terça-feira, 9 de setembro de 2008

0540) O socialismo digital (11.12.2004)



Como todo universitário brasileiro da década de 1970, passei muitas noites com o nariz enfiado em manuais de marxismo. Naquele tempo, a ditadura cometia barbaridades contra comunistas e militantes de esquerda em geral. Simpatizar com essa turma era um imperativo moral até mesmo para sujeitos como eu, incapazes não só de pegar em armas contra o regime, mas até de acordar cedo para derrubá-lo. Em seu poema “A Torre sem Degraus”, Carlos Drummond fala de pessoas decididas a mudar o mundo, desde que para isto não seja preciso mover uma palha. Era o meu caso.

Sei que há uma dúzia de marxistas que lêem esta coluna, portanto, companheiros, corrijam-me se eu estiver errado. Um dos grandes problemas do Socialismo foi que uma revolução socialista num país atrasado teria como efeito inicial “socializar a miséria”, dividir o pouco entre os muitos. O Socialismo em País Pobre teria uma distribuição de riquezas justa, mas as riquezas seriam poucas, devido ao pouco desenvolvimento dos meios de produção. Esta era, aliás, a razão por que Karl Marx duvidava que o comunismo desse certo num país agrário e retrógrado como a Rússia – como aliás não deu.

O Socialismo teria que brotar, idealmente, num país de capitalismo avançado, um país onde a tecnologia, a ciência, os meios de produção material pudessem suprir as necessidades de toda a população, se fossem socializados. Inglaterra ou Alemanha tinham industrialização sofisticada, e relações de produção ainda arcaicas, por haver uma classe que ficava com toda a riqueza em detrimento das outras. Seria necessário, portanto, uma revolução para fazer com que toda essa evolução técnica tivesse seus benefícios voltados não apenas para um pequeno grupo, mas para toda a população.

Desculpem meu simplismo, mas nunca discuti marxismo com Fernando Henrique nem com Luiz Inácio, meu marxismo foi aprendido em mesa de bar, conversando com futuros sociólogos, poetas, diretores de teatro, músicos, estudantes de engenharia e jornalistas. Mas vejam como o mundo digital de hoje (internet, queima de CDs, pirataria, Napster, MP3, downloads gratuitos, filme baixado em banda larga, códigos abertos, “Creative Commons”, etc.) é uma Revolução Socialista em processo. Distorções ocorrem (a pirataria de CDs, em primeiríssimo lugar), mas é porque ainda estamos em plena vigência da lei-da-selva capitalista, onde o aparato high-tech ainda está voltado para o enriquecimento de grupinhos de espertalhões sem escrúpulos.

A revolução digital, contudo, está a caminho de uma Estação Finlândia que já desponta no horizonte. É a reprodução em série, a mídia independente, as redes de troca, o conceito de “copyleft”, todo o fervilhar de atividades subterrâneas e informais criado nos quartos-dos-fundos, nos laptops, nos PCs canibalizados de uma galera que forçou tanto o crescimento dos meios de produção que acabou explodindo as relações produtivas. E agora não tem mais volta, babau Tia Chica.

0539) Lixo (10.12.2004)


(Lixo em Nápoles)

O que é lixo? Em Tóquio, por exemplo, lixo pode ser um computador Pentium III de 500 Mhz, com disco rígido de 80 Gb, igual a este onde todos os dias venho tomar minha vacina contra o Tédio. O japonês compra uma máquina com o dobro da capacidade e aí pega o computador velho e coloca no corredor do prédio, para ser recolhido pelo porteiro. É lixo para o Sr. Nakayama, que acabou de fazer a troca, mas deixa de ser lixo no momento em que é recolhido pelo porteiro, um rapaz de Guaratinguetá que está no Japão fazendo seu pé de meia, e até então não tinha tido tempo de escolher um PCzinho para o filho jogar The Sims.

