade e dando-lhe sua forma atual.

Mas quem sou eu para gostar ou não gostar? Textos assim dão à literatura algo do mundo alucinatório das artes plásticas, onde quadros famosos (pense Da Vinci, Van Gogh, Picasso) são objeto de análises químicas, raios-X, tomografias computadorizadas. Recentemente, um professor de literatura chamado Lawrence Rainey decidiu reconstituir o processo de escritura de “The Waste Land”. Em 1971, foi localizado um maço de páginas do manuscrito original, e Rainey decidiu compará-las com outros documentos escritos por Eliot no mesmo período. Ele recorreu ao FBI, que lhe repassou técnicas de identificação de máquinas de escrever. Usou micrômetros para medir e comparar a espessura de cada folha do manuscrito, agrupando-as. Visitou 22 bibliotecas e coleções de documentos sobre Eliot durante dois anos. Examinou um total de 1.200 páginas originais, incluindo 638 páginas de cartas escritas por Eliot entre 1912 e 1922.

A conclusão final de Rainey é de que Eliot escreveu “The Waste Land” entre janeiro de 1921 e janeiro de 1922, e não escreveu seguindo um plano, mas improvisando fragmentos que depois foram cuidadosamente encaixados uns aos outros. (E cá pra nós, é justamente a impressão que o poema dá) Com isto, ele contesta a interpretação dos críticos da época de Eliot, de que o poema era fruto de um meticuloso planejamento.

O livro de Rainey, Revisiting The Waste Land saiu pela Yale University Press, e mostra o quanto o valor de uma obra literária se mede pela reação que desperta nos que a lêem. Borges dizia que um clássico é um texto que se lê “com prévio fervor e misteriosa lealdade”. Não vejo melhor exemplo disto do que empreitadas como a do Prof. Rainey, que tem algo do detalhismo de um Sherlock Holmes misturado à obstinação de um Champollion e ao irracional amor (perdoem o pleonasmo) desses fãs dos Beatles como Mark Lewisohn, capazes de ouvir e anotar milhares de quilômetros de fita magnética para reconstituir todos os “takes” não usados em cada canção de cada disco.

0755) A palavra “instigante” (19.8.2005)



Existem palavras que entram na moda e tornam-se insuportáveis. Nos anos 1970, eram termos como “inserido no contexto”, que O Pasquim ridicularizou até não poder mais. Nos anos 1980, era o tal de “a nível de”, que, a nível de clichê, grudou mais do que um chiclete. E acho que começou nos anos 1990 a propagação virótica da palavra “instigante”, cujo surto até hoje não arrefeceu, pois focos de contaminação podem ser encontrados Brasil afora, incubados na população e transportados pela imprensa.

Manuseando o livro Caprichos & Relaxos de Paulo Leminski, leio na contracapa um texto de Caetano Veloso onde ele elogia o poeta curitibano e diz: “Deve ser instigante para os poetas do Brasil o aparecimento desses novos poetas todos. Leminski é um dos mais incríveis que apareceram”. E fiquei imaginando se seria este singelo texto (de 1983) o tal “Paciente Zero”, o caso isolado de onde toda a infecção se propagou. É provável que não seja, mas a idéia me ocorreu por se tratar de um texto de Caetano, que, como todo mundo sabe, é um notório criador de modas no Brasil. Toda vez que ele percute algo o País fica repercutindo por anos a fio.

Por que esta palavra grudou tanto? Sem dúvida porque é uma palavra útil. Quando dizemos que algo é instigante, queremos dizer que aquilo não nos deixa indiferentes. Instigar é provocar, inquietar, desassosegar, cutucar... Autores ou obras que fazem isto com a gente têm importância porque chamam a nossa atenção, nossa curiosidade, e nos obrigam a considerá-las de uma maneira mais séria, avaliar, analisar, tomar posição. Aquilo que nos instiga tem o poder de sacudir o nosso marasmo mental, a nossa preguiça, e de nos despertar um certo entusiasmo, até mesmo esse entusiasmo é motivado pela irritação, pela vontade de discordar daquilo que foi dito.

