quarta-feira, 18 de novembro de 2020

4642) Minhas Canções: "O Marco Marciano" (18.11.2020)



São poucas as vezes em que um compositor imagina uma canção em sua cabeça e, sem que nem sequer precise pisar no estúdio, descubra que ela foi gravada exatamente como ele imaginou. Na verdade, mais comum é o contrário: você compõe, entra no estúdio determinado a gravar daquele jeito, trabalha feito um desgraçado, e a música acaba ficando completamente diferente.
 
“O Marco Marciano” faz parte do álbum O Dia Em Que Faremos Contato, de Lenine (1997), produzido por ele e Chico Neves. Foi uma música que saiu exatamente como estava na minha cabeça, e acho que isso se deve ao fato de que eu e o parceiro tínhamos desenvolvido àquela altura um jargão próprio em que bastava usar uma expressão meio absurda (para quem estivesse de fora), mas o outro entendia de imediato.
 
Anos antes, em 1976, a NASA tinha fotografado com a nave Viking a superfície de Marte e divulgado fotos de região de Cydonia. Nela aparecia uma montanha com mais de 3 km de extensão que, vista do alto, se assemelhava a um rosto humano. Foi batizada pela imprensa de “The Face on Mars”.






Claro que era um bom ponto de partida para uma especulação de ficção científica. O disco que Lenine estava planejando ia ter um lado voltado para essa temática. Acho que já tínhamos composto a canção título, que parodiava um verso famoso de Herivelto Martins na “Ave Maria do Morro” (“Pois quem mora lá no morro já vive pertinho do céu”), dizendo: “Pois quem mora lá no morro vive perto do espaço sideral”.
 
Lenine viria a dar mais força a este lado FC do disco usando uma capa de um livro da coleção Futurâmica que ele tinha em sua coleção de FC. O livro é O Homem Eterno (“Bang!”, 1958) de F. Richard-Bessière, uma das divertidas aventuras pulp fiction do repórter Sidney Gordon, mais uma vez envolvido em viagens no tempo.
 
Curiosamente, a edição brasileira saiu, por algum motivo, com duas capas diferentes, a oficial (da qual já tive alguns exemplares) e outra capa muito rara, que é o exemplar que Lenine tem em casa e que já tentei inutilmente surrupiar.




 
Para “O Marco Marciano”, pegamos a idéia do “Rosto em Marte” e tentamos projetar nela o conceito cordelesco dos “marcos” ou “fortalezas”, construções gigantescas que os poetas de cordel imaginam e descrevem, com riqueza de detalhe e exuberância de imaginação. Os “marcos” são uma espécie de fortes ou castelos defendidos por muralhas de aço com mil metros de altura, milhões de guerreiros com canhões e catapultas, bichos ferozes, monstros... Um propugnáculo, enfim. 


Naquela época um poeta do Recife, meu amigo José Honório, tinha feito um folheto nessa linha chamado O Marco Cibernético Construído em Timbaúba. Nós achamos que a única maneira de suplantar uma idéia como essa seria conceber um “marco” interplanetário, e foi aí que entrou o Rosto em Cydonia. A música mostraria que nossa fortaleza estava em outro planeta, era de difícil acesso, cercada de tais e tais proteções.
 
Para fazer a letra, lembrei de um “marco” famoso, A Defesa da Lagoa (1928), de Joaquim Francisco Santana (1877-1917), um cantador negro, ex-agricultor, cuja imaginação fértil lhe valeu o apelido “Joaquim Sem Fim”.
 
Ele começa seu poema dessa maneira:
 
Quero agora contar publicamente
a os que apreciam minha loa,
descrevendo um trabalho que eu fiz
de um muro em redor de uma lagoa,
que com ele cerquei famosos sítios
e a terra amurada é toda boa.
 
Aproveitei a rima, aproveitei a estrofe em decassílabos rimando ABCBDB, e nosso primeiro verso ficou assim:
 
Pelos alto-falantes do Universo
vou louvar-vos aqui na minha loa
um trabalho que fiz noutro planeta
onde nave flutua, e disco voa;
fiz meu Marco no solo marciano
num deserto vermelho sem garoa.
 
Combinamos que o arranjo seria à base de voz com efeito, algum efeito eletrônico tipo Vangelis, e viola nordestina. Lenine lembrou então de um LP do mestre Azulão, que ele tinha, onde Azulão executa um lindo pinicado de viola para cantar O Marco Brasileiro, de Leandro Gomes de Barros.
 
Azulão:
https://www.youtube.com/watch?v=e6kx1ZsFjhw&ab_channel=EsdrasSoares

 
A música foi gravada utilizando uma viola que eu tinha na época, fabricada de encomenda pelo cantador, compositor e luthier Adauto Ferreira, velho companheiro de antigas noitadas do repente. Hoje a viola não está mais comigo, foi transferida para as mãos do meu parceiro Beto Lemos, da Barca dos Corações Partidos, que sabe o que fazer com ela (e tem utilização pra ela) mais do que eu.

Tempos depois da música gravada, conversando com Ariano Suassuna, ele lembrou a gravação de Azulão e disse que esse ponteado de viola já era executado quando ele era garoto, para acompanhar os “marcos” cantados pelos violeiros de então.
 
Nos meus cadernos, tenho uma anotação de 8 de julho de 1996 com uma lista provisória do repertório do disco, e a anotação:
 
“O Marco Marciano” – ponteio de Azulão (do marco de Leandro).
Talvez: sextilhas com linha de martelo (3-3-4)
 
O que indica que antes mesmo da letra ser escrita já tínhamos decidido pelo uso do ponteio da viola. A letra só foi escrita (conforme minhas anotações) em 9 e 12 de agosto do mesmo ano. No mesmo rascunho aparece um verso de teor mais fraquinho, que acabou excluído:
 
O meu Marco não tem bomba de nêutrons
das que matam sem nada destruir.
Nem é uma redoma que repele
qualquer tropa que a venha invadir.
O meu Marco é formado de palavras
e de sons que é difícil traduzir.
 
Com os cortes de sempre, a canção fechou o formato em seis estrofes.
 
Lenine:
https://www.youtube.com/watch?v=GrfBjVuxr3A&ab_channel=Lenine-Topic
 
Lembro que na primeira versão gravada as estrofes eram cantadas de duas em duas, com o riff de viola intercalado. Talvez isso tenha tornado a faixa muito longa, e na versão final ficou assim; riff + 3 estrofes + riff + 3 estrofes + riff.
 
O disco foi lançado no segundo semestre de 1997, o que mostra o longo trabalho de maturação desde a idéia do “vai ser assim” até a música pronta.
 
Quanto ao Rosto em Marte... sobrevoos subsequentes produziram imagens mais próximas e com maior resolução, tirando um pouco a semelhança com um rosto humano (ou com o rosto de um personagem do Planeta dos Macacos, como eu achava às vezes). O Rosto era de mentira, mas o Marco é de verdade.