O que é lixo para um deixa de sê-lo, magicamente, quando cai nas mãos de outro. Uma sociedade inteligente é a que prevê e administra as possibilidades dessa reciclagem. Quando tomo meu café da manhã, todos os dias, produzo coisas de que não preciso mais: pó de café, cascas de ovos, bagaço de laranja. Tudo isso vai para o lixo, mas não tinha de ser assim. Quando eu era pequeno, lá em casa não se jogava fora uma casca de ovo. Todas eram lavadas, guardadas, torradas no forno, pulverizadas, e guardadas num saleiro, em forma de um pozinho branco muito fino, composto de puro cálcio, que era polvilhado no prato do almoço e até hoje me garante estes ossos fortes que nunca foram quebrados. Algo me diz que a grande maioria das coisas que vai para a lixeirinha da pia poderia ter o mesmo destino.

Falei acima que a sociedade deveria prever e administrar essa reciclagem, mas prefiro reformular esta proposta. Dizer assim dá a impressão (tão cara ao pessoal da direita e da esquerda) de que reciclar lixo é tarefa do governo, de que deveria haver funcionários públicos encarregados de toda manhã tocar à nossa campainha para pegar nosso lixo reciclável, conduzi-lo para uma indústria estatal, etc. etc. Na verdade, acho que deve caber ao governo apenas a criação desses centros e a educação do povo (minha e sua, caro leitor) para aprender a separar, guardar e encaminhar. Quem tem de se organizar para fazer isso são as pessoas, as famílias, os condomínios, os bairros, as vizinhanças. Se esperar por Governo, o mundo cai de podre.

Lixo é tudo aquilo para o qual ninguém consegue descobrir uma nova utilização. Enquanto tiver um cara esperto capaz de olhar para aquilo (pó de serra, pilha descarregada, quenga de coco, plástico de CD, prego enferrujado) e descobrir uma nova utilização, nada está perdido para sempre. As escolas poderiam dar o exemplo, reciclando, com a participação dos alunos, tudo que é utilizado em suas cantinas e salas de aula. Assim como o planejamento urbano e a construção civil são obrigados hoje a prever o acesso e a locomoção de portadores de deficiência, deveriam prever também instalações de recolha e distribuição de lixo reciclável. Não é tão difícil. No Brasil, por exemplo, basta promulgar uma Lei e convencer a Rede Globo a encampar a idéia.

0538) O Código Da Vinci (9.12.2004)



Não, leitor, sinto muito mas não li esse thriller policial de Dan Brown, que está vendendo mais do que coca-cola no Saara. Mede-se o sucesso de um livro pela quantidade de outros livros que tentam pegar carona nele, não é mesmo? Tem horas que eu penso que endoideci, mas já temos nas prateleiras de nossas livrarias títulos como Revelando o Código da Vinci (Martin Lunn), Quebrando o Código Da Vinci (Darrell L. Bock & Heiko Bock), Decodificando Da Vinci (Amy Welborn), Decifrando o Código Da Vinci (Simon Cox), e A Fraude do Código Da Vinci (Erwin Lutzer). É mole ou quer mais?

Quando o livro começou a fazer sucesso, no ano passado, fui numa dessas livrarias online (tipo Amazon ou Barnes & Noble) que oferecem de graça o primeiro capítulo, baixei, e li. Confesso que não me entusiasmei muito. Eu esperava um thriller cheio de enigmas e muito bem escrito, mais ou menos como O Clube Dumas de Arturo Pérez-Reverte. O primeiro capítulo que li me lembrou a “pulp fiction” dos anos 30: uma narrativa melodramática, estilo pedestre, e havia um tal dum telefonema com uma voz arquejante do outro lado recitando uma porção de lugares-comuns... “Pulp-fiction por pulp-fiction,” pensei, “acho que vou reler Fu-Manchu ou Fantomas.”

