quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

4549) Minhas canções: "O Valor do Nordestino" (12.2.2020)



Durante alguns anos da década de 1970, trabalhei na organização do Congresso Nacional de Violeiros, de Campina Grande. Alguém me perguntou uma vez quanto eu ganhava. Resposta: não ganhava nada, era feliz. Tinha um bom pretexto para passar dias, noites e madrugadas conversando sem parar com cantadores de viola. Com o que aprendi nesses anos formei uma poupança de onde faço saques diários até hoje, e que está longe de se esgotar.

Uma das minhas atribuições era fazer parte da Comissão de Seleção – a comissão que escolhe os assuntos e os motes que serão sorteados no palco, em cima da hora, para que os cantadores improvisem. Todo ano eu me auto-nomeava para essa comissão, e era aprovado pelos verdadeiros organizadores do Congresso, os membros da ARPN (Associação de Repentistas e Poetas Nordestinos): José Gonçalves, Ivanildo Vila Nova, José Laurentino, Santino Luiz, Moacir Laurentino, Juvenal de Oliveira...



Um mote que forneci num desses Congresso deu o que falar:

Se não fosse o valor do nordestino,
em São Paulo não tinha arranha-céu.

Os repentistas reclamaram que o mote era “ruim de rima”, porque só admitia poucas palavras: escarcéu, troféu, xaréu, mundéu... Eu argumentei que tinha mil outras: cordel, anel, coronel, Babel, mel, fel... E ninguém aceitava. A rima tinha que ser exata. Argumentei que o som era o mesmo, e que rima-se pelo som, não pela grafia. Mas o Colosso da Tradição não arredava pé. Cantador gosta de dificuldade!

(É por isso que quando uma vez recitei Morte e Vida Severina, de João Cabral, para alguns deles, ouvi o comentário: “É, a linguagem é bonita, a crítica social também, mas ele rima qualquer-coisa com qualquer-coisa...”)

Algum tempo depois, lembrei-me que não sou cantador, sou, como João Cabral, um mero beneficiário indireto do que eles produzem; e compus uma série de glosas ao meu próprio mote, cantadas em variações da melodia do martelo agalopado.

Quando fui morar em Salvador em 1977, iniciei uma parceria musical com Zelito Miranda, quando ambos fazíamos parte do Teatro Livre da Bahia, sob a direção de João Augusto, em encenações memoráveis como Oxente Gente, Cordel (1978).

Hoje em dia Zelito incendeia multidões com seu “forró temperado”, e ainda canta várias músicas desse tempo, de quando participávamos juntos das famosas “coletivas musicais” de uma época em que, vejam só, a grande queixa dos músicos baianos é que não tocava música baiana nas rádios de Salvador, a não ser os discos dos tropicalistas e dos Novos Baianos.

“O Valor do Nordestino” era um desses trabalhos em martelo agalopado que eu e ele cantávamos juntos, alternando os versos, no Restaurante Universitário, no Teatro Castro Alves, no Teatro Vila Velha, nos palcos improvisados da Ufba e nas Residências Universitárias de que Salvador era cheia.

No espetáculo Oxente Gente, Cordel esta canção era um dos números musicais da nossa dupla, “O Galo de Campina” e “Zé Miranda de Serrinha”.

Fizemos um sem-número de parcerias que nunca foram gravadas, mas esta aqui ficou parcialmente registrada por Zelito num DVD:


Abaixo, a letra original completa, que acabei publicando no folheto (hoje uma raridade!) que acompanhava a peça do Teatro Livre.