 
 




segunda-feira, 16 de novembro de 2020

4641) "The Big Sleep" no cinema (16.11.2020)




A tradução de um texto literário se assemelha às vezes, em alguns processos, à adaptação desse texto literário para o cinema (TV, teatro, etc.).
 
Em ambos os casos, trata-se de pegar uma obra onde certos efeitos são obtidos através do uso de certos “instrumentos” – no caso do texto literário, através das imagens e das idéias produzidas em nossa mente durante a leitura de palavras escritas.
 
E criar outra obra onde esses efeitos serão repetidos, mas através do uso de instrumentos totalmente distintos – as imagens em movimento.
 
Nunca vai haver consenso sobre a natureza desses efeitos, porque cada adaptador escolhe o que lhe parece mais importante, mais belo, mais relevante, mais impregnado do espírito da obra – e descarta o resto.
 
Estou dando uma olhada (10 ou 15 minutos por dia) em duas adaptações do primeiro romance de Raymond Chandler para o cinema.


The Big Sleep (1946) foi dirigido por Howard Hawks, escrito por William Faulkner, Leigh Brackett e Jules Furthman, e teve Humphrey Bogart no papel do detetive Philip Marlowe.
 
The Big Sleep (1978) foi escrito e dirigido por Michael Winner, e teve Robert Mitchum no papel de Marlowe.
 
Estes dois filmes são muito diferentes entre si, apesar de baseados no mesmo livro e ambos considerados pela crítica como adaptações razoavelmente fiéis. Cada uma delas comete um pequeno número de terríveis heresias contra o livro, mas no geral procura manter-se pertinho dele.
 
O filme de Howard Hawks mudou completamente o final, criando uma cilada, um tiroteio e uma morte que não estão no livro. Também diluiu referências a drogas, a ninfomania e a nudez, devido ao Código Hays, um código de censura aos filmes de Hollywood em sua época. Inventou também um romance entre o detetive e uma das suspeitas, para faturar em cima do romance real entre Bogart e Lauren Bacall.



O filme de Michael Winner segue muito mais de perto os acontecimentos e os diálogos do livro, às vezes num grau irritante de detalhe. Mas tem uma heresia básica, que deixou todo mundo de boca aberta: a ação não se passa na Califórnia de 1940, e sim em Londres, na época da filmagem.
 
Nestes dois filmes, reencontramos uma famosa dicotomia que existe na tradução literária: a fidelidade à letra e a fidelidade ao espírito.
 
O filme de Hawks é considerado mais ou menos um clássico do filme policial “noir” norte-americano. Mesmo sob censura, exprime o ambiente de violência, corrupção moral e pequenos golpes dos romances de Chandler. Histórias onde pessoas ricas e mimadas aprontam o que lhes dá na telha e desencadeiam uma guerra entre trambiqueiros e criminosos para ver quem se aproveita mais da sua fortuna. The Big Sleep é basicamente sobre isto.
 
Transpor essa “ecologia moral” para a Londres de 1978 exigiria uma reescritura completa do argumento e dos personagens, e curiosamente Michael Winner optou pelo contrário: a fidelidade ao-pé-da-letra ao argumento original.
 
Muita gente pensa que transpor um livro para o cinema é uma façanha gigantesca mas simples, como a daqueles engenheiros chineses capazes de pegar um prédio de 10 andares, despregá-lo do chão e movê-lo horizontalmente a 500 metros de distância, para que no local anterior possa passar uma rodovia, e o prédio ser preservado.
 
Foi isso que Michael Winner tentou fazer, mas uma situação dramática da Califórnia nos anos 1940 não pode ser transplantada automaticamente para a Londres dos anos 1970.
 
O ator que faz Philip Marlowe no filme de Winner é o meu preferido: Robert Mitchum, grandalhão, pesado, irônico, com cara de quem é capaz de aguentar dez assaltos apanhando de Evander Hollyfield e depois chamá-lo para tomar um drinque. O problema é que o Marlowe dos livros é um homem na faixa dos 40 anos, e Mitchum aparenta os 60 que tinha na filmagem.
 
Bogart, por causa do filme de 1946, acabou se tornando o que o pessoal chama hoje “o Marlowe icônico”, mesmo sendo baixinho (nas cenas com Lauren Bacall tinha que usar sapatos especiais para ficar mais alto do que ela). Uma das características físicas de Marlowe é ser grandão, aguentar muita porrada (nos livros, ele apanha mais do que bate). Bogart tinha 1,73m, e só convence porque é ótimo ator e tem o viés de sarcasmo do personagem.
 
Como se vê, em cada “tradução” perde-se num detalhe e ganha-se em outro.
 
Uma lebre interssante foi levantada por William Luhr no livro Raymond Chandler & Film (Tallahassee: Florida State University Press, 1991). Um dos principais elementos de plot é que a livraria de livros raros de Geiger, a primeira vítima, lhe serve como camuflagem para a venda e o aluguel de livros pornográficos. No livro, há uma longa sequência em que Marlowe segue a pé um cliente que, apavorado, acaba jogando nuns arbustos o pacote comprometedor e fugindo na carreira.
 
No filme de 1946, tudo isso é botado para escanteio, por causa da censura. No filme de 1978, como não tinha censura, Michael Winner mostra a cena, mostra o livro, mostra as fotos. E Luhr argumenta:
 
O problema aparece porque Winner ambienta seu filme em Londres nos anos 1970, não em Los Angeles dos 1930. Na década de 1930, [quando transcorre a ação do livro] a pornografia explícita era algo que se vendia por baixo do pano. Na Londres dos 1970, entretanto, alguém precisaria apenas caminhar para Leicester Square e comprar abertamente um material que faria Mae West enrubescer. As atitudes culturais com relação e nudez e sexo mudaram; hoje em dia ninguém se surpreende em ver um exemplar da Playboy na mesa de um banqueiro. (...) Consequentemente, a reação de Marlowe ao livro, e a o caráter furtivo da loja de Geiger (...) parecem ridículos.
(pág. 183, trad. BT)

Winner, que se gaba de ter seguido fielmente o livro, esquece que depois de uma grande infidelidade (mudar a época e a cidade) qualquer minúcia ou é desnecessária ou contraditória.
 
