Uma vez eu estava discutindo com uma turma sobre a enorme reviravolta
que a ficção científica experimentou na década de 1960, na Inglaterra e nos
EUA. Na Inglaterra houve principalmente o surgimento da revista vanguardista New Worlds, dirigida por Michael Moorcock,
que divulgou a obra de autores importantes como Brian Aldiss, J. G. Ballard,
Christopher Priest, M. John Harrison, John Sladek, John Brunner, Tomas M.
Disch...
Comentei: “A FC estava presente em tudo, no cinema inglês, na cultura
pop...” E proferi a frase impensada,
comprometedora: “A capa do Sgt. Pepper’s,
dos Beatles, está cheia de escritores de ficção científica”.
Foi uma afirmação intuitiva, baseada na memória inconsciente, mas o
rigor acadêmico me obriga a aboná-la com a observação empírica. A lista abaixo interpreta
o termo “escritores de FC” no sentido mais amplo possível, incluindo
personalidades cuja obra teve e tem algum tipo de influência no gênero, seja a
influência pervasiva e difusa das grandes idéias, seja o contato com
algum ícone específico.
Edgar Allan Poe (*) é um dos
mais visíveis, até por estar bem no centro da fileira do alto. Poe é uma das
figuras mais universais da literatura em inglês, todo adolescente leu alguma
coisa dele. Do ponto de vista temático, está mais próximo dos gêneros
“policial” e “horror”, mas ninguém questiona a importância que suas idéias
tiveram para a FC. Escreveu sobre viagens de balão, viagens à Lua, o mito da
Terra Oca, mesmerismo, hipnose, animação suspensa, fendas temporais... Seu nome é citado por John
Lennon na letra de “I Am the Walrus”.
Ao lado de Poe, na capa do disco, aparece o psicólogo Carl G. Jung. Suas teorias sobre
arquétipos, sonhos e alucinações controladas, inconsciente coletivo e
simbolismo influenciaram não apenas a literatura do mainstream mas também a literatura fantástica ocidental (Philip K.
Dick era grande leitor de Jung). E coube a ele uma das mais detalhadas
explicações psicológicas sobre o fenômeno dos discos voadores (Flying Saucers – A Modern Myth of Things
Seen in the Skies, 1964).
Ainda na fila do alto, entre as figuras da capa do disco, o segundo
personagem da esquerda para a direita é Aleister
Crowley, o famoso mago inglês que durante décadas aprontou rituais
escandalosos de ocultismo e magia ritual nas Ilhas Britânicas e fora delas (em
Lisboa, envolveu-se num episódio bizarro com Fernando Pessoa, numa história que
até hoje não foi bem contada). Chamava a si mesmo “A Besta do Apocalipse”
(outros o chamaram “O Besta do Apocalipse”) e influenciou gerações de
escritores de romances fantásticos. Somerset Maugham o usou como modelo para o
tenebroso Oliver Haddo, o vilão de O Mágico
(1908). Também influenciou inúmeros roqueiros crédulos, de Jimmy Page a Raul
Seixas.
Na segunda fila de baixo para cima temos um peso-pesado, Aldous Huxley (*), o autor de clássicos
como Admirável Mundo Novo, A Ilha (ficção utópica), O Macaco e a Essência (futurismo
absurdista?) e outros. Huxley estava no auge de sua fama póstuma (morreu em
1963) quando o álbum saiu.
Logo em seguida, um pouco mais abaixo, aparece Dylan Thomas, o maior poeta do País de Gales e um dos maiores da
língua inglesa. Uma parte menos conhecida de Thomas é sua prosa, embora o Retrato do Artista Como Jovem Cão (1940),
uma brilhante coletânea de contos semi-autobiográficos, seja reeditada com
frequência. Thomas escreveu numerosos contos de índole onírica, ocasionalmente
macabra ou fantasmagórica. Uma boa seleção deles é The Collected Stories (New York: New Directions, 1984).
E logo ao lado dele temos a figura de Terry Southern, cuja interface mais notável com a ficção científica
é o roteiro que fez para o Dr. Fantástico
(1964) de Stanley Kubrick. Ao que se comenta, o romance original (de Peter
George) era sério e com final otimista. Coube a Southern ajudar Kubrick na
criação de um roteiro histérico, satírico, iconoclasta e de final comicamente
apocalíptico. Era essa a praia de TS, que depois teve também alguma
participação no roteiro de Barbarella (1968)
de Roger Vadim.