Pelos comentários que vi, Dan Brown explora a teoria conspiratória segundo a qual Jesus Cristo teria sobrevivido à cruz, casado com Madalena e deixado uma linhagem de descendentes. Este segredo teria sido guardado durante séculos pelos Cavaleiros Templários, até que estes entraram em rota de colisão com as monarquias européias, que temiam o aparecimento de um sujeito qualquer dizendo: “Eu sou o tatataraneto de Jesus, e quero ser coroado rei da França...” Pense num problema diplomático! Pegaram os Templários, queimaram seus arquivos e por via das dúvidas queimaram todos eles também.

Toda essa história está milimetrada num livro-reportagem (este, sim, interessantíssimo) de Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln, O Santo Graal e a Linhagem Sagrada, já publicado no Brasil. Encontrei este livro por acaso, há quinze anos, num sebo de Lisboa, e como tinha passado a tarde inteira percorrendo as criptas da Torre de Belém e os corredores do Mosteiro dos Jerônimos, pareceu-me muito plausível essa teoria mirabolante sobre mensagens cifradas, tesouros enterrados, heranças misteriosas, e sociedades secretas.

Vi na imprensa que os autores do “Santo Graal” estão processando Dan Brown, o que é uma bobagem. Os fatos da reportagem são agora públicos, e qualquer um teria o direito de reutilizá-los numa obra de ficção. Daqui a pouco vai ter escritor brasileiro querendo seguir o mesmo filão. Que besteira. Bem que podíamos ter “thrillers” brasileiros de mistério histórico, falando do retorno de Dom Sebastião, tesouros ocultos nas ruínas de Canudos, uma máquina-do-Tempo deixada incompleta pelos holandeses em Pernambuco, ou a guerra de xamãs que deixou em ruínas as Sete Cidades do Piauí.

0537) Os 14 sintomas do fascismo (8.12.2004)




(desenho de Raoul Vaneigem)

Encontrei meio por acaso uma página com o resumo da pesquisa feita pelo Dr. Lawrence Britt (que não faço idéia de quem seja) sobre vários regimes fascistas: Hitler, Mussolini, Franco, Suharto (da Indonésia) e algumas ditaduras latino-americanas. Britt fez um balanço e descobriu que todos estes regimes tinham catorze traços em comum. Acho que vale a pena ficar de olho neles, porque é de um em um que costumam vir se instalando no país da gente.

1) Nacionalismo constante e intenso, com profusa utilização de bandeiras, símbolos, hinos, etc. 

2) Desprezo pelo reconhecimento dos direitos humanos, e uma aceitação da tortura, prisão arbitrária, etc., como um “mal necessário” para perseguir os inimigos da democracia. 

3) Denúncia de inimigos e de bodes expiatórios para promover a uniformidade ideológica da população, geralmente mobilizando-a contra um país vizinho ou contra uma minoria étnica, religiosa, etc. 

4) Supremacia militar: mesmo quando o país tem problemas sociais da maior urgência, grande parte da verba é destinada para os salários e investimentos da área militar. 

5) Preconceito sexual, geralmente na direção de um profundo conservadorismo; o machismo predomina, e há fortes restrições contra o divórcio, o aborto e o homossexualismo.

6) Controle dos meios de comunicação, seja através da censura propriamente dita, seja através de políticas de concessões e financiamento, ou da utilização de personalidades populares da mídia como propagandistas do regime. 

7) Obsessão com a segurança nacional, usando o medo como justificativa para políticas internas e externas. 

8) Mistura entre Governo e Religião: a religião mais popular do país é usada como fator de mobilização do povo, e os líderes usam retórica e valores pretensamente religiosos para justificar suas atitudes. 

9) As grandes corporações são protegidas, até porque o governo é elevado ao poder através da aristocracia empresarial e industrial, para defender-lhe os interesses. 

10) A organização dos trabalhadores é sabotada, por ser a única força capaz de se opor a um governo fascista.

11) Desprezo pelos intelectuais e artistas; regimes fascistas tendem a promover ou tolerar a hostilidade aberta à cultura universitária e acadêmica, e a impedir a livre expressão através das artes e das letras. 