Existem atitudes de época, emoções de época, reações de época, vocabulário de época. Se um adaptador transporta isso para uma época diferente, vai ter que recalcular tudo.







quinta-feira, 12 de novembro de 2020

4640) Eu me lembro 20 (11.11.2020)


1

Eu me lembro de quando a gente foi morar na Vila dos Motoristas, atrás do campo do Treze (também conhecido como “Estádio Presidente Vargas”). Tudo era novidade, depois de termos morado uns 3 ou 4 anos seguidos na rua Miguel Couto, o que, para quem tinha 10 anos, como eu, era tempo pra caramba. Meu pai fez uma viagem ao Rio. (Ainda hoje, a expressão “Hotel Serrador” tem um eco mítico em minha lembrança, e anos depois, quando o vi pela primeira vez ali perto da Cinelândia, pareceu-me um pedaço de Campina.) Na volta da viagem, Seu Nilo mostrou uns livros que tinha comprado no aeroporto. “É uma editora nova que está começando,” explicou ele. A editora era a Editora do Autor, e os livros eram a Antologia Poética de Vinicius de Moraes, O Homem Nu de Fernando Sabino, O Cego de Ipanema de Paulo Mendes Campos e Ai de Ti, Copacabana! de Rubem Braga. Que eu passei a devorar com olhos arregalados, porque até nas capas, no projeto gráfico, eu sentia uma novidade, uma modernidade no ar. Menino que eu era, fiquei “arriado dos quatro pneus” por Vinicius e Sabino, mas Paulo Mendes Campos e o velho Braga eu só aprendi a saborear bem mais tarde, depois dos vinte. 


2
A gente se mudou em 1961 para o Alto Branco, momento triunfal da primeira casa própria – e última, porque de lá para cá foi “a casa dos meus pais”, e hoje é onde meu sobrinho Nilo Neto mora com a família. Meu pai nunca soube dirigir e nunca teve carro. O Alto Branco era uma espécie de “zona rural” naquele tempo, nem linha de ônibus tinha, tinha umas kombis que faziam a circular, e só elas dão um livro. Imagine 15 pessoas e suas respectivas feiras, num sábado, amontoadas ali dentro, e um cobrador em pé, encurvado, catando os trocados de cada um. Meu pai começou a armar um esquema de pegar caronas, porque a descida-e-subida era longa (descida até o Ponto Cem Réis e o Canal, e subida dali em diante). Um amigo dele tinha um carro e morava perto. A gente saía do Colégio Alfredo Dantas meio-dia (eu com 11 anos, Pedro com 7), Seu Nilo pegava a gente e ficávamos assim-como-quem-não-quer-nada perto do carro do sujeito, até que ele aparecesse e ofertasse uma carona. Na época eu era fascinado pelo fusca, o famoso Volkswagen, e aprendi que o carro do nosso benfeitor era parecido, era um Volksroll. Anos se passaram até eu perceber, por vias transversas, que a marca era de fato um Vauxhall.




3
Esse tempo em que eu estudei no Alfredo Dantas (foram cinco anos ao todo) teve altos e baixos. Por isso eu ainda hoje tenho fascinação por livros de garotos-sofrendo-na-escola. Não necessariamente bullying, embora naquele tempo fosse prática normal. Livros como O Ateneu (Raul Pompéia), Doidinho (José Lins do Rêgo), Anos de Ternura (A. J. Cronin), Books vs. Cigarettes (George Orwell), A Colônia de Férias (Emmanuel Carrère) e outros. Guri abestalhado como eu sofria muito. Um dia eu fui ao quadro-negro, e na volta à carteira... cadê minha bolsa com os livros e cadernos? Comecei a procurar, quase chorando (“se eu chegar em casa sem meus livros eu levo uma surra”), a professora interrompeu a aula e me mandou olhar em todas as carteiras da classe, pra ver quem tinha tirado. Silêncio, expectativa, risadas sorrateiras. Olhei em todas, e nada. No fundo da sala, que era espaçosa, tinha um painel de madeira encostado à parede, com fotos de formandos da turma tal. Tive então o paradoxal momento mais feliz da minha vida. A bolsa estava lá (tenho uma polaróide mental). Peguei e me sentei de novo, sem dizer nada.



4
Falei que meu pai não dirigia; me lembro de muitas corridas hilárias com taxistas. Uma vez ia a família toda num táxi grande. O motorista “se amostrava” bastante e Seu Nilo começou a elogiar: “Mas o cara dirige muito! É um Pintacuda!” E aí é que o motorista se amostrava mesmo. (Carlo Pintacuda era o Lewis Hamilton do tempo dele.) Ele tinha seus taxistas preferidos no ponto de táxis que ficava em frente ao Café São Braz, no tempo em que a rua Cardoso Vieira era aberta e não existia ainda o famoso Calçadão. O motorista mais constante dele era Luizinho, um cara meio louro, rosto vermelho, cabelo meio arrepiado, muito piadista. Meu pai almoçava, botava o paletó, pegava o telefone, ligava para o ponto de táxi e dizia apenas: “Vem me buscar”. Eu dava tratos à bola para entender como o motorista adivinhava que era ele. (Isso foi no tempo em que eu conheci a expressão “dar tratos à bola”.) Outra mania que ele tinha era atender o telefone dizendo: “Alô Zanfan Delapatrí.” E às vezes quando a pessoa do outro lado dizia: “Quem está falando, por favor?”, ele dizia: “O Conde de Monte Cristo”, e as pessoas invariavelmente desligavam.




5
Um ritual que tinha lá em casa de tantos em tantos meses era a limpeza da máquina de escrever, uma Olivetti Lexicon 80 cinza onde aprendi a batucar com dois dedos até evoluir para os três de atualmente. Quando os tipos da máquina estavam cheios de microfibras da fita embebida em tinta, e quando a película oleosa e graxenta que lubrificava as engrenagens estava toda aderida por grãos de poeira, fuligem e outros micro-detritos, havia o Domingo de Irapuã. Era o técnico (trabalhava na UFPB) que vinha limpar a máquina, mediante um cachê razoável. Era um cara tranquilo, metódico. Chegava lá em casa sempre numa manhã de domingo, fazia estender uma lona no centro da sala, sentava-se ali com sua maleta de instrumentos e desmontava a máquina inteira, pecinha por pecinha, limpava com álcool, etc., depois a recompunha, conversando com Seu Nilo o tempo todo. Quando terminava, reunia tudo, a máquina voltava reluzente e fragrante à sua mesinha, ele lavava as mãos e sentávamos todos à mesa, onde era de praxe haver um gigantesco cozido com pirão à nossa espera.




6
Por volta de 1965 comecei a trabalhar no Diário da Borborema no horário da tarde, convidado pelo meu mestre Josusmá Viana. Eu fazia pequenos mandados e, como era fluente na redação, copidescava os textos às vezes meio truncados de repórteres que tinham três vezes a minha idade, eram feras na investigação mas claudicantes na retórica. Retórica sempre foi comigo mesmo. Meu salário era 15 cruzeiros, pago em duas prestações quinzenais de 7,50. Quando recebi essa primeira fortuna fiquei zonzo. Como diria um amigo meu, muitos anos mais tarde: “Rapaz, eu ganhei tanto dinheiro que abri conta em dois Bancos, porque um só não ia dar vencimento”. O que fiz? Fui direto para a banca de revistas de Henrique (que a essa altura não era mais uma banca na calçada, era uma lojinha a três portas de distância do Café São Braz) e perguntei o preço de uma montanha de revistas amarradas que ocupava uma parede inteira, até quase o teto. Era uma coleção completa de Seleções do Reader’s Digest de 1940 a 1965. Acertamos o pagamento parcelado, e todo dia quando eu saía do jornal levava um dos pacotes para casa. Serviu muitíssimo ao meu repertório de piadas de caserna, de flagrantes da vida real, de enriquecimento de vocabulário, de definições definitivas e de muitas frases de efeito que 55 anos depois jogo nas redes sociais e as pessoas dizem: “Mas que inteligência!...”
 
