segunda-feira, 27 de outubro de 2008

0621) Leituras aconselhadas (16.3.2005)




Acontece de vez em quando, e toda vez que acontece eu penso comigo mesmo: “Preciso preparar uma resposta para a próxima vez que acontecer”. Por alguma razão freudiana, nunca preparo (talvez a razão freudiana seja a vertigem do improviso, a fascinação pelo ato de abrir a boca e começar a falar sem ter a mínima idéia do que vou dizer). 

Mas voltando ao assunto principal, tudo isso ocorre quando alguém me diz: “Me aconselhe um livro bom”. Como diabo se responde a isto?

Não há conceito mais subjetivo e impalpável do que o de “um livro bom”. Pessoas gostam de ler diferentes coisas, por diferentes motivos. Eu não posso simplesmente aconselhar um clássico da literatura: “Leia Os Irmãos Karamazov...” Corre o risco do cara perguntar se eu próprio já o li, e eu ter que dar a humilhante resposta. (Me consolo em pensar que Jorge Luís Borges também não leu.) 

Muitas vezes o que o interlocutor quer é que lhe aconselhemos isso que hoje em dia se chama um livro “cult” – um livro bom, bem escrito, fascinante, que dê o que pensar, mas que por alguma razão seja conhecido por muito pouca gente, o tipo do livro que dificilmente veremos elogiado num suplemento literário. 

O que o nosso amigo quer equivale a nos perguntar “uma praia legal onde passar as férias”. Tá na cara que ele não quer ouvir como resposta “Porto Seguro” ou “Búzios”.

Como eu tenho fama de conhecedor de ficção científica, muitas vezes a pergunta é: “Qual o livro de FC que você me aconselha?” Fico igualmente perdido, a não ser que se trate de um amigo cujos gostos literários eu conheço bem. Porque aí posso pensar por associação de idéias. 

Eu digo: “Olhe, se você gosta de política e ciência, talvez goste de Os Despossuídos, de Ursula Le Guin – é a história de um sujeito dividido entre dois mundos, sabendo-se prestes a fazer uma descoberta científica que vai revolucionar a humanidade, mas para isto tendo que largar seu país pobre e socialista e ir trabalhar num país capitalista e corrompido, mas que vai lhe dar laboratórios à altura”. Onde se lê “país” leia-se “planeta”, aliás.

Aconselhar leituras é sempre problemático porque a gente vê num livro uma coisa, e o cara ao lado vê outra. 

Já me pediram um livro engraçado e eu propus O Pêndulo de Foucault

Já me pediram um livro erótico e eu aconselhei Noites do Sertão de Guimarães Rosa. 

Já me pediram um livro de amor e eu indiquei Fragmentos do Discurso Amoroso de Roland Barthes (talvez a única coisa inteligente já escrita sobre o tema). 

Já me pediram um livro de terror, daqueles de deixar o cara uma semana sem dormir, e eu (desta vez de propósito) indiquei As Veias Abertas da América Latina de Eduardo Galeano.

Aconselhar livros é pior do que alcovitar namoros alheios, porque nunca sabemos quando um casal livro-e-leitor vai se ajustar, se encaixar, se combinar. Melhor deixar isto entregue aos deuses do Acaso, e à bússola cega e clarividente de cada um.






0620) Zilka Salaberry (15.3.2005)



Morreu Zilka Salaberry, a Dona Benta do “Sítio do Picapau Amarelo”. Para mim é o caso típico da atriz de um papel só, embora eu saiba muito bem que Dona Zilka teve uma carreira longa e variada. Paciência. Anos e mais anos interpretando a matriarca do Sítio fixaram sua imagem de maneira indelével na minha (acredito que na de nós todos) memória afetiva.

Cresci devorando os livros infantis de Monteiro Lobato. Alguns deles, como Historia do Mundo para as Crianças, Emília no país da gramática, Serões de Dona Benta ou O Picapau Amarelo, não li menos de cem vezes. Por que? Acho que porque eu era meio burrinho e acabava me esquecendo, porque a releitura sempre me deu tanto prazer quanto a leitura inicial.