Quem vê tanta avenida e edifício,
construção, catedral e viaduto,
muitas vezes nem pensa no matuto
que lutou com suor e sacrifício,
exercendo a dureza de um ofício
sem pensar em medalha nem troféu,
confiando que alguém de lá do céu
compensasse o rigor do seu destino:
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

Operário da construção civil
em São Paulo ou no Rio de Janeiro
dá um duro danado o mês inteiro
e o que ganha não chega a ser 3 mil.
Vem de lá do Nordeste do Brasil
faz igreja, faz ponte, faz motel,
faz a vila onde mora o crioléu
e faz casa de luxo pra granfino:
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

Quando vem lá do norte ele não passa
de mais um joão-ninguém desempregado
e com tudo que vê fica espantado:
com a pressa, o barulho e a fumaça.
Vai dormir sobre o banco de uma praça
sem emprego, a vagar de déu em déu,
se cobrindo com as folhas de papel
de um jornal semanário ou matutino...
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

A cidade possui um ar cinzento
que irrita a garganta e o pulmão
e no meio da tal poluição
se eleva a floresta de cimento:
espigão de escritório e apartamento
tem a torto e a direito, e a granel,
e quem faz esas torres-de-Babel
é o nortista migrante e peregrino:
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

Ele fez pavilhões no Anhembi
fez Congonhas e Ibirapuera,
Interlagos e a Via Anhanguera,
o hotel Hilton, o Othon, o Normandie;
ele fez os degraus do Morumbi
onde a massa alvinegra da Fiel
nos domingos faz festa e escarcéu
grita gol, solta bomba e canta hino...
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

Quando vem lá do norte ele não traz
nem bagagem, nem roupa, nem dinheiro,
traz somente a herança de vaqueiro:
duas mãos, a coragem, nada mais...
E constrói avenidas e canais,
constrói posto pra Esso e para a Shell,
constrói torre e antena da Embratel
e constrói a boate e o cassino.
Se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

Nordestino em São Paulo ou Guanabara
é tratado dum jeito diferente
porque lá no Nordeste toda a gente
tem respeito a seu nome e sua cara.
Mas no Sul é chamado “pau de arara”,
“paraíba”, “baiano” ou “tabaréu”:
quando fala com gente de anel
só lhe tratam por “zé” ou “severino”...
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

Nordestino no Sul é cidadão
que não vale uma prata de dez réis:
quase sempre nem pode pôr os pés
nesse prédio que fez com a própria mão.
Vez por outra ele cai da construção
e o destino se torna mais cruel:
fica morto, a família fica ao léu,
e ninguém diz o nome do assassino...
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

A tarefa que exerce é muito dura,
muito mais que a do próprio arquiteto:
faz coluna, parede, piso e teto,
e o cimento com a pedra ele mistura;
faz com viga e concreto a estrutura,
faz o forro, o lambril, põe o painel;
quando acaba a pintura com um pincel
chega um rico, e se torna o inquilino...
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

Houve um tempo em que o homem do sertão
quando estava faminto e injustiçado
tinha um rifle, um facão bem amolado,
e virava Corisco ou Lampião.
Hoje em dia ele vai num caminhão,
chega lá, constrói ponte e faz hotel;
mas vai lendo um folheto de cordel
que é pra não se esquecer de Virgolino...
se não fosse o valor do nordestino
em São Paulo não tinha arranha-céu.

·         Alguns detalhes nessa letra, que ainda sei de cor quase por inteiro, são bem “de época”. Nomes de hotéis e logradouros, por exemplo, eu tirei dos jornais – quando escrevi estes versos eu não conhecia São Paulo, onde só desembarquei justamente para a encenação da peça onde eles eram cantados.

·         Um conselho aos jovens: saibam que toda vez que vocês mencionarem cifras monetárias numa letra (“e o que ganha não chega a ser 3 mil”) o teor desse verso vai oscilar dramaticamente ao longo das décadas, de acordo com a inflação. Em 1977 (consultei agora) o salário mínimo era de Cr$ 1.106,40 cruzeiros, e a primeira versão da letra referia-se a “2 mil”. Era um dos versos mais chatos de cantar, porque cinco anos depois o mínimo já estava em torno de 23 mil.

·         “Crioléu” parece uma rima forçada, mas na época era uma palavra posta em circulação por Henfil, no Pasquim. A editora Codecri, que o Pasquim manteve durante anos, ganhou seu nome de um hipotético “Comitê de Defesa do Crioléu”, inventado nas tirinhas do irmão de Betinho.

