quarta-feira, 3 de novembro de 2021

4760) A literatura fantástica no "Sgt. Pepper's" (3.11.2021)



Uma vez eu estava discutindo com uma turma sobre a enorme reviravolta que a ficção científica experimentou na década de 1960, na Inglaterra e nos EUA. Na Inglaterra houve principalmente o surgimento da revista vanguardista New Worlds, dirigida por Michael Moorcock, que divulgou a obra de autores importantes como Brian Aldiss, J. G. Ballard, Christopher Priest, M. John Harrison, John Sladek, John Brunner, Tomas M. Disch...
 
Comentei: “A FC estava presente em tudo, no cinema inglês, na cultura pop...”  E proferi a frase impensada, comprometedora: “A capa do Sgt. Pepper’s, dos Beatles, está cheia de escritores de ficção científica”.
 
Foi uma afirmação intuitiva, baseada na memória inconsciente, mas o rigor acadêmico me obriga a aboná-la com a observação empírica. A lista abaixo interpreta o termo “escritores de FC” no sentido mais amplo possível, incluindo personalidades cuja obra teve e tem algum tipo de influência no gênero, seja a influência pervasiva e difusa das grandes idéias, seja o contato com algum ícone específico.



Edgar Allan Poe (*) é um dos mais visíveis, até por estar bem no centro da fileira do alto. Poe é uma das figuras mais universais da literatura em inglês, todo adolescente leu alguma coisa dele. Do ponto de vista temático, está mais próximo dos gêneros “policial” e “horror”, mas ninguém questiona a importância que suas idéias tiveram para a FC. Escreveu sobre viagens de balão, viagens à Lua, o mito da Terra Oca, mesmerismo, hipnose, animação suspensa, fendas  temporais... Seu nome é citado por John Lennon na letra de “I Am the Walrus”.




Ao lado de Poe, na capa do disco, aparece o psicólogo Carl G. Jung. Suas teorias sobre arquétipos, sonhos e alucinações controladas, inconsciente coletivo e simbolismo influenciaram não apenas a literatura do mainstream mas também a literatura fantástica ocidental (Philip K. Dick era grande leitor de Jung). E coube a ele uma das mais detalhadas explicações psicológicas sobre o fenômeno dos discos voadores (Flying Saucers – A Modern Myth of Things Seen in the Skies, 1964).



Ainda na fila do alto, entre as figuras da capa do disco, o segundo personagem da esquerda para a direita é Aleister Crowley, o famoso mago inglês que durante décadas aprontou rituais escandalosos de ocultismo e magia ritual nas Ilhas Britânicas e fora delas (em Lisboa, envolveu-se num episódio bizarro com Fernando Pessoa, numa história que até hoje não foi bem contada). Chamava a si mesmo “A Besta do Apocalipse” (outros o chamaram “O Besta do Apocalipse”) e influenciou gerações de escritores de romances fantásticos. Somerset Maugham o usou como modelo para o tenebroso Oliver Haddo, o vilão de O Mágico (1908). Também influenciou inúmeros roqueiros crédulos, de Jimmy Page a Raul Seixas.



Na segunda fila de baixo para cima temos um peso-pesado, Aldous Huxley (*), o autor de clássicos como Admirável Mundo Novo, A Ilha (ficção utópica), O Macaco e a Essência (futurismo absurdista?) e outros. Huxley estava no auge de sua fama póstuma (morreu em 1963) quando o álbum saiu.

 

Logo em seguida, um pouco mais abaixo, aparece Dylan Thomas, o maior poeta do País de Gales e um dos maiores da língua inglesa. Uma parte menos conhecida de Thomas é sua prosa, embora o Retrato do Artista Como Jovem Cão (1940), uma brilhante coletânea de contos semi-autobiográficos, seja reeditada com frequência. Thomas escreveu numerosos contos de índole onírica, ocasionalmente macabra ou fantasmagórica. Uma boa seleção deles é The Collected Stories (New York: New Directions, 1984).

 

E logo ao lado dele temos a figura de Terry Southern, cuja interface mais notável com a ficção científica é o roteiro que fez para o Dr. Fantástico (1964) de Stanley Kubrick. Ao que se comenta, o romance original (de Peter George) era sério e com final otimista. Coube a Southern ajudar Kubrick na criação de um roteiro histérico, satírico, iconoclasta e de final comicamente apocalíptico. Era essa a praia de TS, que depois teve também alguma participação no roteiro de Barbarella (1968) de Roger Vadim.



Mais adiante nessa mesma fileira, intrometendo-se sobre a sobrancelha de Marilyn Monroe, está o inquestionável William S. Burroughs (*), autor de Naked Lunch (1959). A ficção de Burroughs é uma mistura de experimentalismo da vanguarda, delírio surrealista com forte viés alucinógeno (poucas pessoas escreveram sobre drogas com tanta franqueza e conhecimento de causa) e pulp fiction espacial absorvida na adolescência. Neste último aspecto, ele é uma influência reconhecida por William Gibson, J. G. Ballard, Philip K. Dick e outros.



Outro inquestionável, quase no fim dessa fila, no lado direito, é H. G. Wells (*), um autor que dificilmente deixaria de ser lido por jovens ingleses imaginativos como Lennon e McCartney principalmente. (Dizem que na elaboração das listas de sugestões para a capa desse álbum George Harrison se limitou a indicar alguns gurus indianos, e Ringo Starr disse: “O que vocês botarem eu concordo." )



Descendo um pouco e indo para a esquerda, aparece outro nome de peso, Oscar Wilde. É o criador de um dos fantasmas mais simpáticos do gênero terrorífico, o protagonista de O Fantasma de Canterville, que já traduzi para a Casa da Palavra, com as belas ilustrações de Romero Cavalcanti. E Wilde criou uma das mais poderosas imagens do “duplo” na literatura com o clássico O Retrato de Dorian Gray (1891), a brilhante narrativa decadentista de um indivíduo que é capaz de desviar a velhice, as doenças, os males do corpo, para um ponto afastado de si (a pintura que o retrata).