 
 
 
 


domingo, 8 de novembro de 2020

4639) Sete reclamações (8.11.2020)


1
Manuel Domingos Campos Neves, assessor jurídico do Banco do Norte Fluminense, em Campos (RJ), chegou em casa, voltando do trabalho, às 19:40 de uma terça-feira, abriu a porta do apartamento, e viu na sala uma enorme poça de sangue da janela da frente até o sofá, encharcando o tapete, e o cinzeiro da sala (ele fumava, a esposa não) cheio de pontas de cigarro. Ele chamou: “Maristela!”. Quando Maristela apareceu, assustada com aquele tom de voz, ele apontou com o dedo e disse: “Quem foi que andou fumando aqui?...” 
 
2
Paulo César Medeiros, 48 anos, gerente do mercadinho Superpreço, em Montes Claros (MG), chamou ao escritório a operadora de caixa Auxiliadora Lins, 27 anos, pediu que entrasse, fechasse discretamente a porta, sentasse; perguntou se queria uma água, um café; a moça tremia-se toda, nunca tinha sido chamada à sala de um gerente em seus onze anos como caixa; quando ela sossegou, ele ficou muito sério e disse: “Minha filha, não me queira mal, nem pense que é desrespeito, mas eu só queria lhe pedir que quando viesse de blusa branca não botasse esse sutiã preto, porque desse jeito ninguém aqui se concentra.”
 
3
Dona Laura, 61 anos, professora de português no Grupo Escolar Doutor Frutuoso, em Jequié (Bahia), sempre abria suas aulas fazendo a chamada, e naquele dia, no 3º. ano, foi chamando nome por nome e ouvindo o regulamentar “Presente!”, até que chamou “Bartolomeu Lopes Vasconcelos” e o garoto moreninho respondeu: “Ausente!”, e Dona Laura, que àquela altura do campeonato já tinha uma compreensível dificuldade para ligar-o-nome-à-pessoa nas onze turmas com que lidava por semana, botou falta no misera, que depois saiu dali reclamando que gente velha não tem senso de humor e que uma professora não sabe o significado da palavra paradoxo, que o tio dele tinha lhe ensinado no domingo anterior.
 
4
Nanda Vasconcelos, 12 anos, estudante, conseguiu finalmente ser levada para ver um filme num sábado à tarde por seu vizinho e melhor amiguinho, Dodô, 13 anos; foram juntos e cercados de mil recomendações, viram o filme todo, mas ela voltou com uma angústia, um aperto, e queixou-se que o cinema estava muito frio, que o som estava alto, que o herói era meio burro, que os vilões eram antipáticos, que a roupa da princesa parecia uma cortina, e blá blá blá, e Dodô calado concordando, e quando chegaram na porta da casa dela ela se calou por um instante e ele, que há horas juntava coragem, falou, “valeu, até a próxima” e deu-lhe um beijo rápido na boca, e o resto do dia ela não reclamou de mais nada.
 
5
Marieta Santana da Silva, 61 anos, dona de casa em Junco do Seridó, estava no quintal de casa estendendo roupa no varal, quando pela cerca de trás se aproximou um homem esmolambado, de bigode escuro, chapéu de palha todo desfiado, e disse: “Dona, me dê uma sobra de comer!...”  Ela olhou, se compadeceu, entrou na cozinha, abriu um pão francês, passou margarina, e levou para o homem, que deu uma dentada, mastigou, parou de mastigar, abriu o pão, olhou dentro e disse: “Margarina? Não tinha manteiga não?”.
 
6
Beto Sensação, paulistano de Moema, 24 anos, baterista, convidado para integrar a banda Innocent Bystanders, dedicou-se a ela de corpo e alma durante aqueles seis meses, tocou de graça, tocou doente, abraçou espiritualmente os outros três integrantes, aplicou-se a entender os arranjos, colaborou numa letra, gravou metade das faixas do CD de estréia, compreendeu a necessidade de em outras faixas inserirem um ghost-drummer mais experiente porque seguro morreu de velho, mas ao ver no YouTube uma entrevista do vocalista Tchecov Gun arretou-se, encaixotou a bateria, viajou para Floripa por um mês sem atender o celular, deixou como explicação apenas uma mensagem para Gun dizendo: “Quando lhe perguntarem sobre o disco da banda, nunca responda assim: Esse meu disco....”
 
7
Belarmino Gomes Pantaleão, 51 anos, advogado, estava no escritório de sua residência em Maceió, e pontualmente às 18:30 ergueu-se da escrivaninha onde redigia sua Memória dos Grandes Jurisconsultos Alagoanos, foi ao lavatório, lavou as mãos e o rosto, vestiu o paletó e dirigiu-se para a sala de jantar, onde sua esposa Marluce acabava de servir o jantar; sentou-se à cabeceira, a esposa sentou na extremidade oposta, ele olhou a mesa coberta pela toalha de renda surrada mas lavadinha, viu o canjirão fumegante de sopa de legumes, o bule de café, a pãozeira com dois pães franceses, o pratinho à sua frente com dois ovos cozidos, o pratinho da esposa com um ovo; ergueu o sobrolho e disse: “Isso é tudo que tem para jantar?”, a esposa suspirou fundo, olhou-o nos olhos mansamente e disse: “Isso é tudo que tem para jantar”; ele ergueu-se empurrando a cadeira para trás, recolheu na mão direita a borda da toalha e deu um único e vigoroso puxão que arrastou tudo em cacos e estrépito para o chão, e retornou para o escritório e seu labor na Memória dos Grandes Jurisconsultos Alagoanos

 
 






quinta-feira, 5 de novembro de 2020

4638) Por que eu acho impossível a colonização do espaço (5.11.2020)



O leitor de ficção científica cresce ouvindo falar em visitantes de outros planetas ou de outras galáxias, mas não faz uma idéia muito clara do que seja isso.
 
A todo instante a gente ouve propaganda de filmes ou de séries de TV falando em “visitantes de outra galáxia...”. Por que? Porque não basta dizer “visitantes de outro planeta”, tem que ser algo mais excitante, mais deslumbrante, e “galáxia” é uma palavra ótima. No tempo em que eu fumava, Galaxy era meu cigarro favorito.
 
Visitantes de outra galáxia? Isso nunca vai acontecer.
 