Nunca me dei bem com a literatura adulta de Lobato, que mesmo assim tem alguns contos bons. Mas o linguajar era pomposo, o que nos mostra que as crianças de 1930 eram mais contemporâneas nossas do que os adultos. Lobato e Malba Tahan formataram minha cabeça e a de mais de uma geração. Graças a eles dois, dezenas de milhões de brasileiros como eu escaparam da burrice. Um país que tem dois escritores como estes não pode dar errado.

Voltando a Dona Benta, é admirável que Lobato tenha escolhido uma avó, e não um avô, como o símbolo da sabedoria. Talvez eu tenha me deixado contaminar com facilidade porque sou de uma família onde as mulheres idosas sempre foram chegadas tanto aos livros quanto às lições de sapiência, ao saber “só de experiências feito”. Minha mãe, minha avó Clotilde, minha tia Adiza, foram algumas das principais Donas Bentas que supervisionaram meu crescimento e a formação do meu caráter. Isto me tornou um adepto de certas formas de matriarcado, porque sendo homem eu entendia muito bem os rompantes de autoritarismo e de rispidez dos homens, sabia de sua falibilidade como líderes. As mulheres, mais compassivas, mais serenas, tinham uma autoridade que se baseava menos no individualismo e mais numa rede interligada de responsabilidades.

É notável que Monteiro Lobato, num livro como A Reforma da Natureza, faça com que ao final da II Guerra Mundial os líderes da Europa, engalfinhando-se em contradições e disputas, resolvam convocar Dona Benta e Tia Nastácia para servir como “árbitras” das questões internacionais. Dona Benta, muito bem informada sobre política, aceita imediatamente e parte para a Europa. Aos oito anos de idade eu achava isto uma coisa meio surrealista, e ao mesmo tempo extremamente lógica. Afinal, Hitler, Mussolini e o Rei Carol da Romênia tinham comprovado sua incompetência para gerir o mundo, e nada mais natural do que convocar para conserta-lo as pessoas cujo sistema de administração tinha produzido uma comunidade organizada e pacífica.

Dona Benta é o símbolo de uma autoridade baseada na experiência e na credibilidade, mas disposta a acreditar no novo, no imprevisto e no improvável – haja vista a disposição com que ela se deixa arrastar nas aventuras das crianças, seja visitando a Grécia antiga, seja indo parar na Terra do Faz de Conta.

0619) O rádio e a vitrola (13.3.2005)




(Rádio-vitrola Philips)

O rádio e a vitrola (ou CD-Player, para os mais contemporâneos) nos dão experiências diferentes da vida. Quando ligamos o rádio, nunca sabemos exatamente o que vamos escutar. No máximo temos idéia do horário dos programas: programa de notícias, de música, de futebol, etc. Mas quando ligamos um programa musical, não escolhemos as canções, ficamos à mercê do programador. Claro que sempre é possível escolher uma rádio “que só toca MPB”, ou “só toca rock”, etc., mas não temos direito a escolhas mais específicas.

Na vitrola, o programador somos nós. Ela só toca se a gente disser o quê, e botar pra tocar. Por definição, então, a vitrola só toca o que a gente possui em casa. Temos controle sobre a programação – com a ressalva de que, se quisermos ouvir um disco que não temos, nada feito.

Ouvir rádio ou ouvir vitrola, portanto, são experiências de vida distintas. Na infância, toda vez que eu ligava o rádio tinha medo de que tocasse muita porcaria, mas o que esperava era que de repente aparecesse uma música que eu gostava e não tinha em casa, ou então alguma novidade que me fizesse largar qualquer brinquedo com que estivesse me entretendo (ou, de preferência, largar o dever de casa) e correr para junto, para ouvir até o fim e ficar sabendo qual era a música, quem era o artista. Ouvir rádio era um contato com O Mundo. As grandes epifanias musicais da minha vida foram através do rádio. A primeira vez que ouvi “Saudosa Maloca”, a primeira vez que ouvi “Eleanor Rigby”, ou The Brothers Four cantando “The Green Leaves of Summer”, Nelson Gonçalves cantando “Vermelho 27”, Leny Eversong cantando “Granada”.