·         Se cobrindo com as folhas de papel de um jornal semanário ou matutino...” – qualquer fã de Jackson do Pandeiro reconhece aí uma alusão clara à canção “Meu Enxoval” (“com quatro mil réis eu compro o enxoval: Diário da Noite e a Última Hora”).

·         “A herança de vaqueiro: duas mãos, a coragem, nada mais”. Não foi intencional, mas ainda acho este verso um comentário inconsciente ao de Carlos Drummond (“Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo”). 

·         “Vez por outra ele cai da construção”: ecos inevitáveis de Chico Buarque (“Construção”, 1971) e do filme de Ruy Guerra (A Queda, 1978).

·         “Quase sempre nem pode pôr os pés / nesse prédio que fez com a própria mão.” Referência também inevitável a outro grande sucesso da época, a canção “Cidadão”, de Zé Geraldo: “Tá vendo aquele edifício, moço, ajudei a levantar...”











domingo, 9 de fevereiro de 2020

4548) A arte de matar uma galinha (9.2.2010)




A mãe arrepanhou as saias e sentou no batente da escadinha curta que descia até a terra do quintal.

O menino estava tentando encaixar de volta uma peça de madeira que tinha se soltado de um brinquedo. Ele sabia onde era, e como podia ser colocada de volta, só não tinha a destreza de fazê-lo, mas estava tentando.

Rik, rik, rik, rik. A faca foi amolada em impulsos rápidos, na aresta do degrau de pedra.

O menino sentiu o olhar dela, ergueu a cabeça e ficou de pé, largando o brinquedo.

A mãe estava ajeitando umas vasilhas. Olhou para ele, indicou com o queixo:

-- Pega aquela galinha ai. A que eu deixei solta.

As outras pareciam estar entendendo o que se passava, porque um frêmito medroso as agitava sem parar por trás das telas enferrujadas e das grades de bambu.

A galinha solta era uma mariscada de preto e branco, com um tronco vigoroso.

-- Vai fazer o que com ela?

-- Pare de perguntar uma coisa quando você já sabe. Só pergunte o que não souber mesmo. Vá, vá, deixe de dar maçada.

O menino deu alguns passos na direção da galinha. Na sua experiência até então, de brincadeiras de quintal, as galinhas entregavam-se com alacridade e boa fé às suas perseguições inocentes, que nunca davam em nada. Conduzi-la agora ao cadafalso, porém, era outra coisa.

Eu sei que vai se dar alguma coisa, diziam os olhos erráticos e apavorados da galinha. Seu instinto de presa devia ter alguns milhões de anos. Ela reconhecia o que estava para acontecer.

Rik, rik.

O menino avançou, a galinha espanejou suas penas e recuou meio metro, mas manteve-se de olho pregado nele, em guarda total. “Por que não foge?”, pensou ele.

-- E se ela voar por cima do muro? – perguntou.

-- Não voa – disse a mãe.

-- Eu já vi essa galinha subir mais do que a minha altura.

-- Por isso mesmo eu cortei a asa esquerda dela. Vá, agarre ela, bote moral.

-- E se ela me beliscar?

-- Você não é homem não? – E com o senso de humor temperando a impaciência: - Se fizer muita cera eu pego essa faca aqui e lhe capo.

A galinha descreveu alguns semicírculos salpicados de cocoricós. A cada vez se detinha. Mesmo que pudesse voar por cima do muro, talvez ela preferisse ficar ali, ativando os reflexos milenares do balé-da-presa, com o fatalismo resignado de quem nunca predou ninguém.

Um pulo, um engalfinhamento. Ao aviso da mãe ele agarrou, na primeira chance que teve, as duas asas numa mão só. Com a outra segurou o pescoço, para se prevenir contra o bico. Ali perto morava uma menina que perdeu um olho assim.

A ave parecia ter metade da altura dele.

Era trêmula, morna, e emitia um zumbido de vida própria, como o da geladeira. Ele a trouxe debatendo-se sem muita tática, e a deitou no batente. A mãe se soergueu com agilidade, plantou o pé descalço e sujo nas asas desiguais, maltratando um pouco. Era disto que a galinha parecia estar se queixando. Ela não imaginava nada depois dos maus-tratos que a incomodavam agora.