Por cima da cabeça de Ringo Starr aparece esse rapaz que nunca foi autor de ficção-científica, mas está aí simbolizando (para mim) um clássico do gênero. Johnny Weissmuller foi um dos melhores Tarzans do cinema, e certamente um ídolo da geração dos Beatles, que estão 1 degrau geracional acima de mim (9-10 anos em média). Ele nos faz lembrar, é claro, do grande Edgar Rice Burroughs, cujos livrinhos da Coleção Terramarear devorei na juventude; ainda tenho alguns deles, os mesmos exemplares comprados por volta de 1964, 1965, quando as guitarras da beatlemania já soavam em nossos ouvidos. Vale lembrar também que o autor foi o criador das aventuras marcianas de John Carter, que são pura FC pulp.



E chegamos finamente ao lado direito com Lewis Carroll (*), o autor das Aventuras de Alice no País das Maravilhas / Alice através do espelho. Aqueles livros que sobrevivem a qualquer adaptação para o “público infantil”. São literatura fantástica, isso ninguém pode negar; e como Carroll era um grande conhecedor e investigador da Matemática e da Lógica, seus livros são cheios de adaptações de postulados, teoremas, leis ou mecanismos dessas disciplinas das quais as Ciências da Matéria tanto necessitam.
 
Muito bem, então. Talvez a capa não esteja “cheia de escritores de ficção científica” propriamente ditos. Dos onze personagens listados acima, apenas cinco aparecem na The Encyclopedia of Science Fiction, e estão assinalados com um asterisco (*). Os demais, nos entanto, alargam, aos meus olhos de leitor, o universo cultural de onde brotaram esses quatro rapazes. Quando peguei no vinil de Sgt. Pepper’s pela primeira vez, nem Bob Dylan eu sabia quem era. Rastrear essas figuras me levou uma vida inteira, e só consegui neste século graças à Beatles Encyclopedia de Bill Harris (Hyperion, 1993) e à Wikipedia. Os Beatles, nessa capa, criaram uma constelação temática que ilumina o próprio conceito de FC.
 



 
 






sábado, 30 de outubro de 2021

4759) A mescalina de Jean-Paul Sartre (30.10.2021)



 

Um dos livros mais conhecidos sobre a questão das drogas alucinógenas e das chamadas viagens psicodélicas é As Portas da Percepção (“The Doors of Perception”, 1954) de Aldous Huxley. Este livro geralmente é publicado em conjunto com O Céu e o Inferno (“Heaven and Hell”, 1956), que é uma espécie de continuação; são dois textos curtos, complementares.
 
A experiência de Huxley ficou famosa, em grande parte, pelo respeito de que o escritor era cercado em vida. Huxley vinha de uma família ilustre de cientistas e literatos, e era considerado um dos grandes intelectuais de seu tempo. Um romancista de idéias, algo bem típico da literatura inglesa; muito respeitado e muito acompanhado pela imprensa.
 
Muitos livros seus já foram traduzidos no Brasil: Contraponto (edição original, 1928), Sem Olhos em Gaza (1936), O Macaco e a Essência (1948), O Gênio e a Deusa (1955), A Ilha (1962), Também o Cisne Morre (1939), A Arte de Ver (1942) e outros.
 
Ele havia abordado a questão das drogas em seu romance clássico Admirável Mundo Novo (“Brave New World”, 1932) em que sugeriu que as sociedades totalitárias do futuro não recorreriam à violência (muito desgastante), mas às drogas apaziguadoras. Em resumo, ele propunha substituir o chicote pelo chiclete. Basta olhar em volta e a gente percebe que funciona. (Huxley imaginava a droga sendo produzida e administrada pelo Estado, e não previu o modo bestial como ela de fato se instalou entre nós; mas não se pode prever tudo.)
 
Huxley voltou ao tema depois, com o romance utópico A Ilha (“Island”, 1962), em que as drogas eram usadas de forma igualmente utópica, ou seja, como um caminho para a transcendência. Talvez seja aqui que ele aplicou de movo mais organizado as suas observações e conclusões após sua experiência com a mescalina, feita em maio de 1953 na sua casa na Califórnia (ele era um inglês “transplantado” para os EUA), na companhia de sua esposa Maria e do psiquiatra Humphry Osmond.
 
Essa experiência mostra bem o lado apolíneo de Huxley, um intelectual sério, metódico, humanista, de cabeça aberta a novas idéias mas sempre com uma tendência britânica ao formalismo social e à necessidade de tornar cada experiência pessoal sua algo útil para a comunidade acadêmica e para a espécie humana como um todo.
 
A experiência de Huxley foi precedida por tentativas de muitos outros escritores. O poeta Antonin Artaud provou a mescalina (e não só ela) nos tempos em que andou pelo México.
 
O escritor Henri Michaux foi outro que experimentou as viagens lisérgicas, e seus escritos deram origem a um filme importante, Images du Monde Visionnaire (1964, 34 minutos), dirigido por Eric Duvivier.  O filme procura reproduzir certos efeitos visuais subjetivos, o que não é nada fácil. (Lembro de um amigo cineclubista que dizia: “Infelizmente, você não pode fazer uma câmera sentir o efeito do LSD.”)
 
Michaux se decepcionou um pouco e disse que mesmo num filme com enormes recursos técnicos e muito dinheiro isso seria impossível:
 
As imagens teriam que ser mais deslumbrantes, mais instáveis, mais sutis, mais mutantes, mais intangíveis, mais trêmulas, mais atormentadas, mais retorcidas,  infinitamente mais carregadas, mais intensamente belas, mais aterrorizantemente coloridas, mais agressivas, mais idiotas, mais estranhas.
 
O filme pode ser visto aqui na UbuWeb (“o YouTube da Vanguarda”):
 
https://www.ubu.com/film/michaux_images.html
 
Uma experiência que acho importante para a literatura, mas que não é tão comentada quanto a de Huxley, é a de Jean-Paul Sartre, que com menos de 30 anos e ainda escritor inédito fez-se administrar mescalina em 1935, no centro hospitalar universitário Saint-Anne, onde o próprio Antonin Artaud foi paciente durante algum tempo.
 
Sartre tomou a mescalina na companhia de seu colega, o Dr. Daniel Lagache. (É curioso que, tal como fez Huxley, nos momentos de maior solenidade conceitual, o pessoal da ficção gosta de se fazer acompanhar do pessoal científico.) Na época ele estava estudando “a fenomenologia da imaginação”, e os efeitos da droga fizeram-se sentir durante meses. Ele experimentou surtos da “sugesta” (paranóia de estar sendo seguido, de ver monstros, etc.).
 