A ficção científica não passa de uma fantasia minuciosamente racionalizada. Mesmo a de teor mais tecnológico, mais rigoroso, a chamada “FC hard”, é apenas minimamente realista.
 
Qualquer história que envolva viagens no tempo, na minha opinião, deveria ser classificada como fantasia, e não como FC, porque não acho possível deslocar para o passado ou para o futuro um ser vivo ou um veículo pesando trocentas toneladas. A toda hora a gente vê nos jornais que no laboratório tal se fez uma micro-partícula recuar um micromicrossegundo no tempo. Pode ser. No mundo macro, acharei impossível até que me demonstrem o contrário.
 
Aprendi isso não com fantasistas como Ray Bradbury, mas com escritores como Arthur C. Clarke, para quem qualquer história que envolvesse viagens a uma velocidade maior que a da luz era fantasia, e não FC. 


Não penso assim para ser implicante com ninguém, mas porque faço um esforço para entender o que é cientificamente possível, mesmo que eu pessoalmente não precise disso – minhas histórias de FC são totalmente anti-científicas. Eu me baseio nas imagens e modelos da literatura, não da ciência.
 
Toda a minha FC é fantasia, no sentido de que toda literatura é fantasia, é um amálgama de imaginação com memória. Isso vale para Balzac, para José de Alencar, para Star Trek e para  novela das 8. É tudo fantasia. (Não no sentido de “Fantasia Heróica” de Tolkien etc., mas no sentido puramente literário, de “narrativa imaginada”).
 
Isaac Asimov imaginou em seus romances uma galáxia, a nossa Via Láctea, totalmente colonizada e habitada por seres humanos, por nós, sem um alienígena sequer. Tem coisa mais fantasista do que isso? Se fosse possível uma raça (a nossa) ocupar fisicamente toda a Galáxia, dificilmente deixaria de encontrar outras raças, ou mais ou menos avançadas do que nós.


Os autores da geração de Asimov eram jovens ousados, com sólida formação científica (ele, Heinlein, De Camp, Del Rey, Clarke, Wollheim, Pohl, Kornbluth, etc.), mas o que os tornou gigantes foi sua capacidade de fazer a imaginação elastecer as possibilidades da ciência. Se tivessem ficado presos ao “possível”, teriam produzido muito pouco.
 
Nos pulp magazines onde eles surgiram, suas histórias estavam lado a lado com a de outros jovens (todo esse pessoal já estava publicando em revistas aos 20 anos de idade, e já tinha livro aos 30) que não tinham a mesma base científica.
 
Para esses outros, eram sinônimos termos como interplanetário, interestelar e intergaláctico. Usavam qualquer um destes, como palavras intercambiáveis, e em função do grau de melodrama ou sonoridade que quisessem produzir.
 
Não são a mesma coisa.


O que é uma viagem interplanetária? Uma viagem da Terra até o nosso ilustre Plutão, que era planeta, deixou de ser e está cotado para ser de novo, implica em fazer uma nave (tripulada ou não) transpor um abismo de cerca de 5 bilhões de quilômetros.
 
O que é uma viagens inter-estelar? Vamos tomar como base o sistema estelar mais próximo, Alfa do Centauro. A Wikipédia me informa que fica a cerca de 4 anos-luz de distância da Terra. (São distâncias tão grandes, e relativas a corpos em movimento constante, que é sempre sensato arredondar os números.) Um ano-luz tem 9.460 trilhões de km.
 
Sou ruim de contas, mesmo com calculadora, então me acompanhem, e corrijam se for o caso.
 
Nossa primeira viagem inter-estelar, portanto, pela lógica deverá transpor um abismo de cerca de 47.300 bilhões de quilômetros.
 
Ou seja: para ir a Plutão é uma distância de 5 e para ir a Alfa do Centauro é uma distância de 47.300.  Viajar numa nave espacial para a estrela mais próxima da Terra equivaleria a fazer o trajeto Terra-Plutão mais de 47 mil vezes.  




E uma viagem inter-galáctica? Que distância, comparada a estas duas, teríamos que percorrer para nossa espaçonave chegar na Nebulosa de Andrômeda, a galáxia mais próxima da nossa?
 
A Nebulosa fica a 2.540.000 anos-luz da Terra. Multipliquem esses dois bilhões e meio pelos 9 trilhões e meio de quilômetros que há num ano-luz. Parece que dá cerca de 23 trilhões de km.
 
É a distância que um disco-voador teria que percorrer para trazer seus “visitantes inter-galácticos” até a Terra e dizer: “Levem-nos ao seu líder! Viemos de longe, e é grande a nossa expectativa de um diálogo inter-galáctico de alto nível”.
 

 

 
 








segunda-feira, 2 de novembro de 2020

4637) A tradução nos livros de FC (2.11.2020)




Comentando na revista Locus (#450, julho 1998) um livro de Frederik Pohl (O, Pioneer!), Russell Letson explica que a história é ambientada num planeta que serve como uma espécie de ponto de encontro entre diferentes raças da Galáxia, nós entre elas. O que dá origem, claro, a problemas de tradução e comunicação.
 
Alguns efeitos engraçados do livro (Pohl tinha uma queda, e muito jeito, para a sátira) estão no inglês empolado usado por alguns colegas alienígenas. E ele refere um trecho em que um Delt, utilizando softwares de tradução simultânea, comenta com um terrestre que admira muito a literatura de nosso planeta e seu escritor preferido é Ernest Hemingway, autor do clássico Man Approaching Death in Relationship with Ocean.


A tradução do “alienigenês” foi sempre um problema na FC. Talvez mais no cinema do que na literatura, talvez porque é de fato meio esquisito ver aquelas criaturas lagartiformes ou mega-antropóides exprimindo-se no idioma de Shakespeare.
 
No filme Duna de David Lynch, há uma cena relativamente bem resolvida, em que um Embaixador (ou coisa equivalente) chega à corte do Barão Harkonnen dentro de um recipiente ambulante contendo o ar que ele respira, e seus prepostos erguem diante do rosto uma espécie de microfone que de um lado capta suas palavras e do outro as reproduz em inglês. O simples fato de ouvirmos os dois ruídos, com um pequen delay, nos consola a busca de verossimilhança.



Mesmo nos melhores livros de FC é meio desanimador ver aqueles “Congressos Interplanetários”, ou coisa equivalente, reunindo dez espécies de diferentes planetas para debater o futuro da Galáxia – todos falando a mesma língua e respirando o mesmo ar.
 
Por isso, conto pontos positivos para um autor despretensioso como B. R. Bruss, onde na primeira reunião coletiva face-a-face entre terrestres e marcianos a sala é dividida ao meio, com duas atmosferas diferentes, e logo na primeira troca de gentilezas acontece este diálogo:
 
– Tenham a bondade de sentar-se – disse Biarzanoff aos marcianos.
Naturalmente, havia poltronas do outro lado da sala.
– Não temos o hábito de nos sentarmos.
 