A mãe puxou a faca para perto, e o prato fundo de barro. Prendendo a faca na palma da mão direita, usou o polegar e o indicador em pinça para arrancar as penas do pescoço da ave, largando-as pelo chão, sem ligar.

A galinha gorgolejou. Com um gesto vigoroso da mão esquerda, a mãe puxou a cabeça da ave para trás, expôs o pescoço pelado e abrasivo. Com os dedos retesados da mão direita deu uma série ritmada de pancadas no pescoço.

-- Pra chamar o sangue -- explicou. -- Pegue o prato. Quando eu cortar, enfie o prato aqui, por baixo dela.

A faca desceu na carne avermelhada, nas cartilagens, fazendo brotar uma golfada rubra que o menino conseguiu recolher no prato. A força das golfadas foi diminuindo, diminuindo, e depois o intervalo entre elas foi aumentando.

O prato estava vermelho e refletia o brilho do céu lá fora.

Houve um gesto rápido, um ruído abafado como se alguém tivesse arrancado a cabeça de uma criatura.

A mãe se virou olhou para ele e disse:

-- Você não gosta tanto de cabidela?

-- Sim!

-- Não gosta tanto de comer no jantar aquele sangue cozido, que fica feito uma borracha escura, e você corta com a faca e espeta no garfo?

-- Sim!

-- Pois é tudo feito com isso aí. Traga, tenha cuidado.

A panelona dágua fumaçava. Já estava meio fumaçando quando ele tinha ido brincar no quintal. Quando nem ele nem ela sabiam ainda o que ia acontecer. Só a mãe.









quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

4547) A magia negra de Agatha Christie (5.2.2020)



Um dia desses vi por aqui na web o anúncio de que na Inglaterra estava sendo produzida, pela BBC, uma série de TV baseada neste romance de Agatha Christie, The Pale Horse (1961), e como era um dos vários que nunca li, achei por bem dar uma olhada. Não me arrependi. Lamento apenas (como sempre que leio um livro nessas circunstâncias) não ter lido 20 ou 30 anos atrás.

A magia negra, a feitiçaria e o mundo sobrenatural não aparecem com frequência na obra de Dame Agatha, que costuma ser voltada para outro tipo de Oculto: o inconsciente, as coisas que a gente pensa sem saber que está pensando, as coisas que nos pensam, nos guiam, nos levam a agir dessa ou daquela maneira. E que às vezes nos conduzem ao crime.

A expressão “the pale horse” é uma citação do Apocalipse, celebrizada literariamente num livro de contos de Katherine Anne Porter, Pale Horse, Pale Rider (1939), que não sei se Dona Agatha leu e guardou a imagem na cabeça. Pode até ter lido: fui checar agora e vi que o livro de Ms. Porter é ambientado durante a epidemia de influenza que matou 50 milhões de pessoas no começo do século, e que Agatha certamente acompanhou, já adulta.

Há um eco distante dessa temática neste romance dela, em que pessoas aleatórias começam a morrer de gripes e pneumonias variadas, em Londres e arredores. Uma combinação de circunstâncias faz chegar à polícia uma lista de nomes repassados por uma mulher, em seu leito de morte, para um padre, que logo em seguida é assassinado.

Os assassinos não conseguem roubar a lista (objetivo do crime), e a polícia começa a desconfiar que aquelas mortes naturais não eram tão naturais assim. E o que dizer das pessoas ainda vivas daquela lista? Estão sob ameaça?

O narrador é Mark Easterbrook, um historiador intelectual, de espírito investigativo, que lembra em alguns momentos os protagonistas dos romances policiais de Colin Wilson. Ele descobre que um vilarejo com o interessante nome de Much Deeping abriga uma conspiração que envolve rituais satânicos, fenômenos mediúnicos, mortes provocadas à distância... Ou será tudo imaginação?