12) Obsessão com crime e castigo. Nas nações fascistas, prender e punir tornam-se atividades constantes, e a população é levada a tolerar abusos nesta área em nome do patriotismo. 

13) Política de apadrinhamento e corrupção explícitas: os países fascistas favorecem a proliferação de grupos de amigos que se nomeiam uns aos outros para cargos importantes, e se protegem mutuamente enquanto saqueiam as riquezas da nação. 

14) Eleições fraudulentas, perseguição e mesmo assassinato de candidatos de oposição; legislação que favorece a perpetuação de grupos no poder; uso do poder judiciário para manipular e controlar as eleições.

Depois não digam que eu não avisei.


domingo, 31 de agosto de 2008

0536) Exoterismo e auto ajuda (7.12.2004)



Não, amigo, não está errado não, é “exoterismo” mesmo. Todo dia, em algum órgão da imprensa, um redator sem assunto resolve explicar esta importante diferença, e hoje é minha vez. Conhecimento esotérico é aquele que é reservado a grupos fechados (“eso” significa justamente “por dentro”, ou “nas internas” como se diz na gíria). São aqueles segredos cruciais a que os sócios não têm acesso, só a Diretoria. Por outro lado, conhecimento exotérico é justamente o contrário: aquele que é divulgado para informação de todos, que é acessível a todos. “Exo” quer dizer “por fora, ou para fora”: “exorcizar” é expulsar o demônio, “exoesqueleto” é o esqueleto exterior dos crustáceos, “exogamia” é a prática de casar com pessoas de fora do clã.

Dito isto, determino que todos os órgãos de imprensa do Brasil eliminem imediatamente de suas páginas a expressão “livro esotérico”, substituindo-a pelo termo correto, com “x”. O próprio conceito de “livro esotérico” é uma enorme contradição, pois um conhecimento verdadeiramente esotérico é por sua própria natureza um conhecimento oral, transmitindo pessoalmente entre gerações de iniciados. No máximo, existe aqui ou acolá um papiro ou pergaminho com anotações cifradas, mas a idéia de um livro, impresso industrialmente em grande quantidade, com conteúdo esotérico, é tão absurda quanto a de um cofre-forte sem porta.

Aliás, é bem sintomático que em todas as listas do mais vendidos, nos catálogos das editoras e nas prateleiras das livrarias vejamos estes dois rótulos sempre lado a lado: “Esoterismo e auto-ajuda”. Porque em princípio, pelo menos para mim, uma coisa não tem nada a ver com a outra. A relação entre os verdadeiros conhecimentos esotéricos e os manuais de auto-ajuda é a mesma que existe entre o ouro puro e as bijuterias de camelô. Mas o exoterismo cumpre uma importante função social. Sob a aparência de sabedoria oriental, medieval ou renascentista, ele dissemina entre a população uma porção de mensagens positivas, com uma aura de autoridade conferida pelo mistério.

Qualquer livro de auto-ajuda está cheio de coisas certas. É difícil eu folhear um deles e discordar de alguma coisa, porque eles só reiteram o óbvio. Seja otimista. Trate bem os outros. Não esquente demais a cabeça. Procure se dedicar ao que gosta. Se uma coisa estiver lhe fazendo mal, afaste-se dela. Comunique-se: procure saber o que os outros estão pensando, procure explicar o que você mesmo está pensando. E assim por diante. Tudo isto é óbvio, tudo isto são verdades que intuitivamente reconhecemos, mas precisamos da chancela de uma autoridade qualquer. Daí que os livros de auto-ajuda se dividam entre os da área científica (psicologia, medicina, nutrição, educação física) e os da área mística (astrologia, tarô, runas, ocultismo,, etc.). Tudo que dizem é verdade, é claro, é evidente, mas parece tão simples que só valorizamos se vier avalizado por alguma Sabedoria remota e imponente.