O pequeno mas útil Sartre: Vida e Obra (José Álvaro Editor, 1967) de Luiz Carlos Maciel refere esse episódio. Acho que foi também nele que vi uma menção curiosa: Sartre tinha alucinações em que via a cabeça gigantesca de um gorila espreitando-o na janela do apartamento onde morava. A ser verdade, imagino que se tratasse de um eco do filme King Kong (1933), sucesso daquela época. 
 
Esta experiência psicodélica coincidiu com os anos de elaboração de A Náusea (1938), seu livro de estréia. O livro tem como protagonista e narrador o escritor Antoine Roquentin, que, passando por uma crise, começa a ter a percepção muito intensa de que as coisas que o cercam existem independentemente de estarem sendo percebidas pela sua consciência. (A maioria das pessoas admite isso como verdadeiro, mas muito poucas o sentem.)
 
Roquentin caminha pela cidade e contempla os passeios dominicais dos pequeno-burgueses de Bouville, a cidadezinha onde está morando. Vê seus rituais pomposos, suas roupas, suas conversas banais, e tem a sensação apavorante de que tudo aquilo é um mundo de mentira, de cenografia, de encenação, uma espécie de “matrix” ou de “truman-show” cuja irrealidade só ele percebe.
 
Enraivecido, ele tem vontade de agarrá-los, sacudi-los, fazer com que percebam a Existência crua, muda, indiferente à consciência humana, por baixo de tudo aquilo. O impulso do personagem se alimenta da bad trip do autor:
 
E se alguma coisa acontecesse? (...) Pode ocorrer a qualquer momento, talvez agora mesmo; os presságios são visíveis. Por exemplo, um pai de família pode sair para passear e avistar na calçada alguma coisa como um trapo vermelho, sendo arrastado pelo vento. E quando esse trapo estiver bem próximo, ele vai ver que é um pedaço de carne apodrecida, suja de poeira, que avança aos rastos, aos pequenos pulos, um pedaço de carne torturada que rola pela sarjeta expelindo jatos de sangue. Ou então uma mãe irá olhar a bochecha de uma criança e dirá: “Mas o que é isto... uma espinha?”, e verá como aquela carne incha, e se racha, e se abre, e de dentro daquela fenda brota um olho, um olho que parece estar rindo. Ou então as pessoas sentirão algo que parece uma carícia roçando seus corpos, como aqueles juncos que na água dos rios acariciam os corpos dos nadadores. E perceberão que suas roupas são criaturas vivas. E outro indivíduo vai perceber que dentro de sua boca há uma coisa que a arranha. E se aproximará do espelho, abrirá a boca: sua língua terá se transformado numa enorme centopéia viva, que agita as patas e arranha o seu céu-da-boca. Ele tenta cuspi-la para fora, mas a centopéia é uma parte do seu corpo, e ele terá que arrancá-la com as próprias mãos. E começarão a surgir coisas por toda parte, coisas para as quais será preciso inventar novos nomes: o olho de pedra, o grande braço tricorne, o artelho-muleta, a aranha-mandíbula.
(Capítulo “Mardi à Bouville”, trad. BT)
 
A Náusea é geralmente considerada como um ataque violento à pequena burguesia francesa do entre-guerras, ou como uma ilustração romanceada de algumas proposições filosóficas dos existencialistas. Acho que tem também um lugar dentro da literatura sobre os efeitos das drogas e a exploração literária dos estados alterados da consciência. Um romance que ajudou a desbravar uma trilha por onde avançariam, anos depois, autores como William Burroughs, Hunter Thompson e Philip K. Dick.
 

 








quarta-feira, 27 de outubro de 2021

4758) Videogames, o cinema do futuro (27.20.2021)



Dias atrás tive um excelente papo online, de mais de duas horas, com o jornalista e professor Rômulo Azevedo e a jornalista e pesquisadora de cinema Maria do Rosário Caetano. Os dois são meus amigos de longa data, e foi um papo descontraído (e desconstruído) sobre a “Sétima Arte”.
 
Para quem se interessar, o link está aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=-ngq81cUEEk
 
No final, Rômulo contou uma das muitas histórias impagáveis da família dele (e de seu irmão gêmeo Romero). Os dois viraram cinéfilos, porque o avô e o pai eram donos de cinema em Santana do Ipanema, em Alagoas.
 
Quando o avô inaugurou o Cine Ipanema, naquele próspero município sertanejo, a população compareceu em massa na primeira noite. E na segunda. Só que na segunda Seu Zé em vez de entrar e ver o filme que trouxera, ficou fumando na calçada. Aproximou-se um conhecido:
 
– Oxente, Seu Zé!  O cinema é seu, e o senhor não vai ver o filme?
 
– Já vi ontem.
 
– Mas hoje o filme é diferente. Ontem foi um faroeste, hoje não é um filme policial?
 
– E então? Não é a mesma coisa? Uns caba correndo, dando tiros uns nos outros...
 
A história está completa aqui, no blog de Romero: https://memoriacineipanema.blogspot.com/
 
(Ser gêmeo tem essa vantagem – enquanto um fala, o outro escreve.)
 
A visão simplista do avô dos gêmeos sempre me pareceu hilária. Porque corresponde à visão primitiva que os próprios irmãos Lumière, inventores do cinema, tinham sobre essa maquininha de imaginar. Para eles, a máquina em si era o mais interessante. O fato de ela poder mostrar as pessoas correndo e dando-tiro umas nas outras. O assunto em si não tinha interesse nenhum.
 
Quem eram aquelas pessoas? Por que se perseguiam umas às outras? Por que davam tiros? Quem matou? Quem morreu? Ora, tanto faz.
 
O tempo mostrou como os Lumière estavam enganados. Tão enganados quanto Thomas Edison, seu concorrente na América. (Edison tinha inventado um cinema onde as pessoas botavam o olho no visor de uma maquininha e o filme passava lá dentro.) 

Edison não inventou o cinema, mas inventou o disco de vitrola – e achava que aquela voz gravada serviria para ajudar no estudo de idiomas. Não lhe passou pela cabeça que dali surgiria a indústria trilionária da canção popular.
 