Mais adiante nessa mesma fileira, intrometendo-se sobre a sobrancelha
de Marilyn Monroe, está o inquestionável William
S. Burroughs (*), autor de Naked
Lunch (1959). A ficção de Burroughs é uma mistura de experimentalismo da
vanguarda, delírio surrealista com forte viés alucinógeno (poucas pessoas
escreveram sobre drogas com tanta franqueza e conhecimento de causa) e pulp fiction espacial absorvida na
adolescência. Neste último aspecto, ele é uma influência reconhecida por
William Gibson, J. G. Ballard, Philip K. Dick e outros.
Outro inquestionável, quase no fim dessa fila, no lado direito, é H. G. Wells (*), um autor que
dificilmente deixaria de ser lido por jovens ingleses imaginativos como Lennon
e McCartney principalmente. (Dizem que na elaboração das listas de sugestões
para a capa desse álbum George Harrison se limitou a indicar alguns gurus
indianos, e Ringo Starr disse: “O que vocês botarem eu concordo." )
Descendo um pouco e indo para a esquerda, aparece outro nome de peso, Oscar Wilde. É o criador de um dos
fantasmas mais simpáticos do gênero terrorífico, o protagonista de O Fantasma de Canterville, que já
traduzi para a Casa da Palavra, com as belas ilustrações de Romero Cavalcanti.
E Wilde criou uma das mais poderosas imagens do “duplo” na literatura com o
clássico O Retrato de Dorian Gray (1891),
a brilhante narrativa decadentista de um indivíduo que é capaz de desviar a
velhice, as doenças, os males do corpo, para um ponto afastado de si (a pintura
que o retrata).
Por cima da cabeça de Ringo Starr aparece esse rapaz que nunca foi
autor de ficção-científica, mas está aí simbolizando (para mim) um clássico do
gênero. Johnny Weissmuller foi um dos melhores Tarzans do cinema,
e certamente um ídolo da geração dos Beatles, que estão 1 degrau geracional acima
de mim (9-10 anos em média). Ele nos faz lembrar, é claro, do
grande Edgar Rice Burroughs, cujos livrinhos da Coleção Terramarear devorei na juventude; ainda tenho alguns deles, os mesmos exemplares comprados por volta de 1964, 1965,
quando as guitarras da beatlemania já soavam em nossos ouvidos. Vale lembrar
também que o autor foi o criador das aventuras marcianas de John Carter, que
são pura FC pulp.
E chegamos finamente ao lado direito com Lewis Carroll (*), o autor das Aventuras
de Alice no País das Maravilhas / Alice através do espelho. Aqueles livros
que sobrevivem a qualquer adaptação para o “público infantil”. São literatura
fantástica, isso ninguém pode negar; e como Carroll era um grande conhecedor e
investigador da Matemática e da Lógica, seus livros são cheios de adaptações de
postulados, teoremas, leis ou mecanismos dessas disciplinas das quais as Ciências
da Matéria tanto necessitam.
Muito bem, então. Talvez a capa não esteja “cheia de escritores de
ficção científica” propriamente ditos. Dos onze personagens listados acima,
apenas cinco aparecem na The Encyclopedia
of Science Fiction, e estão assinalados com um asterisco (*). Os demais,
nos entanto, alargam, aos meus olhos de leitor, o universo cultural de onde
brotaram esses quatro rapazes. Quando peguei no vinil de Sgt. Pepper’s pela primeira vez, nem Bob Dylan eu sabia quem era. Rastrear
essas figuras me levou uma vida inteira, e só consegui neste século graças à Beatles Encyclopedia de Bill Harris
(Hyperion, 1993) e à Wikipedia. Os Beatles, nessa capa, criaram uma constelação
temática que ilumina o próprio conceito de FC.
Um comentário:
Caro Bráulio Tavares,
Acompanho seu blogue Mundo Fantasmo e gosto de suas resenhas. Eu queria lhe recomendar alguns livros. De Eric R. Eddison, The Worm Ouroboros e Zimiamvia: A Trilogy. De Coelho Neto, Contos da Vida e da Morte, que contém contos fantásticos como A casa "sem sono", O duplo, A sombra. Estou lendo Miragem de Coelho Neto e aprecio sua literatura realista, tendo lido também O Morto. Tenho também dele Velhos e Novos. Já li The Worm Ouroboros e considero excelente livro. Quanto a Zimiamvia: A Trilogy, não li todo ainda.
Saudações,
Herculano de Lima Einloft Neto.
Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
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