0535) O assassinato de Lee Oswald (5.12.2004)



Na cidade de Dallas (Texas) foi aberta uma exposição intitulada “Jack Ruby: Voices from History”, dedicada à elusiva e contraditória figura do sujeito que matou a tiros Lee Oswald, o suposto assassino de John Kennedy, em 1963. A verdadeira história do assassinato de Kennedy talvez nunca seja contada, embora fragmentos da verdade estejam espalhados pelas centenas de livros e filmes já produzidos sobre o assunto. Ruby e Oswald, protagonistas do atentado mais caótico do século 20, são personagens que hão de ser investigados para sempre, sem que se saiba com certeza quais as suas motivações.

Eu tenho uma teoria. (Sempre tenho uma teoria. Dêem-me dez minutos, e eu produzo, sobre qualquer tema, uma teoria tão redonda quanto uma sextilha de Pinto do Monteiro.) Para mim, não há dúvida de que houve uma conspiração para matar Kennedy; de que Lee Oswald era um dos instrumentos desta conspiração; de que tudo foi organizado para fazer parecer que Lee Oswald era o único atirador. A tese conhecida como “Oswald Agiu Sozinho” é a parte mais mirabolante e implausível de todas as discussões sobre Kennedy.

Kennedy era odiado pela direita conservadora, pelos fundamentalistas cristãos (que não engoliam um presidente católico, o primeiro da História), e desprezado pelas elites “rednecks” e rurais que o viam (com bastante realismo, aliás) como um sujeito vaidoso, mulherengo, metido a aristocrata, populista, pertencente a uma elite de galãs arrogantes que vivem com um pé na política e outro na mídia. Tramaram sua morte, e deu tudo certo. Aí apareceu Jack Ruby.

Houve um histórico Treze x Campinense, em 24 de novembro de 1974, onde (reza a lenda) as diretorias combinaram um empate. Seria bom para ambos: o Treze seria praticamente campeão do último turno, iria para a decisão com o Campinense, que entraria com vantagem, por ter ganho os turnos anteriores. Todo mundo combinou, mas esqueceram de avisar para Marcos de Itabaiana, um crioulo parecido com Viola (ex-Corinthians, ex-Vasco). Faltando dez minutos para terminar, Gil Silva (meio-campista, canhoto, craque, de estilo semelhante ao de Felipe, do Flamengo) enfiou uma bola entre os zagueiros do Campinense, Marcos entrou como um miúra, e fez o gol da vitória. Os jogadores do Campinense se revoltaram e alguém quebrou o nariz dele com um soco. Naquela noite, durante a comemoração, fomos, um grupo de 8 ou 10, visitá-lo no Hospital Antonio Targino.

Jack Ruby foi o Marcos-de-Itabaiana do assassinato de Kennedy. Estava tudo combinado, inclusive os depoimentos pseudo-verdadeiros que Lee Oswald, um bode expiatório cevado durante anos, daria ao FBI e aos tribunais. Todo mundo combinou, mas esqueceram de avisar a Jack Ruby, um sujeito que vivia de pequenos golpes e que, como todo americano, sonhava com notoriedade e manchetes. Ruby surgiu do nada para turvar águas que já eram turvas. Foi aquele elemento aleatório que nem mesmo o crime mais perfeito consegue prever.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

0534) Ao traduzir um poema (4.12.2004)




("Poema", de Joaquim Cardozo)

Traduzir é mais difícil do que escrever. Traduzir uma obra é criar numa língua um equivalente aceitável ao que foi dito em outra, a um texto já existente. Escrever é criar a partir do não-dito, de uma idéia com a qual só o autor tem contato. 

Quando eu traduzo um texto de Shakespeare, estou diante do mesmo problema com que Shakespeare se deparou há 400 anos, o problema de expressar aquelas idéias em palavras. Ele tentava dizer aquilo em inglês, eu estou tentando dizer em português. Ele tinha um pouco mais de liberdade, porque estava produzindo um texto original, fiel apenas à idéia informe e difusa que se agitava em sua mente. Eu, no entanto, tenho que ser fiel a um texto inglês universalmente conhecido. 