Já a vitrola nos transporta para um mundo perfeito porém fechado. Nesse mundo, só ouvimos o que já conhecemos e já gostamos; e é um mundo onde não existe a novidade, a surpresa. Mesmo a possível surpresa tem que passar primeiro pelas nossas mãos, tem que ser comprada ou ganha e colocada por nós para tocar.

Assim é a cabeça das pessoas. A pessoa com Cabeça Rádio vive antenada para tudo que acontece em volta, é sempre uma das primeiras a perceber o brotar de novas tendências. Vive plugada nos terminais da Contemporaneidade, sensível ao mínimo estremecimento sísmico da cultura planetária, venha ele da Turquia ou da Provença. O lado negativo disto é que a pessoa tende a se distrair com irrelevâncias, a valorizar besteiras, e a consumir quantidades industriais de lixo cultural.

A pessoa com Cabeça Vitrola vive em seu mundo perfeito, onde as mudanças só ocorrem com uma lentidão geológica. Torna-se um gurmê de si mesmo, porque de tanto escutar e re-escutar seu próprio repertório passa a conhecê-lo num grau espantoso de sutileza e detalhe. As novidades lhe chegam em conta-gotas. E seu gosto, à medida que se torna exigente e perfeccionista, torna-se também conservador. Só ouve o que gosta, e só gosta do que já conhece.

Na vida cultural brasileira temos numerosos e ilustres exemplos de ambos os grupos.



quarta-feira, 22 de outubro de 2008

0618) Pobre princesa feia (12.4.2005)



Nos meus passeios diários pelas homepages de jornais do mundo inteiro (bem, de três ou quatro países apenas, para ser sincero) tenho visto uma cachoeira de artigos irônicos e cheios de graçolas a respeito do anunciado casamento do Príncipe Charles com a Sra. Camilla Parker-Bowles. Todo mundo sabe que o casal namora e se relaciona há décadas. Ao que parece, antes mesmo do casamento dele com a falecida Princesa Diana os dois já trocavam abraços. E durante o casamento Charles/Diana, a desafortunada Camilla virou uma espécie de saco-de-pancadas da imprensa inteira. Por que? Porque é uma mau-caráter, uma calhorda, porque não escova os dentes, porque passa cheque sem fundo? Não: porque é feia.

Coitada de Dona Camilla, que aliás nem sequer é mais feia do que a maioria das inglesas, benza-as Deus. A finada Lady Di ganhou a simpatia de Deus e o mundo porque tinha uma carinha fotogênica e uma silhueta contemplável, mas era “uma cabecinha-de-vento”, como a qualificou Paulo Francis num momento de magnanimidade. Uma inglesinha como tantas outras, que leu muito os Irmãos Grimm na infância e sonhou em ser princesa e rainha, como tantas brasileirinhas sonham em ser modelos e atrizes. Seu palminho de rosto, comparado ao de Camilla, despertava analogias imediatas com Cinderela e As Irmãs Feias (a feiura de Camilla, claro, valia por duas).

Quem sou eu para dar pitaco na vida alheia. Mas acho que o Príncipe Charles é um sujeito sensaborão, cheio de nós-pelas-costas, e tudo que quer é um matrimônio britânico à velha moda. Qual é o problema, então? O que me espanta é a impressionante unanimidade (no Brasil e fora dele) da antipatia com a Dona Camilla, só porque é feia. Todas as pessoas a quem perguntei não sabem nada dela – sabem que é de família tradicional, que namora com o príncipe, que o Príncipe declarou uma vez que gostaria de ser o O.B. dela, e que ela tem cara-de-cavalo.