É a velha história – a gente semeia vento e colhe energia eólica.
 
Existe algo parecido, agora em 2021, com a indústria dos videogames. Porque eu acho que o videogame está para o século 21 assim como o cinema estava para o século 20. A mesma explosão tecnológica, a mesma rapidíssima evolução ao longo das primeiras décadas. E a mesma incompreensão – porque os adultos pensam que aquilo é diversão de adolescentes, e porque os intelectuais pensam que é diversão de gente burra. Pode ser. Mas é a arte do futuro.
 
O escritor Tom Bissell, um aficionado, diz que a linguagem e a técnica do videogame evoluíram, no decorrer de vinte anos, “das inscrições rupestres à Capela Sistina”. Nem mesmo o cinema evoluiu tão depressa (em vinte anos, foi de Méliès a Griffith, o que não deixa de ser também uma façanha). 

 
Qual é o problema com os videogames? Para mim é simplesmente desinformação. E o desdém, o menosprezo, que essa desinformação acarreta.
 
As pessoas pensam que videogame é “uns caba correndo e dando tiro uns nos outros”. A mesma idéia que Seu Zé Francisco tinha sobre os filmes que exibia em seu cinema. Isso é muito irônico, quando pensamos que o mundo dos games é tão variado quanto o do cinema. Como explicar a uma pessoa que na vida só viu meia dúzia de “filmes de carro explodindo” que existem, além desses, filmes contando histórias de amor?  E filmes engraçados? E histórias de dramas familiares? Ela não vai acreditar.
 
Os videogames criaram um conjunto formidável de técnicas narrativas, todas elas baseadas na alternância entre “material pronto” e “material interativo”. A interatividade é o seu pulo-do-gato. O videogame é um filme semi-pronto onde você penetra, e onde quem faz o filme andar é você.
 
Todo mundo tem obrigação de gostar disso? Não. Assim como ninguém tem obrigação de gostar de Stanley Kubrick ou de Oscarito. O que acontece é que sempre tem gente pra gostar de alguma coisa, e também o fato incontestável de que a cada geração que surge o interesse pelas “Artes Interativas” é maior.

 
Aqui no blog já publiquei uma série de “sinopses fictícias” para tentar mostrar que variados universos literários e cinematográficos, já existentes, podem servir de inspiração para a criação de videogames. Com histórias onde possam aparecer eventualmente cenas de luta ou de batalha, mas que isso não impede a criação de tipos humanos, a profundidade psicológica, o retrato de um meio social...
 
O cinema fez esse trajeto. Por que o game não poderia fazê-lo?
 
CyBorges:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2011/02/2477-cyborges-game-1122011.html
 
Macondo, The Game:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2011/11/2727-macondo-game-30112011.html
 
Grande Sertão: The Game:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2011/04/2541-grande-sertao-game-2742011.html
 
…e outros. As possibilidades, como sempre, são infinitas.
 








domingo, 24 de outubro de 2021

4757) A Fundação de Isaac Asimov - 1 (24.10.2021)




Uma nova série de ficção científica está indo ao ar, em episódios semanais: Foundation (Apple TV). A criação é de David S. Goyer, responsável principal pelo projeto, com mais uma equipe de roteiristas e diretores. Os capítulos iniciais têm como base a série de histórias que o jovem Isaac Asimov publicou com vinte e poucos anos, inspirado em suas leituras da Declínio e Queda do Império Romano (1776-1789), de Edward Gibbon.
 
Li os romances originais de Asimov com menos de trinta anos, na tradução da Editora Hemus. Uma década depois, traduzi uma “prequel” para a Editora Record, Prelúdio da Fundação (1988).
 
Aqui, há uma descrição básica de como nove histórias curtas acabaram se transformando nos três volumes da chamada “Trilogia da Fundação”:
 
http://www.pannis.com/SFDG/TheFoundationTrilogy/theFoundationStories.html
 
É um épico gigantesco sobre a Via Láctea, povoada por nossa humanidade, num império com milhares de planetas habitados. Um jovem cientista, Hari Seldon, começou a desenvolver uma ciência que ele chamou de “Psico-História”, que avalia os comportamentos coletivos dos seres humanos e de suas sociedades. Ele prevê a queda do império, devido às suas contradições internas, e um intervalo de barbárie que tem chances de durar trinta mil anos; mas Seldon defende a criação de uma “Fundação” com o objetivo de diminuir essa “era das trevas” para mil anos apenas.
 
Asimov não era um grande estilista literário. Seu conhecimento de psicologia, embora muitas vezes seja perceptivo, não é páreo para o de outros autores. Nem falo dos clássicos do romance mainstream. Basta comparar Asimov com contemporâneos seus na FC, como Theodore Sturgeon ou Fritz Leiber. É uma pena, mas ele compensa isso com um conhecimento científico sólido, muita imaginação, vivacidade narrativa. E afinal de contas, criou a psicologia robótica, o que já é uma contribuição.
 
E no que se refere a Fundação... É como dizia um amigo meu, fã asimoviano de carteirinha: “Só peço aos que o criticam que me mostrem o que foi que eles próprios escreveram aos 22 anos.” 


(A galáxia da Fundação, em 
desenho de Isaac Asimov ]
 
Não vou discutir aqui nem os livros de Asimov (que não releio há mais de 30 anos) nem a fidelidade da adaptação. Quero comentar alguns aspectos dos primeiros episódios.
 
Em primeiro lugar, tem rolado uma discussão ferrenha sobre a questão identitária e de representatividade étnica, de gênero, etc.  Eu até entendo, porque um personagem que me era muito familiar, o andróide Eto Demerzel, me assustou ao aparecer agora como uma mulher. Vários personagens masculinos aparecem como mulheres; e vários personagens que todo mundo visualizou como homens brancos aparecem agora como homens negros.
 
Asimov era um judeu russo-novaiorquino, tinha uma certa mistura genética e cultural no seu background; mas o editor dessas histórias era John W. Campbell, para quem todo personagem de história de FC deveria ser anglo-saxão.