É neste sentido que é mais difícil traduzir do que escrever, e um tradutor de Shakespeare enfrenta problemas técnicos que Shakespeare não precisou enfrentar.

Paulo Rónai, um dos nossos maiores tradutores, costumava citar uma frase de Heine, segundo a qual “traduzir poesia é como empalhar raios de sol”. E comentava ele: “Mas, será que escrever poesia também não será a mesma coisa?” 

A tradução poética é a mais difícil de todas, porque lida com a mais conotativa das linguagens. Dêem-me para traduzir um manual técnico da Microsoft ou um guia de trens britânico, mas não me dêem um poema, que é muito mais trabalhoso! (Estou brincando, claro. Mil vezes o poema.)

Ao traduzir poemas de forma fixa, temos que reproduzir uma série de elementos: 

1) a estrofe; 

2) o esquema de rimas; 

3) o ritmo silábico no interior de cada verso; 

4) a sonoridade dos fonemas; 

5) o conteúdo do texto. 

É coisa demais para se transpor, e há de haver uma perda em algum desses departamentos. Um dos nossos melhores tradutores de poesia, Augusto de Campos, se destaca justamente pelo fato de procurar sempre atender a todos estes requisitos ao mesmo tempo, e de geralmente conseguir um nível impressionante de aproximação em todos eles. 

Mas em geral é preciso decidir: reproduzo as idéias do poema original, ou a sua bela alternância de sílabas fortes e fracas, e de palavras que rimam no meio e no fim dos versos?

Parece muito com aquele problema da Física, o de definir uma partícula em função de sua velocidade e de sua posição. Para medir a velocidade, temos que observar seu deslocamento e abrir mão de saber sua posição exata. Se queremos saber sua posição exata num dado momento, é preciso “fechar” a observação nesse momento, mas aí não podemos saber a que velocidade ela estava se deslocando. 

Na tradução de poesia, cada vez que queremos reproduzir o sentido dos versos temos que sacrificar os detalhes rítmicos e melódicos com que o poeta se exprimiu originalmente. E quando ”fechamos” a nossa atenção para reconstruir em português essas minúcias, é possível que o sentido comece a se dissipar. 

Traduzir é perder. A arte consiste em trabalhar simultaneamente em todas essas frentes, e tentar perder o mínimo possível em cada uma delas.





0533) O Iraque é aqui (3.12.2004)



(Faixa de Gaza ou Zé Pinheiro?)

Toda vez que aparecem na TV aqueles carros-bomba de Bagdá, atentados terroristas aos ônibus israelenses, garotos palestinos apedrejando tanques de Israel, é muito fácil para a gente pensar que tudo isso ocorre do outro lado do mundo, não tem nada a ver com a gente. A gente pega o controle remoto, muda de canal, e vai se preocupar com catástrofes mais suportáveis, como a queda do Flamengo para a Segunda Divisão.

Pois eu tenho um método pessoal para ver guerra na televisão. Não sei se vocês já perceberam o quanto o Oriente Médio parece com o Nordeste. Nem me refiro à semelhança étnica que faz esses árabes todos, a começar pelo falecido Yasser Arafat, parecerem dublês de Geraldo Azevedo e Alceu Valença. O que parece é o jeitão das cidades, ou pelo menos da parte moderna delas, com seus caixotes-de-cimento, seus caminhões velhos, seu calçamento irregular, suas lojinhas de dois andares, seus sobrados com um mercadinho no térreo e um apartamento no andar de cima, toda aquela paisagem que encontramos com poucas modificações em qualquer subúrbio de cidade nordestina (ou nos subúrbios das nossas grandes metrópoles, que estão “assim” de nordestinos).