Lembro-me de uma campanha presidencial americana, anos atrás (acho que no tempo de Nixon), quando o candidato democrata estava sendo escolhido. Li um artigo numa revista analisando os possíveis candidatos e a certa altura o articulista dizia: “O melhor candidato Democrata seria Fulano de Tal. É sério, honesto, inteligente, competentíssimo, e teria tudo para ser um dos melhores presidentes que o país já teve. Mas nunca será eleito, porque não tem carisma, fotografa mal, discursa mal. Excelente administrador– mas péssimo candidato”.

O que me lembra a piada do bêbado que ao chegar em casa tenta abrir a porta, a chave cai, e ele vai procurá-la junto ao poste-de-luz da esquina. O guarda diz: “Por que não procura no lugar onde a chave caiu?” E ele: “Lá está muito escuro, não vou achar nunca. Melhor procurar aqui, que pelo menos tem luz”. É o problema dos americanos, coitados, sempre procurando um presidente na TV. Deixem o Príncipe Charles procurar a chave dele no escuro. Um sujeito não pode ser bobão quando sabe o que quer.

0617) Sidney Lumet (11.3.2005)



O Oscar deste ano foi o chiclete de sempre. Não havia sequer um grande “blockbuster” entre os indicados para Melhor Filme. Eu acho isto um bom sinal. Não tinha Titanic, Senhor dos Anéis, Último Imperador... Apenas cinco filmes de porte médio, dos quais o único que vi e comentei aqui (Entre umas e outras) não tem nada de excepcional mas é um filme assistível. O cinema de Hollywood está cada vez mais parecido com desfile da Beija-Flor, e um filme simples assim é um alívio, como uma roda-de-samba no botequim.

Me alegrei com o Oscar honorário para Sidney Lumet. O auge da carreira de Lumet como diretor coincidiu com o tempo em que eu era cineclubista e crítico de cinema, e ainda admiro sua obra. Lumet não é um “auteur” no sentido europeu do termo, não é um reinventor da linguagem, ou um intelectual com idéias próprias. É um sujeito com alma teatral que domina a técnica do cinema. Seus melhores filmes são modelos de narrativa clássica, aulas de como contar uma história e reger um elenco, extraindo dele o máximo.

Assassinato no Orient Express é a melhor adaptação de Agatha Christie para o cinema (com o Testemunha de Acusação de Billy Wilder, de 1957), não só pela reconstituição de época e pelo elenco, mas pelo roteiro (de Paul Dehn) que pela primeira vez faz justiça às elucubrações do detetive. Dia de Cão é o filme de assalto a banco que formatou todos os outros, um fascinante equilíbrio entre roteiro e improviso. Rede de Intrigas é uma sátira sobre o poder externo e a corrupção interna da TV, com um roteiro (de Paddy Chayefsky) que parece uma HQ surrealista mas acabou sendo profético. A Colina dos Homens Perdidos é um filme exemplar sobre o absurdo da guerra, da prisão e do militarismo. Armadilha Mortal é um mistério policial bem urdido, totalmente teatral, cheio de reviravoltas, e seu único defeito é ser uma tentativa de igualar Jogo Mortal (Sleuth) de J. L. Manckiewicz, o que aliás quase consegue.

Lumet tem filmes fracos, claro; o mais chato de todos é uma adaptação musical de O Mágico de Oz, com Diana Ross e Michael Jackson, tão kitsch e caótica que parece ter sido dirigida por estes dois.

O melhor filme dele, e um dos melhores que já vi, é O Homem do Prego, a história de um judeu que escapa do campo de concentração, vai morar no Harlem de Nova York, e passa a explorar os negros da vizinhança. O filme tem trilha de Quincy Jones, uma inesquecível fotografia em preto-e-branco, tem Rod Steiger no papel principal (às vezes meio “over”, mas sempre impressionante), e uma montagem de flash-backs rapidíssimos que me proporcionou uma das grandes iluminações mentais da minha vida. O Homem do Prego é muitas vezes referido no livro de Lumet (já publicado no Brasil) Fazendo Filmes, e nas memórias do montador Ralph Rosenblum (When the Shooting Stops... the Cutting Begins). É de 1965, mas fico com a sensação de que somente agora, quarenta anos depois, o filme recebeu o Oscar que merecia.