Sinônimos não faltam: “desafiador”, “provocativo”, “sugestivo”, “que dá o que pensar”, “bom de discutir”, “rico em idéias”, “perturbador”, “estimulante”... Sinto-me tentado a sugerir, para substituir “instigante”, a palavra “provocante”, mas é uma palavra vinculada a certo tipo de roupas femininas: “Essa secretária usa umas roupas muito provocantes, a gente não consegue se concentrar no trabalho”. De um livro ou de um autor talvez se possa dizer que são “provocativos”, embora este outro termo tenha um componente de desafio, de quem quer brigar com o outro. Talvez se pudesse dizer, então, que o livro de Leminski ou o CD de Caetano são “estimulantes”, porque nos estimulam à discussão, ao debate, à produção de idéias. Mas o adjetivo “estimulante”, por sua vez, está contaminado pelo substantivo correspondente, que dá a idéia de drogas ou de xaropes para abrir o apetite. Como se vê, muitas vezes uma palavra entra na moda por falta de um sinônimo que preencha todas as suas nuances, um sinônimo que na mesma fração de segundo estimule a mesma rede de sinapses vocabulares.

0754) Harry Potter is all right (18.8.2005)



I don’t know about you, dear reader – but I enjoyed the first two Harry Potter books, and didn’t read the others for the only reason that I have lots of more important books to read; and moreover, at this point of the championship, Ms. Rowling can do very well without my scarce and hard-earned reais.

Eu ia continuar em inglês mesmo, mas lembrei que devo satisfações a outra parte do meu público leitor, então bora simbora na língua de Camões. O fenômeno Harry Potter continua de vento em popa, e o recente lançamento de Harry Potter and the Half-Blood Prince trouxe mais alguns fatos interessantes para o folclore já farto que cerca a Pottermania. O que me traz aqui no momento é algo que li na Folha de São Paulo. As vendas antecipadas bateram recordes em vários países, e um balanço feito entre nossas livrarias mostrava que nos primeiros dias após o lançamento já haviam sido vendidas cinco mil cópias de HPATHBP somente aqui no Brasil. Tu já pensou uma coisa dessa? Cinco mil exemplares do livro em inglês foram comprados em nossas livrarias. E eu não tou falando naqueles livrinhos infantis com trinta páginas, cheio de figuras e uma letrona desse tamanho. São 652 páginas, meu camaradinha, e o preço é 17 dólares. Faça suas contas do peso total do investimento.

Cinco mil pessoas dispostas a ler Harry Potter em inglês me parecem um bom sinal. Claro que muitos escritores brasileiros que não vendem nada vão dizer que é essa concorrência desleal que está reduzindo as vendas dos livros de autores brasileiros. Besteira. Ora, os meus próprios livros não vendem quase nada, mas quem disse que a culpa é de Harry Potter? Todo escritor tem que procurar sua audiência, as pessoas que podem se interessar por aquilo que ele tem a dizer. A maioria não consegue encontrar; paciência. A sra. Rowling encontrou o público dela, e pouco importa se são filhos de americanos que moram no Brasil, se são garotinhos ricos que têm aulas particulares de inglês, ou se são garotos que ficam economizando a mesada durante os anos que J. K. Rowling leva pra escrever um catatau daquele tamanho. Por que não? Eu faria o mesmo.

Sou escritor, e tudo que crie mais leitores no mundo é bem vindo. Acima disto sou leitor, e digo que qualquer maneira de amar a literatura vale a pena, num contexto em que tudo contribui para nos afastar dela. Não sou apocalíptico, não sou inimigo dos computadores nem dos “games”; em vez de jogar pedra na planta do vizinho, eu agôo a minha pra ver se ela cresce bem verde. (Esqueça o verbo, amigo – é licença poética.) O feiticeiro Potter e o mago Paulo Coelho, tão vilipendiados, têm mostrado a milhões de pessoas que livro é espelho, janela, tábuas-da-lei, retrato-do-mundo, tapete mágico. Você tem o direito de não gostar desses livros, mas eles acabam sendo um excelente adubo para as mentes jovens que daqui a dez anos estarão adentrando o universo de Guimarães Rosa ou Garcia Márquez.

0753) Combinação contra o feda (17.8.2005)



Faz uns quarenta anos que não jogo bola-de-gude, mas tem algumas expressões que marcam a gente. “Estica”, por exemplo, é quando a gente alveja de perto e com força a bola do adversário, mandando-a à distância. E o que é um “feda”? Bem, um “feda” é um cara que ainda não conseguiu ser um “mata”. No sistema de jogo que aprendi, há um triângulo de buracos a serem acertados sucessivamente. Depois que o cara colocar sua bola em todos três, ele se torna um “mata”, ou seja, cada bola adversária que ele acertar é eliminada do jogo (quando o jogo é “na vera”, a bola é ganha de fato pelo mata, que a embolsa forever). Enquanto o cara não acertar aqueles três buracos, ele não é um mata, é um feda, ou “fedorento”. Muitas vezes o cara fica errando os buracos durante rodadas sucessivas, e morrendo de medo de ser acertado pelos matas, os quais, sádica e maquiavelicamente, se voltam contra ele, procurando fuzilá-lo de todas as maneiras.