(S.O.S. Discos Voadores, “S.O.S. Soucoupes”, B. R. Bruss, trad. David Jardim Jr., pág. 68)


Com dez anos de idade, o leitor sente firmeza conceitual.  E o problema do idioma? Resolvido numa cena anterior:
 
Mas uma voz fez-se ouvir, uma voz estranha, metálica, fanhosa. A princípio, Koubine não notou que a voz se dirigia a ele em russo, pois as palavras vinham deformadas, e eram pronunciadas com excessiva rapidez. Mas seu espanto chegou ao cúmulo quando acabou por compreender que aquela voz dizia:
 
– Somos marcianos. Saúde!
 
(...) Viu, então, o marciano tirar, do cinto, um objeto parecido com um alfinete de chapéu, o que lhe causou certa apreensão, durante um momento, imaginando que aquilo fosse uma arma desconhecida. O marciano, porém, passou a ponta daquela agulha em uma das pequenas esferas, que trazia presas ao cinto, depois do que recomeçou a falar, com voz menos anasalada e mais vagarosa. (pág. 60-61)
 
A necessidade de instrumentos de tradução instantânea atrapalha um pouco qualquer autor, mas em geral a praxe é indicar a existência desse processo técnico indispensável, e depois deixar fluir a conversa sem a necessidade de lembrar o tempo todo esses pequenos retardos ou ruídos.
 
Mais ou menos como optou por fazer o diretor Stanley Kramer no filme Julgamento em Nuremberg (1961), quando juízes, acusadores, defensores e réus falavam línguas diferentes. O diretor explica nos minutos iniciais da sessão como a tradução simultânea era feita, e depois, demonstrando enorme bom senso, encena os diálogos como se ocorressem sem precisar passar por isto. Subentende-se que passaram.


Noutro clássico da pulp fiction francesa a questão da tradução se coloca novamente nesse contato entre terrestres e “estrangeiros”.
 
Outros corredores... outras salas... outros lugares, e finalmente chegaram a uma vasta sala de paredes de vidro grosso, banhada numa claridade suave e difusa, de origem misteriosa. O chefe e o outro aproximaram-se dos nossos heróis. Manipularam os controles da máquina e, por meio de sinais, fizeram com que Davy compreendesse que poderia falar livremente.
                Em palavras simples, o coronel apresentou-se e explicou de onde vinha, juntamente com seus companheiros, perguntando se as estranhas crianças, que pareciam escutá-lo com interesse, poderiam realmente compreender o que dizia.
                A estranha máquina desempenhava, com efeito, o papel de tradutor psíquico e desde que Davy começou a falar, os delicados mecanismos encontraram as raízes da nova língua registrada, a qual, em poucos segundos, era assimilada.
                Assim, por meio dos influxos psíquicos apropriados, os interlocutores de Davy compreendiam suas palavras, e o coronel, as deles. Cada palavra pronunciada era traduzida pelo aparelho numa rapidez incrível e, desse modo, era possível uma conversação normal.
 
(A Invasão da Terra, “Fleau de l’Univers”, F. Richard-Bessière, trad. Sérgio Duarte, pág. 55-56)



A necessidade de máquinas tradutórias passa por muitas versões na FC. Um autor não precisa inventar uma tecnologia totalmente plausível, até porque menos plausível que a sua máquina tradutória será decerto o seu alienígena. (Sou da corrente cética de Stanislaw Lem com relação à vida extraterrestre – mesmo que exista, duvido que possamos nos comunicar com ela.)
 
Em todo caso, estão sendo inventados o tempo todo novos recursos técnicos de transformar pensamentos em palavras. Não para comunicação com alienígenas, mas para comunicação com as próprias máquinas que inventamos, e que já nos permitem erguer o smartphone e dizer, com voz clara e nítida: “Siri, quem são os autores da canção Hurricane?”, e escutar, dois segundos depois, uma voz feminina dizendo: Bob Dylan e Jacques Levy.


No conto “Summer Frost”, o autor Blake Crouch mostra a sua protagonista comunicando-se com uma Inteligência Artificial. Ela usa um par de lentes de contato que lhe servem também de tela – as palavras e sinais surgem luminosos à sua frente, como se estivessem suspensos no espaço. E seus pensamentos são transformados tanto em sons quanto em texto escrito, para facilitar sua comunicação.
 
É uma tecnologia ainda em ajustes. O implante VRD é adaptado de modo a conectar-se a eletrodos que mapeiam meticulosamente e registram a atividade da mente no momento de usar certas palavras. Assim, forma-se uma base de dados de padrões de neurossinais que numa fase seguinte são organizados em elementos de fala. Criar um link PPT é um trabalho que consome umas oito semanas, e o custo é proibitivo, pelo menos para quem não trabalha na mesma indústria.
 
Penso minha resposta, e depois de três segundos, a frase aparece no meu campo visual. Aperto o meu polegar e indicador da mão direita para confirmar que meu pensamento foi corretamente transcrito, e envio a mensagem como foi transcrita.
(trad. BT)
 
É um passo adiante em relação aos exemplos mais acima, que pagam pedágio simbólico à necessidade de mostrar algum tipo de máquina mas, prudentemente, não descem a muitos detalhes sobre como as máquinas produzem os seus efeitos. A descrição de Crouch pode ser ainda utópica, mas algumas dessas técnicas já existem, em forma incipiente, o que permite a um escritor apenas extrapolar um momento em que os problemas técnicos e financeiros tenham sido resolvidos. É o que escritores de FC fazem desde que o mundo é mundo.
 
Nessa área neurológica, de implantes produzidos com nano-tecnologia, é possível conceber técnicas de tradução que permitam (num romance, se não na vida real) seres humanos e seres extra-terrestres chegarem a um certo denominador-comum linguístico a ponto de poderem conversar. Se na vida real isso vai ocorrer, é irrelevante. Basta que na literatura seja plausível.
 
 
 
 
 
 
 






sexta-feira, 30 de outubro de 2020

4636) A Espinha Dorsal e o Mundo Fantasmo (30.10.2020)



 
Estou há várias semanas promovendo no saite “Catarse” a campanha de financiamento coletivo (“financol”) dos meus livros A Espinha Dorsal da Memória e Mundo Fantasmo, coordenada pela Editora Bandeirola (São Paulo), a quem caberá a publicação dos livros.
 
A campanha, aliás, vai até o dia 10/11/2020 às 23h59m59s.
 
No saite do CATARSE estão todas as explicações, descrição dos livros, descrições dos brindes, instruções sobre o modo de apoiar, pagar com cartão, pagar parcelado, todo o “caminho das pedras”:
 
https://www.catarse.me/a_espinha_dorsal
 
Julguei de bom alvitre, portanto, mexer na poeira do baú das recordações, e tirar de lá algumas informações tão antigas quanto a expressão “de bom alvitre”. Porque são livros escritos e lançados há mais de vinte anos. Há muito tempo eu não os relia, e tive que reler tudo agora, para fazer a revisão final dos originais.
 