0616) Os oratórios de Farnese (10.3.2005)



Está em cartaz no Rio, no Centro Cultural Banco do Brasil, uma exposição (ao que parece, a maior já realizada) da obra de Farnese de Andrade, artista falecido em 1996. Tive meu primeiro contato com essa obra em 1971, quando no Festival de Cinema de Brasília o prêmio de melhor curta-metragem foi concedido a um documentário de Olívio Tavares de Araújo sobre a obra de Farnese. Nunca saiu da minha mente aquela coleção de objetos híbridos, “assemblagens”, caixas dentro de caixas, pedaços de bonecos ou manequins mutilados, fotografias antigas, imagens de santos, pedaços variados de vidro, de metal, de conchas do mar.

Há um depoimento de Farnese onde ele afirma ter estudado gravura durante vários anos, mas um dia uma porção de objetos que manipulava começaram a adquirir outro sentido quando justapostos uns aos outros, e ele passou a dedicar-se à confecção desses conjuntos tridimensionais. Há uma sala inteira da exposição dedicada aos seus oratórios: aqueles relicários de madeira de guardar santos, que nas mãos de Farnese viram uma espécie de “monstruário” de justaposições surrealistas. Um bebê de louça partido ao meio, com uma barata no interior. Bolas de cristal que emergem das paredes de madeira como se estas criassem olhos para nos espiar de volta. Há um objeto chamado “Orgasmo”, uma espécie de enorme compoteira de vidro com pedestal, cuja parte inferior é cheia de areia branca, tendo por cima uma camada de minúsculas esferas brancas, e sobre esta outras camada de bolas de vidro um pouco maiores, até que da abertura superior da compoteira emerge uma seqüência de bolas de cristal maciço, sendo que a última e menor delas traz dentro de si a imagem de uma criança.

Cada objeto de Farnese, se visto isoladamente, daria assunto para meia hora de contemplação silenciosa, e incessante associação de idéias. Quando vemos vinte deles numa mesma sala, em dez minutos julgamos ter visto tudo. O que é impacto original e perturbador de um “objeto inquietante”, como diziam os surrealistas, visto em conjunto denuncia o seu caráter técnico, de um gesto criador repetido. Sugere uma simples linha-de-montagem de surpresas pré-fabricadas.

Problema do artista? Não creio. Os oratórios de Farnese não foram feitos para ser assimilados em grupo, e sim isoladamente. Agrupá-los produz uma overdose que anestesia o espectador. É como um livro de poemas, que ninguém pega para ler de cabo a rabo – porque a obra de arte não é o livro, é cada poema. A obra de arte produzida por Farnese não são os trinta ou cinqüenta objetos daquela sala (a exposição toda, aliás, tem mais de 120), e sim cada um deles. Que, idealmente, deveria ser visto e pensado à revelia dos demais. A exposição ideal para Farnese deveria ser uma sala vazia com um objeto no centro, objeto que seria trocado toda semana, para que toda semana viéssemos repetir nossa visita e renovar nossa inquietação.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

0615) Pelada e democracia (9.3.2005)




Não existe nada mais educativo sobre o que é democracia do que um jogo de pelada. 

Democracia não é Republicanismo, o qual é apenas uma das modalidades políticas de sua prática. É qualquer situação em que interesses coletivos são administrados através de um debate onde todos têm voz ativa, e onde o resultado final, se não é um consenso unânime, é pelo menos uma solução com que a maioria concorda e a minoria se conforma.

Não existe conceito filosófico mais impreciso do que o conceito peladeiro de “bola fora”. O campo não tem linhas. Às vezes o “fora” é determinado por alguns arbustos: bola entrou no mato, é fora. Às vezes é o trecho onde acaba a grama e começa a terra, ou onde acaba a areia e começa o cascalho. Toda vez que a bola passa por ali, ergue-se o coro: “Foi fora!” “Não foi!”.