(John Campbell, desenho de Frank Kelly Freas)
 
Campbell, para quem a série “Fundação” foi escrita, foi um importante formatador temático e ideológico da FC norte-americana das décadas de 1930 e 1940. Como diz Frederik Pohl, outro jovem autor encorajado e publicado por Campbell: “Ele ficava sempre meio constrangido ao lidar com pessoas que não tinham tido o bom senso de nascerem homens, brancos e protestantes.” (The Way the Future Was, cap. 5)
 
É ainda Pohl, quem explica:
 
Não creio que em toda sua vida ele tenha se recusado a qualquer obrigação ou cortesia por motivos de raça ou de religião. Mas ele não sabia se seus leitores (que ele presumia serem rapazes brancos, anglo-saxões e protestantes) seriam tão tolerantes quanto ele. Assim, ele sugeria aos escritores judeus que escondessem esse defeito. Quando eu vendi a ele, como agente, a primeira história de Milt Rothman, John pôs as cartas na mesa. “Os melhores nomes,” declarou, “são escoceses ou ingleses. Isso vale para os personagens, e também para a assinatura dos autores. Não tem nada a ver com preconceito. É que eles soam melhor.” (Idem, trad. BT)
 
O depoimento de Pohl mostra bem a corda-bamba de pressões culturais no ambiente onde a FC norte-americana se desenvolveu: alguns quilômetros quadrados em Manhattan, na década de 1930, onde ficavam as redações das centenas de milhares de pulp magazines que toda semana adornavam as bancas de revistas do país inteiro.
 
Asimov era judeu por ascendência, mas sempre se afirmou ateu e cientista. Só usou pseudônimo quando escreveu livros juvenis (“Paul French”). Mas uma característica do seu estilo, muito presente em Foundation é a criação de nomes não-étnicos, não-nacionais. Os nomes dos personagens desse ciclo têm sonoridades vagamente familiares, mas propositalmente distorcidas: Hari Seldon, Eto Demerzel, Gaal Dornick, Salvor Hardin, Dors Venabili, Chetter Hummin...
 
São nomes que sugerem ter sofrido mutações ao longo do tempo (estamos a milhares de anos no futuro), mas que por isso mesmo perdem o vínculo nacionalista sugerido por Campbell. (Se Asimov quisesse homenagear seu editor, poderia talvez ter criado um personagem chamado “Jun Kembol”.)
 
Essa impessoalidade dos nomes próprio se casa bem com o modo como Asimov concebia seus personagens, e neste sentido a série da Apple não violenta seu estilo. Na literatura de Asimov, um personagem é como uma incógnita algébrica. Está ali para assumir valores e encaminhar funções. Na grande maioria dos casos, tanto faz se o personagem tem origem ocidental ou oriental, branca ou negra, se é macho, fêmea ou robô – e afinal, que significado terão estes conceitos daqui a 50 mil anos (época em que acontecem estas histórias)?
 
(continua em breve)
 

 
 






quinta-feira, 21 de outubro de 2021

4756) Borges e a erudição por brincadeira (21.10.2021)



(Borges, por Charles Burns)


Uma coisa que nem sempre se fala sobre a literatura de Jorge Luís Borges é o fato de que grande parte dela consiste numa espécie de jogo, de brincadeira, ou de diversão do autor com o tema que está tratando.
 
Borges consegue reunir em sua literatura dois aspectos que em geral se cancelam mutuamente: leituras amplas, e precisão de detalhe. Sempre leu, e sempre leu atentamente (é o que fica visível no que escreve). Sua erudição não foi adquirida a contragosto, como a de tantos diplomados. (Borges não tinha curso superior; tinha mais ou menos o equivalente ao nosso “2º. Grau completo”.)
 
Muitos leitores se tornam eruditos devido ao prazer de ler. Começam a curiosar pelo prazer de curiosar. Entram nos dicionários, nas enciclopédias e nos almanaques com o mesmo espírito distraído e atento de quem passeia, com as mãos nos bolsos, sem pressa, numa cidade desconhecida: “Onde será que vai dar aquele beco tão interessante?...”
 
Malba Tahan, um dos autores clássicos da juventude brasileira, tem um conto chamado “O Sábio da Efelogia” (em Maktub, 1935). Entre os hóspedes de um hotel, destaca-se um homem de origem russa, que foi prisioneiro político, e que apesar de muito reservado participa da conversa, muitas vezes dando mostras de uma vasta cultura, pois discorre com fluência sobre geografia, literatura, cultura oriental, astronomia...
 
O narrador se espanta com aquilo, e o homem responde com uma risada:
 
— Qual, meu amigo! — obtemperou ele, amável, batendo-me no ombro. — Não me considere um sábio, um acadêmico ou um professor. Eu pouco sei, ou melhor, nada sei. Não reparou nas palavras de que tratei? Falgu, filazenes, Feuillet, França, Flaubert, Faye, flagelo. Começam todas pela letra F. Eu só sei falar sobre palavras que começam pela letra F.

Fiquei ainda mais admirado. Qual seria a razão de tão curiosa extravagância no saber?

— Eu lhe explico — acudiu com bom humor o estranho viajante. — Sou natural de Petrogrado e vivo do comércio do fumo. Estive, porém, por motivos políticos, durante dez anos nas prisões da Sibéria. O condenado que me havia precedido, na cela em que me puseram, deixou-me como herança os restos de uma velha enciclopédia francesa. Eu conhecia um pouco esse idioma, e como não tivesse em que me ocupar, li e reli centenas de vezes as páginas que possuía. Eram todas da letra F. Ao final, fiquei sabendo muita coisa; tudo, porém sem sair da letra F: fá, fabagela, fabela, fabiana, fabordão.

Há sem dúvida uma sincera ironia por parte do prof. Julio César Mello e Souza (o nome verdadeiro de “Malba Tahan”), que encerra o conto dizendo:
 
Ele era precisamente o contrário do famoso e venerado rio Falgu, da Índia. Parecia possuir uma corrente enorme, profunda e tumultuosa de saber; entretanto, sua erudição, que nos causara tanto assombro, não ia além dos vários capítulos decorados da letra F de uma velha enciclopédia.
 
Curiosamente, Borges recorre a atalhos semelhantes, o que em nada diminui a eficácia do seu processo criativo. (Se bem que não a originalidade – o que ele faz, muitos fazem também.) A coisa mais difícil que existe é ir a um dicionário ou uma enciclopédia para consultar um verbete e não dar uma olhada rápida nos verbetes que estão em volta. É claro!  Tudo é lucro. Tudo é estudo, e se for um estudo pelo mero prazer de “ficar sabendo”, melhor ainda.
 
