(Borges, por Charles Burns)
Uma coisa que nem
sempre se fala sobre a literatura de Jorge Luís Borges é o fato de que grande
parte dela consiste numa espécie de jogo, de brincadeira, ou de diversão do
autor com o tema que está tratando.
Borges consegue reunir
em sua literatura dois aspectos que em geral se cancelam mutuamente: leituras
amplas, e precisão de detalhe. Sempre leu, e sempre leu atentamente (é o que
fica visível no que escreve). Sua erudição não foi adquirida a contragosto,
como a de tantos diplomados. (Borges não tinha curso superior; tinha mais ou
menos o equivalente ao nosso “2º. Grau completo”.)
Muitos leitores se
tornam eruditos devido ao prazer de ler. Começam a curiosar pelo prazer de
curiosar. Entram nos dicionários, nas enciclopédias e nos almanaques com o
mesmo espírito distraído e atento de quem passeia, com as mãos nos bolsos, sem
pressa, numa cidade desconhecida: “Onde será que vai dar aquele beco tão
interessante?...”
Malba Tahan, um dos
autores clássicos da juventude brasileira, tem um conto chamado “O Sábio da
Efelogia” (em Maktub, 1935). Entre os
hóspedes de um hotel, destaca-se um homem de origem russa, que foi prisioneiro
político, e que apesar de muito reservado participa da conversa, muitas vezes
dando mostras de uma vasta cultura, pois discorre com fluência sobre geografia,
literatura, cultura oriental, astronomia...
O narrador se espanta
com aquilo, e o homem responde com uma risada:
— Qual, meu amigo! — obtemperou ele,
amável, batendo-me no ombro. — Não me considere um sábio, um acadêmico ou um
professor. Eu pouco sei, ou melhor, nada sei. Não reparou nas palavras de que
tratei? Falgu, filazenes, Feuillet, França, Flaubert, Faye, flagelo. Começam
todas pela letra F. Eu só sei falar sobre palavras que começam pela letra F.
Fiquei ainda mais admirado. Qual
seria a razão de tão curiosa extravagância no saber?
— Eu lhe explico — acudiu com bom
humor o estranho viajante. — Sou natural de Petrogrado e vivo do comércio do
fumo. Estive, porém, por motivos políticos, durante dez anos nas prisões da
Sibéria. O condenado que me havia precedido, na cela em que me puseram, deixou-me
como herança os restos de uma velha enciclopédia francesa. Eu conhecia um pouco
esse idioma, e como não tivesse em que me ocupar, li e reli centenas de vezes
as páginas que possuía. Eram todas da letra F. Ao final, fiquei sabendo muita
coisa; tudo, porém sem sair da letra F: fá, fabagela, fabela, fabiana,
fabordão.
Há sem dúvida uma
sincera ironia por parte do prof. Julio César Mello e Souza (o nome verdadeiro
de “Malba Tahan”), que encerra o conto dizendo:
Ele era precisamente o contrário do
famoso e venerado rio Falgu, da Índia. Parecia possuir uma corrente enorme,
profunda e tumultuosa de saber; entretanto, sua erudição, que nos causara tanto
assombro, não ia além dos vários capítulos decorados da letra F de uma velha
enciclopédia.
Curiosamente, Borges
recorre a atalhos semelhantes, o que em nada diminui a eficácia do seu processo
criativo. (Se bem que não a originalidade – o que ele faz, muitos fazem
também.) A coisa mais difícil que existe é ir a um dicionário ou uma
enciclopédia para consultar um verbete e não dar uma olhada rápida nos verbetes
que estão em volta. É claro! Tudo é
lucro. Tudo é estudo, e se for um estudo pelo mero prazer de “ficar sabendo”,
melhor ainda.
John T. Irwin, no seu
excelente estudo sobre Borges (The
Mystery to a Solution: Poe, Borges and the Analytic Detective Story, Johns Hopkins
University Press, Baltimore, 1994) bota seu chapéu de detetive e rastreia
algumas leituras de Borges durante a composição de um dos seus melhores contos
policiais, “A Morte e a Bússola” (1942).
No início deste conto
ocorre o assassinato de um sábio judeu, o Dr. Yarmolinski, encontrado morto em
seu quarto de hotel, em frente à suite ocupada pelo Tetrarca da Galiléia, que,
como a polícia já sabia, portava consigo uma verdadeira fortuna em safiras.
Yarmolinski é encontrado morto pelos criados, e na sua máquina de escrever
portátil há uma folha com uma frase datilografada: A primeira letra do Nome foi articulada.
O “nome” (logo fica
claro, por se tratar de estudioso do Talmude) é o nome sagrado de Deus entre os
hebreus, o Tetragrammaton.
A investigação
progride, por caminhos que não interessa espoliar aqui, por meio do inspetor
Treviranus (representando a polícia oficial, de métodos rotineiros) e de Erik
Lonnrot, o sherlock local. Eles chegam à conclusão de que três homens deverão
ser assassinados pelo que parece ser uma conspiração antissemita. É um detalhe
essencial do enredo, detalhe que se baseia numa dúvida: serão três homens
assassinados, ou quatro?...
John T. Irwin não
deixa passar despercebido o fato de que o nome do Inspetor Treviranus lembra a
expressão latina tresviri capitales,
trio de magistrados romanos cujo número César aumentou para quatro e depois
reverteu para três.
Ele lembra que em 1929
Borges (aos 30 anos de idade) ganhou um prêmio literário e usou parte do
dinheiro para comprar a coleção completa (em 2ª. mão) da Enciclopédia Britânica, 11ª. edição, a qual o acompanharia daí em
diante.
Irwin observa, então,
que nessa edição da Britannica estão
praticamente lado a lado os verbetes “tresviri”
e “Treviranus” (um naturalista alemão do século 18), bem pertinho dos verbetes
“Tetrarca” e “Tetragrammaton” (The
Mystery..., págs. 32-33).
Ou seja: Borges, ao
consultar um verbete para confirmar algum detalhe, pegava em volta dele algumas
dicas de tema, de inspiração, de nome próprio...
Surpreendente? Nem
tanto, para quem é um “prestador de atenção”, que é como Jessier Quirino define
um poeta. E para quem aprendeu a amar desde cedo as enciclopédias e a
cornucópia de inspirações que elas nos fornecem, como Borges recorda, num dos
seus diálogos com Osvaldo Ferrari:
Sem dúvida já lhe contei que eu
costumava ir com meu pai à Biblioteca Nacional; eu era muito tímido – continuo
sendo muito tímido -, não me atrevia a pedir livros, mas, nas prateleiras,
havia obras de consulta, de onde eu pegava aleatoriamente, por exemplo, um
volume da Enciclopédia Britânica. Um dia, tive muita sorte,
porque peguei o volume DR, então pude ler uma excelente biografia de Dryden,
sobre quem Eliot escreveu um livro. Depois, um extenso artigo sobre os drúidas,
e outro sobre os drusos do Líbano.
Erudição? Talvez, mas
uma erudição lúdica, movida pela curiosidade, e preservada pela memória
afetiva, para vir ao socorro da imaginação no momento em que ela precisa. E com
o auxílio da ordem alfabética – ou da “desordem alfabética”, como o próprio
Borges a chamava, por ser um critério de organização que depois de aplicado embaralha tempos e espaços.