Esta, amigos, é a “combinação contra o feda”, lição de vida que o jogo de bola-de-gude incorporou à gíria campinense, e talvez mundial. No mundo adulto, a combinação contra o feda ocorre toda vez que num círculo de sujeitos calejados e veteranos surge um novato cheio de empáfia, ou de sonhos ambiciosos, ou de boas intenções. É o “feda”. Contra ele mobilizam-se de imediato as velhas raposas, que sabem o quanto lhes custou chegar até ali, e que podem até nada ter em princípio contra o recém-chegado, mas querem testá-lo para saber se ele tem a casca grossa ou se vai falar fino no primeiro aperto que levar.

Ocorre em qualquer time de futebol quando o time vai mal e a diretoria contrata a peso de ouro um novato com a missão de ser o salvador da pátria (casos recentes: Dimba no Flamengo, o técnico Passarela no Corinthians). Os “matas” locais se juntam para sabotar e boicotar o “feda” recém-chegado. A nossa querida Seleção Brasileira está cheia de exemplos de jogadores que nunca tiveram a menor chance, porque jogavam contra os onze adversários e os dez “companheiros”.

Este é um dos numerosos ângulos deste filme que podemos chamar de “A tragédia do PT” ou “A Classe Operária é Expulsa do Paraíso”. O Brasil é governado há mais de cem anos (estou cravando o compasso no início da República, só para simplificar) por uma elite de “matas” que nunca deixou ninguém de fora do clube participar da festa. Houve o caso de Vargas, que ficou 15 anos como ditador; mas até ele dançou quando optou por um mandato legal, alvejado por um escândalo não muito diferente do de hoje. E houve o caso de Collor, outro “feda” bem sucedido mas sem base partidária: Direita e Esquerda uniram-se para defenestrá-lo dentro dos mínimos requisitos permitidos pela Lei. Lula e o PT são os novos “fedas” que sobem para o patíbulo por terem julgado ser o Palácio do Planalto o terceiro buraco que os tornava “matas”. Não, não era. O buraco do Poder, como sempre, é mais embaixo.

0752) As putas de Garcia Márquez (16.8.2005)




Memórias de minhas putas tristes, de Gabriel Garcia Márquez, é um desses livros crepusculares em que um sujeito começa a fazer o balanço da própria vida. 

Isto se refere tanto ao autor quanto ao protagonista, um homem que na véspera do seu 90o. aniversário sente-se só e pede para passar a noite na companhia de uma menina virgem. Sendo ele um freqüentador antigo e generoso do cabaré de Rosa Cabarcas, uma cafetina um pouco mais jovem do que ele, não é difícil ter o seu pedido aceito, embora a cafetina, como todo comerciante que se preze, alegue que o pedido dele é muito difícil e vai custar uma nota preta.

O enredo básico não difere muito de outras histórias já contadas pelo autor. O que ressalta neste livrinho de 130 páginas é, mais uma vez, a riqueza e a precisão dos detalhes de local e de época, que dão à obra de GGM aquele sabor peculiar entre o realismo e o barroco, pela impressionante proliferação de pequenos detalhes. E estes detalhes, em contrapartida, servem para montar o painel de uma cidade imaginária mas intensamente verossímil. 

O narrador é um dom-casmurro introvertido, que mora na mansão decadente que foi de seus pais (e da qual vai se desfazendo aos poucos, toda vez que tem uma despesa extra), e trabalha como decifrador de telegramas no jornal local, o qual lhe dá como prêmio de consolação o direito de publicar uma crônica por semana. 

Para alguns, pode parecer a decadência; para indivíduos ensimesmados, é o Paraíso Terrestre. A questão da solidão não se coloca, porque ali pertinho está Rosa Cabarcas e seu batalhão de beldades aquiescentes e compreensivas.

É uma história de amor, porque na idade do narrador do livro o ato sexual é como um prêmio de loteria: deve-se tentá-lo, mas é aconselhável não ir logo contando com ele. 

A garota que a mulher lhe oferece (e que ele chama de “Delgadina”, recordando-se de uma canção popular) prega botões numa fábrica de roupas durante o dia, e ao chegar no cabaré desaba num sono profundo do qual ele não ousa despertá-la. 