John T. Irwin, no seu excelente estudo sobre Borges (The Mystery to a Solution: Poe, Borges and the Analytic Detective Story, Johns Hopkins University Press, Baltimore, 1994) bota seu chapéu de detetive e rastreia algumas leituras de Borges durante a composição de um dos seus melhores contos policiais, “A Morte e a Bússola” (1942).
 
No início deste conto ocorre o assassinato de um sábio judeu, o Dr. Yarmolinski, encontrado morto em seu quarto de hotel, em frente à suite ocupada pelo Tetrarca da Galiléia, que, como a polícia já sabia, portava consigo uma verdadeira fortuna em safiras. Yarmolinski é encontrado morto pelos criados, e na sua máquina de escrever portátil há uma folha com uma frase datilografada: A primeira letra do Nome foi articulada.
 
O “nome” (logo fica claro, por se tratar de estudioso do Talmude) é o nome sagrado de Deus entre os hebreus, o Tetragrammaton.
 
A investigação progride, por caminhos que não interessa espoliar aqui, por meio do inspetor Treviranus (representando a polícia oficial, de métodos rotineiros) e de Erik Lonnrot, o sherlock local. Eles chegam à conclusão de que três homens deverão ser assassinados pelo que parece ser uma conspiração antissemita. É um detalhe essencial do enredo, detalhe que se baseia numa dúvida: serão três homens assassinados, ou quatro?...
 
John T. Irwin não deixa passar despercebido o fato de que o nome do Inspetor Treviranus lembra a expressão latina tresviri capitales, trio de magistrados romanos cujo número César aumentou para quatro e depois reverteu para três.
 
Ele lembra que em 1929 Borges (aos 30 anos de idade) ganhou um prêmio literário e usou parte do dinheiro para comprar a coleção completa (em 2ª. mão) da Enciclopédia Britânica, 11ª. edição, a qual o acompanharia daí em diante.
 
Irwin observa, então, que nessa edição da Britannica estão praticamente lado a lado os verbetes “tresviri” e “Treviranus” (um naturalista alemão do século 18), bem pertinho dos verbetes “Tetrarca” e “Tetragrammaton” (The Mystery..., págs. 32-33).
 
Ou seja: Borges, ao consultar um verbete para confirmar algum detalhe, pegava em volta dele algumas dicas de tema, de inspiração, de nome próprio...
 
Surpreendente? Nem tanto, para quem é um “prestador de atenção”, que é como Jessier Quirino define um poeta. E para quem aprendeu a amar desde cedo as enciclopédias e a cornucópia de inspirações que elas nos fornecem, como Borges recorda, num dos seus diálogos com Osvaldo Ferrari:
 
Sem dúvida já lhe contei que eu costumava ir com meu pai à Biblioteca Nacional; eu era muito tímido – continuo sendo muito tímido -, não me atrevia a pedir livros, mas, nas prateleiras, havia obras de consulta, de onde eu pegava aleatoriamente, por exemplo, um volume da Enciclopédia Britânica. Um dia, tive muita sorte, porque peguei o volume DR, então pude ler uma excelente biografia de Dryden, sobre quem Eliot escreveu um livro. Depois, um extenso artigo sobre os drúidas, e outro sobre os drusos do Líbano.
 
Erudição? Talvez, mas uma erudição lúdica, movida pela curiosidade, e preservada pela memória afetiva, para vir ao socorro da imaginação no momento em que ela precisa. E com o auxílio da ordem alfabética – ou da “desordem alfabética”, como o próprio Borges a chamava, por ser um critério de organização que depois de aplicado embaralha tempos e espaços.
 









segunda-feira, 18 de outubro de 2021

4755) O feitiço mortal de Lovecraft (18.10.2021)


 

Feitiço Mortal (“Cast a Deadly Spell”, 1991) de Martin Campbell, com roteiro de Joseph Dougherty, é uma mistura excêntrica (e em muitos momentos bem sucedida) entre o filme policial hardboiled, o horror lovecraftiano e a comédia.
 
Dougherty concebeu de forma plausível (pelo menos no tom de gracejo que o filme mantém boa parte do tempo) uma Califórnia de 1948 em que os poderes maléficos das criaturas lovecraftianas existem e fazem parte do cotidiano das pessoas, como se Os Antigos, os deuses poderosos inventados por H. P. Lovecraft, estivessem à solta no mundo.
 
A premissa tem que ser implícita, porque nessa Los Angeles o detetive particular cínico e mambembe que circula resolvendo crimes chama-se Phil Lovecraft, e numa cidade onde todo mundo (inclusive a polícia e os gangsters) usa feitiços, encantamentos e invocações demoníacas como parte do cotidiano, ele é o único que não se interessa por isso.
 
É uma premissa curiosa e Feitiço Mortal extrai bons momentos de comicidade e surpresa dessa situação.


Fred Ward, que interpretou Henry Miller em Henry and June, é o detective Lovecraft, que, de acordo com o clichê básico do filme de detetive hardboiled, é contratado por um milionário para descobrir um livro raro que foi roubado de sua biblioteca, o Necronomicon.
 
Como o Necronomicon, aqui em nosso mundo, é uma invenção do escritor Lovecraft, cria-se aí uma situação próxima da sátira ou da paródia, e o filme adota essa cadência em muitos momentos, principalmente quando aparecem monstrinhos que, longe de evocarem o horror lovecraftiano, adotam o visual sessão-da-tarde dos Gremlins (1984) de Joe Dante.

 
A história vai se desenrolando de clichê em clichê: David Warner no papel do milionário ansioso para fazer um pacto com as criaturas das trevas, Clancy Brown como o ex-policial que virou gangster bem sucedido e dono de nightclub, Julianne Moore como a mulher-com-um-passado que oscila entre o detetive e o gangster, Alexandra Powers como a filha donzela mas sapeca do milionário.
 