Eu fico tentando me identificar com os dramas alheios que vejo na TV, e não é difícil perceber o quanto essas cidades parecem com as nossas. Quando penduraram os americanos nas vigas de aço da ponte, em Fallujah, eu não pude deixar de pensar: “Eita, isso foi no Recife: olha só, a Ponte da Boa Vista!” Dias atrás vi um atentado a bomba em Bagdá que me deu um aperto no coração, porque aconteceu numa daquelas ruas do São José que levam ao campo do Treze. Todos aqueles enterros de militantes palestinos, com o caixão coberto pela bandeira, e o pessoal gritando e erguendo fuzis no ar, acontecem em Zé Pinheiro. É impressionante como a Faixa de Gaza ou a Cisjordânia parecem com o Zepa. E houve um atentado a um ônibus israelense, ano passado, que era num lugar igualzinho à Avenida Canal, ali perto do Ipiranga.

Fallujah, Mossul, Tikrit, Nablus, Jerusalém, Tel-Aviv: não precisa muita imaginação para reconhecer como nossa aquela paisagem de sol impiedoso, horizontes empoeirados, rodovias precárias onde se cruzam ônibus, jegues, carroças e veículos militares. Alguns especiais da TV esquecem um pouco a guerra e se detêm sobre as pessoas, seu dia-a-dia, seus medos e suas esperanças. Eles têm rostos morenos de meninos e meninas na nossa zona-da-mata ou do nosso cariri. Falam uma língua incompreensível, mas não precisamos entender o que falam para saber o que estão dizendo. Todas as vezes que um carro-bomba faz essas pessoas em pedaços, fico pensando que isso aconteceu ali no Ponto Cem Réis, na subida do Alto Branco; ou que aconteceu na pista que leva para o Campestre; ou que aconteceu em qualquer um desses lugares comuns e sagrados de Campina, que é sempre meu ponto de referência para checar se uma coisa existe de verdade, se uma coisa é real.


0532) A Ciência e a Fé (2.12.2004)




(casa dos índios Pueblo)

Um dos maiores equívocos das discussões filosóficas de mesa-de-bar é imaginar que a ciência se baseia apenas na Lógica e a religião apenas na Fé. 

Concordo quanto a esta última: todas as religiões procuram desdobrar-se em argumentações para mostrar que estão certas, mas a essência da atitude religiosa é a Fé, a certeza de algo inexplicável, a crença em algo transcendente e impossível de codificar.

O problema é que a ciência procede de um modo muito parecido. A ciência se baseia na Razão, mas um grande problema da Razão é que ela é incapaz de se sustentar por si mesma; ela sempre precisa se apoiar em algum tipo de Fé. 

Suas premissas podem se basear no empirismo mais pragmático, ou nas deduções mais impecavelmente lógicas: mas sempre precisam da Fé.

A primeira Fé de um cientista é: “O Universo faz sentido”

Ele pode achar que não existe um mundo espiritual, pode achar que não há Deus, e que o Universo inteiro é um simples agregado de átomos que se organizam em estruturas de matéria e energia. Mas ele acredita que tudo isto faz sentido, obedece a leis – ou, para ser mais científico, “organiza-se em padrões de regularidade que é possível medir e prever.” 

Quando está diante de algo caótico, contraditório, absurdo, o cientista balança a cabeça, teimoso, e continua insistindo em busca de uma lei, uma ordem, um sentido. E geralmente encontra.

Uma outra Fé, ou uma variação da anterior, é: “O Universo é sempre o mesmo.” 

O cientista tem uma crença religiosa na continuidade dos fenômenos. Ele acredita piamente que o sol vai nascer amanhã de manhã, e tem mais: vai nascer no Leste, e nunca no Oeste. Quem garante? Para ele, quem garante esta regularidade é justamente o fato de não existir um Deus sujeito a venetas e caprichos, como o Deus bíblico que mandou o sol se deter no céu durante três dias para que Josué pudesse invadir Jericó. 

Os cientistas têm uma fé absoluta na inexistência de venetas desse tipo. Pergunte a qualquer um, e ele vai confirmar que sim, o sol vai nascer amanhã, nem que a vaca tussa; e ele dirá isto com uma Fé tão sólida quanto a fé do Papa.