Faço sempre a ressalva de que não sou um autor especializado em ficção científica. Escrevo poesia, escrevo ficção mainstream, escrevo ensaios, crônicas, literatura de cordel, teatro e mais uma porção de coisas. Como já afirmei muitas vezes em palestras no saudoso Fantasticon, o evento de FC promovido em São Paulo por Sílvio Alexandre: “No mundo do mainstream, falo da FC: no mundo da FC, falo do mainstream”.
 
Tenho pela FC um afeto pessoal porque faz parte da minha história, É algo que leio por prazer, e se a leitura de um livro específico não me der prazer, largo e pego outro. (Isso seria no melhor dos mundos – mas quando a gente se mete a pesquisador, tem que ler muito livro chato até o fim. Tem que falar sabendo do que está falando.)
 
A Espinha Dorsal da Memória, não é meu primeiro livro: antes dele publiquei livros de poesia, folhetos de cordel, um ensaio sobre FC (O que é ficção científica, Ed. Brasiliense, 1986). Foi, no entanto, minha estréia na prosa de ficção, e foi uma aposta alta que fiz, com o destemor característico dos apressados. Ganhei um prêmio, e tive ótimas respostas na imprensa. Esta edição da Bandeirola virá com a transcrição de uma “Fortuna Crítica” recolhida pelo livro junto à imprensa e aos fanzines, no Brasil e em Portugal.
 
Mundo Fantasmo, publicado sete anos depois, é quase um prolongamento do primeiro livro, em termos estilísticos e temáticos, mas já pertence a outro momento. A Espinha foi todo escrito na máquina de escrever; Mundo Fantasmo foi escrito quase todo no computador.



(as edições portuguesas dos dois livros)


É interessante, hoje, para mim, perceber que um conto sobre alguém que escreve num computador, como “Breves Histórias do Tempo” (no Mundo Fantasmo) foi escrito na máquina de escrever convencional, porque nessa época eu ainda não conhecia o computador, tudo ali foi tirado das coisas que eu via em revistas e jornais.
 
Não estou me gabando: William Gibson também escreveu Neuromancer (1984) antes de usar um computador. É só para lembrar que a ficção científica precisa dos fatos, mas precisa que a imaginação se antecipe ou se sobreponha aos fatos. É uma literatura de fantasia tecnológica, não é um realismo a mais.
 
Nada contra o realismo, mas, por que não ter os dois modos de expressão? Por que ter apenas um? Imagine se alguém chegasse para Marc Chagall e perguntasse: “Mas por que o senhor não pinta as coisas como Vermeer?”, e vice-versa.


Nesses dois livros, procurei colocar lado a lado histórias de FC, de fantasia heróica, de fantasia urbana... Modulações diferentes do fantástico, coisas que tenho prazer em ler e que me estimulam a ter idéias.
 
Nos dezenove contos reunidos estão presentes dois ciclos de histórias que vim desenvolvendo ao longo dos anos.
 
O primeiro é o ciclo dos Intrusos, histórias de FC sobre o contato da humanidade com uma raça ultra-poderosa da Galáxia; esses contos compõem a Parte II de A Espinha Dorsal.... O ciclo foi retomado no conto “O Molusco e o Transatlântico”, que saiu recentemente no meu livro Fanfic (São Paulo: Patuá, 2019).



O segundo é o ciclo de Campinoigandres: histórias ambientadas nessa cidade imaginária da Península Ibérica, e que incluem “História de Maldun, o Mensageiro” (em A Espinha...), “História de Cassim, o Peregrino” (em Mundo Fantasmo), e também o romance A Máquina Voadora (Rio: Rocco, 1994; Lisboa: Caminho, 1997).


O sistema de financiamento coletivo, a cargo do saite Catarse e da Editora Bandeirola, prevê o envio de brindes para quem apoiar o projeto em faixas de preço sucessivamente mais altas. Há brindes como marcadores de livros, uma ecobag com desenho de Romero Cavalcanti (autor das capas destas reedições dos dois livros)... Há também reproduções fac-similares de trechos dos datiloscritos e esboços originais.
 
Há alguns que eu quero destacar, por serem trabalhos raros, que um leitor jamais vai encontrar numa livraria, porque não foram feitos para distribuição comercial convencional.


Peleja de Braulio Tavares com Marco Haurélio (32 páginas)
Uma peleja que travei com meu amigo e parceiro, o cordelista e pesquisador Marco Haurélio, via Facebook: eu no Rio, ele em São Paulo. Os versos foram trocados no Facebook, em tempo real, com testemunho e comentários de centenas de pessoas. Saiu pela Editora Tupynanquim, do meu amigo Klévisson Viana (Fortaleza).

 
O Tesouro de Antonio Silvino (20 páginas)
Um romance de cordel que escrevi a partir de uma história que me foi contada pelo cordelista e pesquisador Kydelmir Dantas, e editado por ele via Editora Cordel (Mossoró). Kydelmir me contou a história, e eu falei: “Isso dá um folheto”. Ele disse: “Escreva que eu publico”. Tá aí o resultado

Malassombrado (4 páginas)
Adaptação em quadrinhos feita por Cavani Rosas, a partir do conto de abertura de A Espinha Dorsal... Cavani é um parceiro antigo, e estamos preparando juntos um álbum de desenhos e poesia a sair em breve, Na Torre da Lua Cheia.

Outros brindes são mais voltados para os colecionadores. Por exemplo: cópias fac-símile da primeira página dos originais dos contos (datilografados) da Espinha Dorsal:


 
Há também brindes de "cartões-poemas", dez cartões postais que podem ser mandados pelo Correio, tendo no verso, em vez de uma foto, um poema meu, autografado:



Esses brindes servem de complemento aos livros de contos, e são um dos aspectos que acho mais interessantes nas campanhas de financiamento coletivo. Quero lembrar novamente que todas as ilustrações dos livros e do material correlato são de outro amigo e parceiro de longa data, Romero Cavalcanti, com quem fiz uma longa série de antologias de contos fantásticos pela editora Casa da Palavra.
 
Antologias que serão retomadas agora, com novos temas e novos autores, através da Editora Bandeirola; é um dos nossos projetos para 2021, sobre o qual falaremos oportunamente.
 
 


 
 
 






quarta-feira, 28 de outubro de 2020

4635) Os nomes de lugares na ficção (28.10.2020)




Inventar um nome para um lugar, num texto de ficção, pode ser mais difícil do que inventar o nome de uma pessoa. 
 
Nome de pessoa, se é nome de batismo, é um nome dado pelos pais, e deve refletir esse tipo de escolha.  Se é um apelido, é um “nome social”, por assim dizer, um nome conferido informalmente por um grupo. 
 