O filme está aqui, em versão dublada:
 
https://www.youtube.com/watch?v=jLj6txDulCU


Há um trecho em que a dublagem brasileira some e surge uma dublagem em russo, mas isso passa logo e o filme volta ao normal. Ademais, os diálogos são irrelevantes, porque o problema acontece em cenas que são auto-explicativas. A primeira é a cena em que o detetive vai visitar o milionário e a filha adolescente deste tenta seduzi-lo (todo filme pós-Philip Marlowe se sente na obrigação de parodiar a cena inicial de
The Big Sleep), e a segunda é uma investigação de rotina no quarto do cara desaparecido.
 
Misturas de gêneros como neste caso têm mais importância quando as convenções de um gênero ajudam a ter uma visão diferente (e às vezes críticas) sobre as limitações, os clichês e as “facilidades” do outro gênero.
 
Quando a gente assiste, por exemplo, O Jovem Frankenstein de Mel Brooks, a comédia aparece para satirizar uma infinidade de clichês que a gente via nos filmes de terror sendo praticados com a maior solenidade, como se o diretor fosse um John Ford dirigindo um épico.
 
A comédia desmontava isso tudo: quando a corcunda do ajudante mudava de lugar, quando o cavalo relinchava toda vez que alguém dizia o nome da megera, quando o conceito de “monstro feito de partes anatômicas selecionadas” sugeria um detalhe fescenino.
 
Em Cast a Deadly Spell, numa cena típica de romance policial, o detetive entra às pressas numa delegacia, de madrugada, durante o famoso plantão noturno onde aparece “de-um-tudo”, mas em vez de travestis bêbadas e traficantes violentos ele encontra vampiras e lobisomens sendo levados para a cela por policiais entediados resmungando “que saco, noite de lua cheia é foda.” 



Todo clichê cinematográfico é um velho amigo, e é bom quanto podemos sorrir ao reencontrá-los. 
 
O fato de nesse universo os zumbis estarem sendo usados para trabalhar na construção covil também é um detalhe mostrado en passant, mas com um efeito legal.
 
E há um aspecto com uma sutileza adicional, que mereceria estar num filme com perfil semelhante mas menos brincalhão, porque toca numa questão ampla do gênero policial, do gênero fantástico. É a presença pervasiva da magia nesse mundo. Quando o milionário recebe o detetive em sua biblioteca, faz um exame rápido, e se maravilha:
 
– É verdade!... Sem símbolos, sem talismãs e sem fetiches, nada! Você realmente não usa nada, nenhuma mágica, quero dizer.
 
– Como falei ao telefone.
 
– Não acredita em magia?
 
– Acredito. Só que não uso.
 
– Por que?
 
– Razões pessoais.
 
– E elas são...?
 
– Pessoais.
 
É uma cena curta que parece tirada diretamente de uma aventura de Philip Marlowe. O detetive criado por Chandler é um homem pobre (40 dólares por dia, mais despesas), mas honesto. Todo mundo na Califórnia usa a corrupção e o roubo, e Marlowe não. Por que? Ele é santo, é religioso, é um cara moralmente superior? Nem tanto, porque Marlowe mente, engana, suborna, ameaça... Mas é honesto. Por que? Razões pessoais.
 
Usar a magia é um pouco como usar a desonestidade, é um pouco como trapacear, violar as leis (no caso, as leis da Natureza) em benefício próprio. Os detetives do mundo hardboiled, de um modo geral, mantêm-se honestos, ou pelo menos mais honestos do que os políticos, os banqueiros, os industriais e os policiais com quem convivem (para não falar nas cantoras de cabaré que casam com milionários). Existe uma “mágica” especial no seu mundo, mas eles não usam.
 
Feitiço Mortal tem momentos sérios, momentos divertidos onde existe essa superposição de clichês vistos com “lentes de diferentes cores”, momentos meio bobinhos quando alguém vai enfrentar a Besta do Apocalipse e quem aparece é um Gremlin do Projac. O elenco se sai bastante bem da brincadeira, sem a levar muito a sério mas todos dando a impressão de que estão se divertindo e não apenas cumprindo cronograma.
 
 
 







sexta-feira, 15 de outubro de 2021

4754) O poeta que não conhece o mar (15.10.2021)



Preparando uma palestra sobre Jorge Luís Borges, fui bater numa das ótimas coletâneas de diálogos que ele manteve com Osvaldo Ferrari (Sobre os Sonhos e outros diálogos, São Paulo, Ed. Hedra, 2009; são três volumes, sendo os outros dois intitulados Sobre a Amizade... e Sobre a Filosofia...).
 
Falei sobre essa série aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2010/06/2184-conversacoes-de-borges-932010.html
 
Na página 77 desse livro, os interlocutores estão falando sobre o mar na literatura.
 
OF – O mar.
 
JLB – O mar, sim, que está presente na literatura portuguesa e ausente na literatura espanhola. Por exemplo, o Quixote é um livro...
 
OF – De planície.
 
JLB – Sim, por outro lado os portugueses, os escandinavos, os franceses – por que não? – depois de Hugo, sentem o mar. E Baudelaire também sentiu e, evidentemente, o autor de O barco bêbado, Rimbaud, sentiu o mar, que nunca havia visto. Mas talvez não seja necessário ver o mar: Coleridge escreveu sua Balada do velho marinheiro sem ter visto o mar, e quando o viu sentiu-se defraudado.
 
Ora, alguns dias atrás eu publiquei aqui no blog um depoimento bem humorado de Ursula LeGuin, onde ela afirmava não conhecer nada sobre barcos, nunca ter navegado, e mesmo assim ter escrito viagens marítimas extremamente vívidas em seus livros da série “Earthsea” (“Terramar”), principalmente no terceiro volume, A Praia Mais Distante (“The Farthest Shore”). 

Ou seja: LeGuin reafirma que boas leituras e boa imaginação são o bastante para que um escritor possa falar sobre uma atividade complexa que nunca experimentou.
 
No caso de Rimbaud e de Coleridge, fiquei com a pulga atrás da orelha. Acreditei em Borges quando ele disse que Rimbaud nunca havia visto o mar (viu depois de abandonar a poesia, quando cruzou algumas vezes o Mediterrâneo, fazendo o trajeto Marselha/África). De onde teria tirado as imagens e a inspiração para o poema em que o Barco conta, na primeira pessoa, suas aventuras e suas visões delirantes pelos oceanos afora?
 