No futebol de verdade, a “barra” é de uma nitidez impecável, cartesiana. É um quadrilátero formado por três traves e uma linha de cal: passou dali é gol, e para o caso de uma bolas muito rápida, tem a rede para detê-la e confirmar a trajetória. 

Mas as barras que na adolescência eu alvejei como atacante ou defendi como goleiro eram duas sandálias enfiadas na areia, ou duas pedras, ou dois montes de roupas. Na pelada, a gente é forçado a visualizar traves virtuais e tentar colocar o chute não apenas fora do alcance do goleiro (como fazem os jogadores de verdade) mas de preferência longe das traves invisíveis, longe daquilo que sabemos ser o território da reclamação. 

Na pelada, um gol só é indiscutível se passar pertinho do chão, e a pelo menos um palmo para dentro da “trave”.

Na pelada não há bola na trave, há o famoso “por cima”, ou seja, por cima da pedra. Não é gol. E como não há travessão superior, a altura dessa barra virtual é definida pela capacidade de salto do goleiro. Se a bola for numa altura que o goleiro visivelmente não alcançaria, foi fora. Um goleiro de 1,50 e outro de 1,70 estão, numa mesma partida, defendendo barras proporcionais a seu tamanho e seu salto. 

E tem mais uma: quando o goleiro pula para o alto e toca na bola, valida o gol, porque provou que o chute não era alto assim. Muito goleiro de pelada tenta “dar uma de migué” e fingir que pula, evitando alcançar a bola, para poder dizer que foi bola alta.

Uma pelada é o exemplo típico de como grupos antagônicos resolvem conflitos oriundos de regras pouco claras. E isto é um dos pontos essenciais da democracia, porque você não pode estabelecer regras nítidas e cristalinas para tudo no mundo. 

Na resolução desses conflitos, vigoram os recursos que mandam numa democracia: papo-pra-derrubar-avião, veemência, pressão, barganha (“se aquela outra não foi gol, essa aqui também não foi”), carisma, credibilidade... e malandragem, capacidade para mentir na-cara-de-pau (“juro que não foi com a mão!”). 

Democracia não é o governo do povo, é o governo do texto, o governo dos mais hábeis, dos que melhor convencem os demais a aceitar sua versão dos fatos.






0614) O Velho da Montanha (8.3.2005)


(cartum de Adrian Raeside)

Veteranos da guerra do Iraque têm sido tratados com “ecstasy” para combater o estresse da guerra: ansiedade, insônia, memórias recorrentes de situações de combate, e reações violentas que incluem maus-tratos à família e explosões de agressividade sem causa aparente. Os psicólogos afirmam que o “ecstasy” relaxa, dá uma sensação de “proximidade emocional”, ajuda os soldados a desabafarem seus traumas e sua sensação de inadequação à vida civil e familiar.

Faz sentido. O sujeito em guerra dorme com um olho aberto. Soldado que patrulha as ruas das cidades iraquianas é obrigado a passar o dia inteiro com o dedo no gatilho. Disparar um segundo depois de um alerta pode significar a diferença entre viver e morrer. Basta ver a besteira desta semana, quando soldados americanos metralharam o carro onde vinha uma jornalista italiana que, seqüestrada há um mês, acabava de ser libertada. Resultaram: meteram uma bala na moça, e mataram o agente do Serviço Secreto italiano que a estava escoltando ao aeroporto.

Um Governo puritano e moralista (ainda que só da-boca-pra-fora) como o de Bush recorre a drogas proscritas para tratar seus soldados? Isso me lembra a história do Velho da Montanha, o que criou na Pérsia a Seita dos Assassinos. As lendas são muitas. Por volta de 1270, o Velho da Montanha tinha um setor secreto em seu castelo com rios, fontes, flores, e belos pavilhões cheios de odaliscas. Voluntários eram drogados e transportados para esse lugar secreto, onde bebiam vinho, comiam os melhores pratos e as melhores odaliscas. Depois dessa semana no Paraíso, eram adormecidos, trazidos de volta, e encarregados de uma missão terrorista, geralmente sob a forma de assassinatos seletivos: matar o Xeique Fulano ou o Califa Sicrano. O prêmio seria o retorno ao Paraíso.