Começa aí uma curiosa relação amorosa entre o nonagenário e a adolescente, em que ele conversa com ela, enxuga seu suor (são aquelas noites quentes dos trópicos, fervilhantes de mosquitos), canta cançonetas de sua própria juventude, lê O pequeno príncipe – uma espécie de hipnopedia amorosa unindo este ancião cansado da falta de amor e esta garota cansada de trabalhar o dia inteiro. 

Os críticos sempre procuram elementos de Realismo Mágico nos livros de GGM (sentem uma obscura sensação de culpa se não o fizerem), e este romance que mistura A Bela (Adormecida) e a Fera passa tirando um fino no limiar do fantástico.

Márquez é um estilista brilhante que tem uma poderosa imaginação para contar histórias. Memórias... é uma noveleta que tem algo de ajuste de contas memorialista, e algo dos amores brutos de seus melhores romances, em que homens gigantescos se defrontam com meninas muito frágeis, com resultados imprevisíveis.






terça-feira, 13 de janeiro de 2009

0751) A ida e a volta (14.8.2005)


Era uma vez um jovem pastor espanhol, que vivia apascentando seu rebanho de cabras ou de ovelhas. Dormia numa velha igreja abandonada, ao pé de um enorme sicômoro que crescera por entre as ruínas. Uma noite sonhou com um tesouro, enterrado junto às pirâmides do Egito. Juntou tudo que tinha e saiu de mundo afora. Muitas peripécias e duzentas páginas depois, chegou ao pé da pirâmide, e foi cercado por tuaregues desconfiados. Quando explicou o que o trouxera até ali, o chefe do bando riu na cara dele. “És muito leso, ó jovem pastor que acreditas em tesouros. Eu sonho há anos com um tesouro que está escondido numa igreja em ruínas, nas raízes de um velho sicômoro. Mas tu acha que eu sou besta de perder meu tempo indo atrás disso?” O pastor pegou o caminho de volta, cavou nas ruínas da árvore, encontrou o tesouro e ficou rico, embora não tão rico quanto Paulo Coelho, autor de O Alquimista, onde esta história é contada.

Eu conheço essa história desde pequeno. Meu pai a contava como tendo acontecido com um rapaz que morava numa fazenda em Minas Gerais, que sonhou com um tesouro enterrado numa ponte do Recife, foi até lá, e um soldado de polícia lhe disse que sonhara com um tesouro enterrado numa fazenda assim-assim-assim, foi só voltar, tirar o tesouro e correr pro abraço. Minha irmã Clotilde usou essa história como uma das narrativas em seu livro A Botija. Aliás ela e Paulo Coelho estão em muito boa companhia, porque Jorge Luís Borges fez a mesma coisa em sua História Universal da Infâmia, no conto intitulado “História dos Dois que Sonharam” (que ele alega ter pegado das Mil e Uma Noites, noite 351): um sujeito no Cairo sonha com um tesouro em Isfahan, na Pérsia, vai até lá, encontra com um cara que sonhou com um tesouro no Cairo, bibibi, bobobó.

Plágio? Imitação? Inconsciente coletivo? Prefiro pensar que essas histórias tão diferentes, mas todas baseadas numa mesma mecânica estrutural, exprimem uma verdade profunda, através dessa estrutura mítica comum a todas. Existe uma sabedoria cósmica por trás de todo esse trajeto que, à primeira vista, é percorrido em vão. Uma pessoa simplória vai comentar; “Coitado! Morava em cima do tesouro, e teve que passar tanto sacrifício! Por que não sonhou logo com o tesouro no lugar onde estava?” A resposta para isso é (eita, meu destino é ser escritor de auto-ajuda!) que mais importante do que achar o tesouro é ter a experiência e a maturidade para administrá-lo, e isso o camarada só adquire fazendo a tal viagem aparentemente inútil.

E é a mesma verdade profunda expressa por T. S. Eliot nos Quatro Quartetos: “We shall not cease from exploration / And the end of all our exploring / Will be to arrive where we started / And know the place for the first time”. Ou seja: “Nossa exploração nunca vai cessar / e o fim de todas as buscas / será voltarmos ao ponto de partida / e conhecermos aquele lugar pela primeira vez”.