Já o nome de um lugar – uma vila, uma cidade, uma floresta, um povoado, um país – é uma escolha coletiva, sem autores que se possa apontar com o dedo.  E quando o escritor concebe um nome assim, ele deve vir imbuído de uma carga de verossimilhança, deve conduzir as nuances que o autor pretende, e deve parecer que foi o resultado de um processo coletivo, anônimo, não-coordenado e poderoso.
 
Quando Mário Palmério deu a seu romance de 1956 o título de Vila dos Confins encontrou um nome simples e sonoro para exprimir aquela idéia de fim-do-mundo onde queria situar o curral eleitoral de sua história. Seu romance seguinte, Chapadão do Bugre (1965), impôs um lugar de sonoridade mais agressiva, mais truculenta, totalmente no tom da ação da história.


Em Grande Sertão: Veredas (1956), entre os muitos lugares imaginários criados por Guimarães Rosa, um dos mais notáveis é o Liso do Sussuarão, um deserto inóspito que os jagunços são forçados a atravessar.  Um leitor nordestino não pode deixar de perceber nesse nome uma evocação do Raso da Catarina, o famoso deserto baiano. 
 
O termo “liso” substitui “raso”, mantendo a idéia de uma região uniformemente plana e com pouca vegetação.  “Sussuarão” lembra “sussuarana” (ou “suçuarana”), a onça parda muito comum no Nordeste, e cuja imagem é recorrente ao longo não apenas do livro, como símbolo de ferocidade, como em outras obras de Guimarães Rosa, principalmente o conto “Meu tio, o iauaretê”. 
 
O nome literário não apenas evoca o nome geográfico original, mas amplia sua rede de ressonâncias, contaminando-o com temas que pertencem ao universo interno da obra, não à geografia.

 
Quando o autor de O Senhor dos Anéis (1954-55), J. R. R. Tolkien, batizou de “Mordor” a montanha onde vive o Senhor do Mal, Sauron, pode até ter recorrido a raízes etimológicas profundas, pois era um filólogo; mas certamente pesou na escolha a semelhança do nome com a palavra “murder” (homicídio). Semelhança, aliás, que sugeriu a Isaac Asimov o tema de um dos seus contos policiais da série “Os Viúvos Negros”.
 
Ressonâncias assim, evocadas indiretamente por uma simples sonoridade, me parecem mais eficazes do que alegorias explícitas, como se ele chamasse a montanha de “Murder”. 
 
Se bem que nunca se pode prever o futuro nem controlar todas as conotações possíveis. Isaac Asimov chamou de “a Fundação” a organização interplanetária destinada a fazer sobreviver a cultura e a ciência durante a decadência do império galáctico. Mal imaginaria ele que décadas depois surgiria no mundo islâmico uma organização terrorista chamada Al-Qaeda, que significa exatamente “a fundação, a base, o alicerce”.


Na época dos atentados do 11 de setembro, vi na Internet reproduções das edições em árabe da “Trilogia da Fundação”, com o título: “Al-Qaeda”.
 
Bill Finger, o roteirista de quadrinhos que deu o nome de “Gotham City” à cidade do Batman, viu esse nome numa joalheria, e o usou para batizar a cidade, raciocinando (corretamente, a meu ver) que teria muito mais liberdade criativa com uma cidade imaginária que parecesse Nova York do que se usasse o nome “Nova York”. E usou justamente um nome que já circulava informalmente na própria cidade, há muitos anos.
 
Mais original ainda é o nome de “Bellona” dado por Samuel R. Delany à sua metrópole surrealista no romance Dhalgren (1975), evocando belicosidade e beleza ao mesmo tempo.


Um dos lugares fictícios mais famosos da literatura é o condado de Yoknapatawpha, criado por William Faulkner para ambientar suas histórias. O autor dizia que o sentido do nome era “água em solo plano avança devagar”. Usando esse nome (formado com palavras indígenas) ele ganhou liberdade para manipular à vontade a história e a geografia do seu cenário.
 
“Macondo”, de Garcia Márquez, é um nome interessante, porque é simples, sonoro, e pelo menos aos meus ouvidos brasileiros não evoca nenhuma associação de idéias. Um nome virgem, por assim dizer, mas muito eficaz. Segundo o autor, é o nome de uma planta da região.


Vitor Ramil escreveu seu romance sobre Pelotas dando-lhe o título de “Satolep”. Inversões assim são o recurso mais simples quando se quer fazer uma alusão direta a algo que existe, como se disséssemos, anti-aristotelicamente: “A é B, mas é também o contrário de B”.
 
Quantas histórias de ficção científica não já vimos sobre um planeta chamado Arret?  Em inglês, “Earth” ao contrário fica meio ilegível, “Htrae”, mas Salman Rushdie saiu-se elegantemente com “Thera” em seu romance Grimus (1975), onde descreve uma civilização alienígena viciada em anagramas.
 
De inversões e de anagramas a literatura de imaginação está cheia. Quando em 1872 Samuel Butler publicou sua novela de “utopia satírica”, ele provavelmente tentou inverter a palavra “nowhere” (= “nenhum lugar”), mas o resultado deu “Erehwon”, meio ruim de pronunciar, e ele optou pelo nome, hoje famoso, de Erewhon. Tecnicamente, deixou de ser uma inversão e virou um simples anagrama.
 
Seguindo um percurso parecido, quando Fritz Leiber quis inventar o país fictício para ambientar suas histórias de espada-e-feitiçaria, deu-lhe o nome de Nehwon, que é o contrário de “No When” (= “nenhum quando”).


A geografia literária brasileira é farta em lugares inventados cuja verossimilhança precisa sempre começar a partir do nome. Quando a protagonista de Jorge Amado, em Tieta do Agreste (1977), volta para sua cidadezinha de Santana do Agreste, qualquer leitor tem a sensação de que essa vila é real, de tão familiar que é o nome. Tocaia Grande (1984) já é um nome de cidade ligeiramente menos verossímil, já dá uma primeira impressão de nome inventado.
 
Se eu estou escrevendo um romance que se passa na Paraíba , posso muito bem usar Guarabira, Patos, Alagoa Grande, Brejo do Cruz, Taperoá. Mas ao usar uma cidade real dessas, eu fico preso. O leitor que conhece a cidade vai ficar checando cada detalhe. Já vi leitores reclamando que um personagem ia a pé da rua tal à rua tal, e que era um trajeto longo demais.
 
Então, mais útil para mim é dizer, em vez de Patos ou Campina Grande, que a história se passou na cidade de São José dos Calangos ou de Riacho Claro. Eu visualizo alguma cidade que conheço mais ou menos, como Sousa ou Areia, e dou-lhe outro nome.
 
O nome real deixa o autor amarrado a uma série de referências que ele pode achar melhor evitar. Um nome inventado lhe permite colocar tudo que existe na cidade verdadeira, e tudo que lhe der na telha imaginativa, sem precisar prestar contas a ninguém.
 

(Solidão, Pernambuco)