Há uma tribo, acho que são os índios Pueblo, do México, que toda madrugada acorda cedinho e entoa cânticos “chamando” o sol. Eles crêem que o sol só nasce devido a esse seu chamado, e que é responsabilidade deles fazer com que o sol nasça todos os dias, ilumine o mundo, aqueça os corpos, estimule as colheitas. 

Os cientistas têm uma fé igualmente sólida no fato de que a matéria-em-movimento se comporta hoje como se comportou sempre, e se comportará amanhã como se comporta hoje. 

Daí a enorme crise dos cientistas quando alguém lhes provou que não existe o tempo absoluto, ou que o sol não gira em torno da Terra, ou que era possível desintegrar a matéria e transformá-la em energia. Nada disso era possível antes, mas todas as suas crenças tiveram que ser reformuladas para incluir estes fatos novos, para que estes milagres impossíveis não desmentissem sua fé.






0531) A máquina pensante (1.12.2004)


(do saite "Thinking Machine")

Uma das características mais interessantes do jogo de xadrez (como da maioria dos jogos, mas, concentremo-nos num só) é o fato de existir uma hierarquia estratégica que se sobrepõe à mera probabilidade matemática dos movimentos. Essa hierarquia se refere aos movimentos que deixam o jogador mais próximo de derrotar o oponente. Antes de cada movimento, existe um número gigantesco (embora finito) de possibilidades, em função do movimento de cada peça e das casas disponíveis para ela. Matematicamente, todos estes movimentos se equivalem. Estrategicamente, uns são mais relevantes do que outros.

Podemos então dizer que há três tipos de jogadas. Primeiro, a jogada possível: qualquer movimento para a frente, para trás ou para o lado, que seja permitido pelas regras, independentemente de sua utilidade. Segundo, a jogada obviamente útil: a jogada que tem mais probabilidade de ameaçar o oponente ou de conquistar para o jogador uma posição vantajosa. E terceiro, a jogada surpreendente: uma jogada pouco óbvia, que à primeira vista parece totalmente absurda, mas que pode desencadear uma combinação improvável de movimentos e dar a vitória ao jogador.

Quando um computador é programado para jogar xadrez, os movimentos do primeiro tipo são facilmente programáveis: o bispo pode ir para estas e estas casas, mas não pode ir para aquelas. Os movimentos do segundo tipo também podem ser programados, desde que se possa prever, para cada situação possível no tabuleiro, quais os caminhos mais rápidos para obter a vitória. Os movimentos de terceiro tipo são os mais difíceis. Eles são mais elegantes, mais ricos, mais surpreendentes, e possuem não apenas um valor estratégico, mas um valor estético. São o pulo-do-gato.

O saite “Thinking Machine 4” (em: http://turbulence.org/spotlight/thinking/chess.html) oferece um interessante recurso para ilustrar o modo como uma máquina pensa o xadrez. A cada jogada, linhas coloridas vão surgindo na tela indicando os movimentos mais prováveis para responder à jogada feita pelo adversário. À medida que a máquina “pensa”, algumas linhas vão ficando mais encorpadas, mais nítidas, porque um número maior de manobras passa por ali, até chegar o momento em que a máquina responde à jogada que fizemos.

Assim como no campo verbal podemos distinguir uma linguagem mais previsível e mais “pobre” (a linguagem normal do dia-a-dia) e uma linguagem menos previsível e mais “rica” (a linguagem poética), os movimentos no xadrez podem ser classificados em graus de previsibilidade e riqueza. Os melhores movimentos são os que cumprem uma função estratégica, possuem uma simplicidade estética (como a “elegância” das fórmulas matemáticas) e guardam um grau maior de imprevisibilidade. Escrevem por linhas tortas. Criam um atalho imprevisto. São inexplicáveis à primeira vista, mas na seqüência das jogadas o adversário percebe qual era a armadilha – quando já é tarde demais.