Borges não citaria em vão esses dois poetas. Em “Pierre Menard, autor do Quixote” (em Ficções, 1944), ele faz Menard comparar justamente esses dois poemas com o livro que assume como projeto:
 
Não posso imaginar [diz Menard] o universo sem a interjeição de Edgar Allan Poe: “Ah, bear in mind this garden was enchanted!” ou sem o “Bateau Ivre” ou o “Ancient Mariner”; sei-me contudo capaz de imaginá-lo sem o “Quixote”.




Fui me socorrer de um dos meus livrinhos preferidos, Le Bateu Ivre – Análise e Interpretação de Augusto Meyer (Rio: Livraria São José, 1955, 96 págs.).
 
Nele, o poeta traduz e analisa “O barco bêbado”, indica suas fontes de inspiração, examina suas inovações vocabulares, cita precursores e influências... Enfim, é um livrinho que me acompanha desde os vinte anos.
 
Rimbaud nasceu em outubro de 1854, e escreveu “Le Bateau Ivre” aos dezesseis anos, influenciado pela leitura dos romances marítimos de Julio Verne. Augusto Meyer rastreia outras influências, como a do Magasin Pittoresque, cuja coleção o poeta provavelmente consultou quando ficou hospedado na casa do seu professor e amigo Georges Izambard.
 
Para conhecer melhor a vida do poeta, há no YouTube um excelente documentário de duas horas, dirigido por Richard Dindo, com legendas em português, com atores e atrizes recitando trechos das cartas e depoimentos dos parentes e amigos de Rimbaud, além dos próprios versos dele:

https://www.youtube.com/watch?v=8X4-9pepY_A&t=360s
 
À página 20 de seu livro, Augusto Meyer comenta:
 
O tema aparente de Le Bateau Ivre é o maior lugar-comum deste mundo, é o “infecundo, o amargo mar”; tema retórico-poético, sem dúvida, para um adolescente que nunca arredara pé da terra firme e até então, setembro de 1871, conhecia quando muito o mar de Homero e Virgílio, de Hugo e Baudelaire; navegara também decerto nas coleções de viagens e aventuras, em Fenimore Cooper e no Robinson Français.
 
Não chega a ser uma prova conclusiva, mas tudo indica de fato que Rimbaud, ao produzir seu poema, nunca tinha ido muito além de sua cidadezinha natal de Charleville (que é mostrada de maneira vívida no documentário citado acima).
 
E quanto a Coleridge?
 
Samuel Taylor Coleridge, um dos grandes poetas românticos ingleses, nasceu em outubro de 1772 e escreveu The Rime of the Ancient Mariner, um dos seus poemas mais visionários, entre 1797 e 1798. A primeira publicação dele foi em 1798, como parte do volume das Lyrical Ballads


É a história das desventuras por que passou um marinheiro com seu barco, atravessando cenários aterrorizantes e fantasmagóricos pelo mar afora. Já escrevi a respeito desse poema e de sua excelente edição brasileira, pela Ateliê Editorial, com tradução de Alípio Correia de Franca Neto, aqui:
 
https://mundofantasmo.blogspot.com/2009/02/0831-balada-do-velho-marinheiro.html
 
Coleridge teria, portanto, cerca de 25-26 anos quando compôs este poema, um dos seus textos mais famosos. Que experiência de mar teria ele, então?
 
A “Balada do Velho Marinheiro” é, bem na linha dos românticos ingleses de então, uma obra de imaginação, em que as visões íntimas do poeta se sobrepõem às coisas que ele vê com os próprios olhos.
 
Sim, mas Coleridge já tinha feito uma viagem marítima, ou não? Afinal, ele nasceu e passou a infância da região de Devon, no sudoeste da Inglaterra, não muito distante do litoral. Havia muito mais chances de que ele conhecesse o mar do que no caso de Rimbaud.
 
Ao que parece ele o conhecia como eu conheço: de olhar a uma prudente distância. Acabei recorrendo a um livro cheio de informações preciosas e comentários oportunos sobre Coleridge e sua poesia: The Road to Xanadu – A Study in the Ways of the Imagination, de John Livingston Lowes (Londres: Picador, 1978 – edição original, 1927).


À página 61, Lowes comenta (trad. BT):
 
Há duas coisas que não devemos perder de vista à medida que avançamos. Foi somente seis meses após ter escrito “A Balada do Velho Marinheiro” que Coleridge, pela primeira vez, embarcou num navio para uma viagem marítima, e mesmo assim apenas para percorrer o trajeto entre Yarmouth e Cuxhaven. Ele está descrevendo [no poema] coisas que poderia conhecer apenas através de livros ou de histórias contadas sobre o mar. Ele nunca tinha visto nada daquilo. [ênfase no original] Este é o primeiro fato que devemos ter em mente. O segundo é que ele tinha visto aquilo tudo. [idem] E neste paradoxo encontra-se a pista para mais de um dos nossos enigmas.
 
A literatura imaginativa repousa nessa dualidade, nessa capacidade de ver o que não foi visto, de ver com a imaginação e não com os olhos, de ser capaz de construir mentalmente uma sucessão aparentemente inesgotável de imagens complexas que são produto apenas da imaginação, e não têm correspondente no mundo real.
 
Os poetas românticos ingleses (Coleridge, Wordsworth, Byron, Shelley) cultivavam essa capacidade de visualizar o inexistente, que não é diferente do que é feito por Ursula LeGuin ou J. R. R. Tolkien ou George R. R. Martin ou qualquer escritor de fantasia contemporânea.
 
Coleridge era, a julgar por suas cartas e seus diálogos, um indivíduo de memória visual extremamente aguda, e podemos dizer também que de extrema imaginação visual. O volume onde o poema do “Marinheiro” apareceu, Lyrical Ballads, é o mesmo onde o poeta usou pela primeira vez a expressão, hoje corrente, de “voluntária suspensão da descrença” (“willing suspension of disbelief”), como uma atitude necessária a quem lê uma obra de literatura imaginativa.
 
O fato de Rimbaud ou Coleridge escreverem sobre viagens marítimas sem ter tomado parte nelas não é mais surpreendente do que o fato de Gastão Cruls ter escrito A Amazônia Misteriosa (1925) antes de conhecer a floresta, ou de Ray Bradbury conceber suas Crônicas Marcianas (1950) sem ter pisado no planeta Marte.