Não creio que o governo Bush venha a criar um “resort” cheio de “playmates”, com “ecstasy” e uísque à vontade, para recompensar o cara que passou dos ou três anos abatendo sunitas no Iraque. Isso seria mais de acordo com o perfil de um Governo Clinton. Mas o círculo vicioso entre drogas e guerra se fecha mais uma vez. Basta lembrar Apocalipse Now de Coppola, onde os soldados que patrulham de barco o rio Mekong fumam cada “estaca” do tamanho dum pincel-atômico pra poder agüentar aquele inferno. A própria guerra é uma espécie de droga euforizante, para os que a administram à distância. Como diz o nazista de um conto de Borges: “Giravam sobre nós os grandes dias e as grandes noites de uma guerra feliz. No ar que respirávamos havia um sentimento parecido com o amor”.

Scott Ritter, ex-membro da Comissão da ONU que procurou em vão as armas de destruição em massa no Iraque, fala assim do governo americano: “Eu o comparo com um adolescente que tomou ecstasy: feliz, mas sem saber por que está feliz. Quando o efeito passar, ele vai cair-na-real com toda violência, e a realidade é o atoleiro do Iraque, onde a resistência cresce sem parar”.

0613) Enguiçar-garrafa e Disparate (6.3.2005)


(Brueghel, Jogos)

Na universidade, ao meter a cara nos livros de Antropologia (não, nunca concluí o curso, tinha que estudar muita coisa desnecessária) eu costumava ficar pensando: “Quem produz a Cultura Popular?” É um pouco como perguntar: “Quem escreve as anedotas?” Porque todas aquelas coisas engraçadas têm decerto uma origem, um criador, seja uma pessoa ou um grupo. E hoje, olhando em retrospecto minha infância, eu lembro de coisas que para mim são “cultura popular” mas que nunca vi consignada nos respectivos compêndios.

Uma brincadeira divertida se fazia lá em casa, quando eu tinha 7 ou 8 anos. A gente desafiava uma pessoa a demonstrar seu equilíbrio de olhos fechados. O desafio era colocar uma fila de garrafas, a cerca de meio metro uma da outra, vendar os olhos do sujeito, e pedir que ele caminhasse por sobre a fila, pisando entre as garrafas, fazendo o percurso de ida e volta sem derrubar nenhuma. Vendava-se bem os olhos da vítima, e lá vinha ele. O engraçado era que enquanto os olhos dele estavam sendo vendados e as instruções repetidas, as crianças vinham e recolhiam as garrafas, sem fazer barulho. E lá se ia o coitado, erguendo a perna com todo cuidado, todo satisfeito, crente que estava ganhando a aposta, fazendo aquele balé abestalhado por cima do chão vazio.

Outra brincadeira era a que chamávamos “Disparate”. Quatro pessoas, com papel e lápis. “A” e “B” faziam listas de nomes: pessoas reais, vultos da História, personagens de filmes... “C” fazia uma lista de ações (“tomando banho” – “pulando frevo”...) e “D” uma lista de lugares (“no castelo de Drácula” – “no meio do mato”...). Quando todos tinham a lista pronta, com o mesmo número de itens (10, 15, por aí), liam-se as listas pela ordem, e as cenas formadas eram engraçadíssimas. “Mamãe” – “com Luiz Gonzaga” – “jogando xadrez” – “nas costas dum macaco”... “Juscelino” – “com Tia Adiza” – “catando piolhos” – “no Arco do Triunfo”... E por aí vai.