0750) Festa no Clube Dumas (13.8.2005)


Uma coisa que eu questiono muito é a mania de se publicar, após a morte de um escritor, tudo que ele deixou inédito. Em alguns casos (Fernando Pessoa, Kafka) vale a pena, porque o material inédito era igual ou superior ao que o cara tinha publicado. Mas na grande maioria dos casos o que se dá é a revelação constrangedora de tudo que o cara tentou e não deu certo. Alguém dirá: “Mas, se não prestava, por que o próprio autor ficou guardando?” Existem duas respostas. Uma, é que a gente sempre acha que um dia dá pra pegar aquele romance inédito de 200 páginas, cortar tudo que não presta, e aproveitar trechos que têm algum valor. Outra, é que independentemente do valor estético essas coisas têm um valor afetivo. Textos literariamente medíocres podem valer como registro de momentos da vida, de estados emocionais, uma espécie de diário íntimo que não devemos publicar mas que faz bem reler de vez em quando, até para podermos ter a ilusão de que evoluímos um pouquinho desde então. É como guardar os velhos cadernos do ginásio ou velhas agendas de vinte anos atrás. Ajuda a não esquecer quem fomos.

O bom, no entanto, é quando se descobre um manuscrito inédito de um autor, e aí há motivos para ir à janela e soltar uma pistola-de-3-tiros. Aconteceu poucos anos atrás com Julio Verne, de quem se encontrou o manuscrito de Paris no Século XX, livro que na época foi rejeitado pelo editor por ser pessimista demais. Aconteceu de novo agora, quando o pesquisador Claude Schopp, especialista em Alexandre Dumas, localizou na coleção de um obscuro jornal francês do século 19, Le Moniteur Universel, os 188 capítulos de Le Chevalier de Sainte-Hermine, um folhetim que Dumas deixou incompleto ao morrer em 1870. A morte do autor e a guerra franco-prussiana certamente ajudaram a mergulhar o folhetim no esquecimento. Em 1988 Schopp localizou o texto (em microfilme) numa biblioteca, e dedicou os anos seguintes a copiá-lo e corrigi-lo. Lançado em forma de livro em 2005 (com os capítulos finais, que Dumas não pôde concluir, escritos pelo próprio Schopp) o romance, com mais de mil páginas, virou best-seller na França. É como o sujeito morrer hoje e ainda ter livro sendo lançado em 2140.

Alguns leitores hão de recordar O Clube Dumas, de Arturo Pérez-Reverte, excelente romance de mistério lançado aqui no Brasil alguns anos atrás, em que um grupo de leitores fanáticos por Dumas se reúne para trocar informações sobre sua obra. O Clube deve estar em festa. Dumas escreveu copiosamente, e mantinha redatores assalariados a quem “terceirizava” partes da obra, como os autores de telenovela fazem hoje: explicam o que deve acontecer na cena, e o outro executa o trabalho braçal de escrever a ação e os diálogos. Tinha o propósito, como Balzac, de contar a história da França através de uma série de romances sucessivos, e é autor de uma frase deliciosa: “É lícito violentar a História, se com isto gerarmos um filho”.

0749) O ensino das ciências (12.8.2005)



Esta é uma questão que volta e meia retorna com força total (e mais ainda para quem tem filhos no colégio). Vale a pena mesmo estudar aquela xaropada toda? De que adianta saber de cor os elementos Monovalentes, Divalentes, Trivalentes e Tetravalentes? Algum dos caros leitores já precisou, na vida real, extrair uma raiz quadrada? Ou saber a diferença entre uma planta monocotiledônea e uma dicotiledônia, ou entre uma autótrofa e uma heterótrofa? Vocês lembram a fórmula de “x” que resolve uma equação do segundo grau? (Taí, essa eu lembro!).

Cada um de nós que é pai ou mãe já passou pela experiência de enfrentar um adolescente em patético desespero, perguntando: “Mas por que é que eu tenho que saber essas coisas? Será que eu vou precisar disso?” Minha geração foi uma geração privilegiada, porque quando chegávamos aos 16 anos terminávamos o antigo Curso Ginasial e tínhamos dois caminhos para escolher: o Curso Científico e o Curso Clássico. No Científico, iríamos estudar Física, Química, Biologia, Matemática, etc. No Clássico, as matérias seriam Latim, Filosofia, Sociologia, Geografia, História, etc. Eu não tinha a menor paciência nem o menor interesse pelas matérias do Científico, mas a escolha não era fácil, até porque corria à boca pequena que “fazer o Clássico era coisa de viado”. Graças a Deus fui reprovado na 3a. série ginasial, e com isto ganhei mais um ano para criar coragem.

E não é que eu detestasse a Ciência. Nessa época eu devorava livros de ficção científica à razão de um por dia, e tinha toda a curiosidade do mundo em saber qual o formato do Universo, se era possível viajar no Tempo, se existiam mesmo universos paralelos, se era possível interferir no mundo das partículas infinitamente pequenas... Naquele tempo não tinha Carl Sagan nem Stephen Hawking, infelizmente, mas só eu sei o quanto devo a livros como Nós e a Natureza de Paul Karlson ou O Livro da Natureza de Fritz Kahn, e a outros divulgadores científicos como George Gamow e Henry Thomas.

O que há é que o ensino das ciências no Colégio é uma massa enorme de informações a serem retidas na base do decoreba, e de fórmulas que devem ser exaustivamente praticadas para serem aplicadas como soluções “pré-moldadas” para quaisquer problemas. Coitados dos professores, os menos culpados por isto. O aluno quer passar, primeiro que tudo; e depois quer ter um diploma e conseguir resolver os problemas técnicos com que vai se deparar. O colégio não ensina a pensar a Ciência, questionar a Física, investigar a Química, explorar a Matemática. Nossos cursos secundários (e, ouso dizer, a maioria dos cursos universitários) são cursos técnicos, oficinas de qualificação de mão-de-obra técnica. Quando um garoto pergunta “para quê”, o pai não pode dizer: “Para entender o Universo e a Vida Humana”. Ele tem que dizer: “Pra ver se você se forma, e arranja um emprego melhorzinho do que o meu”.

0748) A desconfiança capitalista (11.8.2005)




Algum tempo atrás, a artista plástica Ana Teixeira foi parar na 5a. DP quando fazia uma “intervenção artística” na feirinha do Bexiga, bairro tradicional de São Paulo. 

Ali acontece toda semana uma feirinha numa praça da rua Treze de Maio. A artista montou sua barraquinha, e colocou uma placa: “Outra Identidade”. Ali, ela oferecia réplicas de carteiras de identidade nas quais, em vez do nome e da foto, o cliente podia escolher uma entre dez frases, como “ainda tenho tempo” ou “não tenho certezas”. 

Feita a escolha, a réplica era feita, plastificada, e a pessoa a levava consigo, deixando antes a sua impressão digital num caderninho que funcionava como uma espécie de “livro de presença”.

Ótimo! Em matéria de performance artística ou de instalação conceitual, acho muito mais interessante do que mandar cem baldes de lixo para a Documenta de Kassel sob o título “Pré-Apocalipse Pós-Moderno”. 

O interessante, no entanto, é a confusão que a artista causou sem querer. Uma mulher recusou-se a deixar a impressão digital no caderno: “Sei lá o que ela vai fazer com isso!” Não adiantou dizer que as digitais não eram identificadas como sendo de Fulano ou Sicrano. Gerou-se um bafafá, e algumas pessoas foram reclamar à polícia. 

O delegado ouviu ambas as partes e deu a sentença: “Não houve crime, foi só um mal-entendido, é um trabalho de finalidade artística, perfeitamente plausível”. Já pensou um delegado dizendo isso? Pra mim é prova cabal de que Deus existe.

Mas o mais cruel vem no fim da notícia, quando Ana Teixeira relata: “O que me impressionou foi a lógica do capital que rege a cabeça das pessoas. Todo mundo ficava me perguntando como eu estava fazendo aquilo sem ganhar nada, sem pedir pagamento. Alguém disse que, se pelo menos eu fosse patrocinada por alguma grande empresa, poderia acreditar em mim, mas como eu não visava nenhum lucro, devia estar com "armação'". 

Vejam como a profissionalização do esporte olímpico, por exemplo, já impregnou em nossa mentalidade coletiva a noção de que quem faz algum tipo de trabalho criativo (com o corpo ou com a mente) deve ser patrocinado por uma empresa e servir-lhe de garoto(a) propaganda.

Se todo mundo cobra pra fazer seja lá o que for, que papo é esse de Fulano fazer de graça? É uma lógica perversa, mas com uma relação profunda com o espírito dos tempos atuais (“Se todos nós fazemos assim na política, quem são esses caras para dizerem que não fazem também? Vão fazer, sim, deixa comigo”). 

Eu nada tenho contra o dinheiro (se vocês pensam que escrevo de graça aqui no JPb, podem tirar o cavalinho da chuva), mas o episódio de Ana Teixeira mostra que o mais difícil na arte de hoje em dia não é mostrar ao público que você é um grande artista. É convencer o público de que você não está fazendo aquilo somente pra faturar uma “baba” de grana em patrocínio, merchandising, verba por-fora e lavagem de algum caixa-dois.