Depois reencontrei a brincadeira dos “Disparates” entre os numerosos jogos surrealistas que os discípulos de André Breton praticavam com a maior devoção (os Surrealistas sempre me seduziram pelo seu imenso senso de humor). Em seu informativo The Oxford Guide to Word Games, Tony Augarde menciona o jogo chamado “Consequences”, muito em voga na Inglaterra entre 1600-1800, que é uma versão mais complexa dos nossos “Disparates”.

Mas, não sei se por falta de sorte ou desatenção, nunca encontrei em nenhum autor (Câmara Cascudo, Sílvio Romero, Alceu Maynard, Leonardo Mota, Amadeu Amaral...) qualquer referência à brincadeira de “enguiçar garrafas” que tanto alegrava nossas noites na ampla cozinha de nossa casa na Rua Miguel Couto. Sempre que alguém me fala em Cultura Popular, penso nessas coisas. Cultura Popular é tudo aquilo que aprendemos com as pessoas que nos são mais próximas, e que pensamos ser um segredo precioso que só nós sabemos, um pequeno tesouro que somente nós guardamos.

0612) A vítima de Eros (5.3.2005)


(Jeremy Irons e Juliette Binoche em Perdas e Danos)

Alguns atores parecem encarnar um arquétipo, parecem “ser a cara” de determinados tipos de personagem. Muitas vezes isto tem a ver com um trabalho bem-sucedido. Um sujeito faz um assassino psicopata, ganha um Oscar, e passa os anos seguintes recebendo propostas para interpretar assassinos psicopatas. Talvez por isto um ator tão bom como Anthony Hopkins tenha aceitado interpretar o canibal Hannibal Lecter: estava cansado de interpretar lordes e mordomos britânicos.

Jeremy Irons é um ator inglês talentoso, versátil, mas existe um arquétipo que desaba de vez em quando sobre ele. Eu o chamaria de A Vítima de Eros. Esse personagem é um sujeito aparentemente frio, racional, introvertido, extremamente cavalheiresco e bem educado, sobre o qual se abate uma fatalidade sexual inexplicável, incontrolável e inextinguível. Vejam por exemplo o personagem mais arquetípico que ele já interpretou: o Humbert Humbert de Lolita, na sua versão mais recente. Lolita conta a paixão de um homem quarentão e sisudo por uma adolescente frívola. É um enredo clássico, comparável apenas ao de O Anjo Azul. E é o protótipo da tragédia sexual decorrente de um episódio fortuito da infância que fica incrustado na mente do protagonista e que este procura resolver das maneiras mais desajeitadas possíveis, geralmente arruinando a própria vida.

Não é apenas na direção da pedofilia que Jeremy Irons é empurrado pelas marés irresistíveis de Eros, mas também na direção do homossexualismo. É ele quem interpreta o espantoso protagonista de M. Butterfly, o diplomata que se apaixona por uma cantora de ópera chinesa e mantém relações sexuais com ela durante dezoito anos, sem perceber que se trata de um homem. Uma situação aparentemente absurda, mas que justifica, como nenhuma outra, o dito de que “o amor é cego”. Na verdade, no amor todo mundo só vê o que quer ver, ou, por extensão, o que a pessoa amada lhe sugere que veja.

Em Perdas e Danos, de Louis Malle, Irons interpreta outro diplomata, que é tomado de uma paixão sexual absurda e definitiva pela noiva do próprio filho. Como ocorre em histórias desse tipo, ele passa a correr os maiores riscos, cometer desatinos. Sua vida profissional vira um caos que ninguém entende, porque ninguém sabe o que está se passando. Ele mesmo não sabe. Virou um viciado, que pensa apenas em como conseguir a próxima dose. A tragédia das vítimas de Eros, como Irons as interpreta, é do tamanho do abismo entre sua aparência aristocrática, intelectual, auto-controlada, e o tobogã de insensatez em que ele se deixa mergulhar de bom grado. Não existe nada mais fascinante do que um indivíduo frio, calculista, moderado, sendo arrebatado por uma obsessão carnal que o leva à auto-destruição. Não porque ele seja antipático, mas por nos ensinar que um sujeito assim só foge na direção daquilo que mais teme.