As histórias sobrenaturais de Agatha estão reunidas em The Hound of Death (1933), doze contos interessantes, onde o que mais se destaca é o menos sobrenatural de todos, “The Witness for the Prosecution”, que depois seria transformado numa peça e num filme de sucesso. Ela se detinha geralmente em temas como premonição, mau olhado, fatalidades inexplicáveis, clarividência, etc.

The Pale Horse faz uma citação explícita ao Macbeth, porque grande parte do seu enredo tem como foco três “bruxas” idosas e excêntricas que se dedicam a rituais misteriosos.

Por outro lado, e aqui está uma interessante camada nova de significado, o romance pertence à fase moderna da autora, onde ela se dedica a comparar os “velhos tempos” com os “novos tempos”; nessa linha, o melhor dos que li é o Espelho Quebrado (“The Mirror Crack’d From Side To Side”, 1962). O choque entre gerações e entre modos de agir, visto pelos olhos de uma mulher já sessentona ou setentona.

Entre os personagens de The Pale Horse a gente encontra tipos tradicionais, como o milionário colecionador, o pároco interiorano, as vizinhas fofoqueiras e os funcionários aposentados de tantos outros livros. Mas há também as moças londrinas de saia curta ou de calças compridas colantes, que bebem nos bares; há empresas de pesquisa de mercado; e há, perpassando todo o mistério do livro, uma conversa difusa sobre “energia negativa”, “raios mortais”, “ondas mentais”, “cérebros eletrônicos” e todo um jargão de pós-guerra, de princípio da era espacial.

O sobrenatural escondido no vilarejo de Much Deeping pode ser uma força bruta, primitiva, ancestral, talvez a malignidade cega e primordial que inspirava Arthur Machen e Algernon Blackwood; mas ela pode estar se manifestando através de aparelhagens elétricas e eletrônicas, e é isso que deixa Mark Easterbrook (e o Inspetor Lejeune) com a pulga atrás da orelha. E se, afinal de contas, esses poderes mágicos existirem de fato? E se forem apenas mais uma força da natureza que até então não conhecíamos, como a energia atômica?...

Boa parte do romance policial no pós-guerra assume essa dualidade entre ocultismo e ciência (ou pseudo-ciência), e The Pale Horse talvez seja um dos exemplos onde a autora melhor consegue se equilibrar no fio de arame da dúvida até a resolução (bastante satisfatória) nos capítulos finais.

E tão importante quanto isto é a capacidade dela em descrever os tipos dos vilarejos do interior, seu comportamento, seus valores, suas manias. E seu mergulho sempre alerta nos porões da maldade, da crueldade e do sadismo, e do impulso misterioso que leva algumas pessoas à cegueira moral e ao crime.

Ao comentar as bazófias das bruxas que se dizem capazes de matar à distância, uma personagem diz:

Como regra geral, pela minha experiência, as pessoas realmente malignas não vivem se gabando. Conseguem ficar quietas a respeito da própria maldade. É somente quando seus pecados não são tão graves assim que elas se dedicam a comentá-los. O pecado é uma coisa tão degradada, tão pequena, tão ignóbil... Para essas pessoas é terrivelmente necessário fazer com que ele pareça algo importante e grandioso. (p. 68)

E no final, Easterbrook e o Inspetor Lejeune comentam os crimes:

-- O que me deixa perplexo, sempre, – [disse o Inspetor] – é pensar como uma pessoa pode ser tão inteligente e ao mesmo tempo tão estúpida.

-- A gente sempre imagina um grande criminoso – disse eu – como sendo um personagem imponente e sinistro, uma personificação do Mal.

Lejeune balançou a cabeça.

-- Não, não é bem assim – disse ele. – O Mal não é uma força sobre-humana, é alguma coisa menos que humana. Um criminoso é alguém que quer se tornar importante, mas nunca terá a importância com que sonha, porque será sempre algo menor que um ser humano. (p. 185-186)

Não é uma formulação tão elegante e complexa quanto a da “banalidade do Mal” de Hannah Arendt, mas é também uma boa descrição da nossa experiência no dia-a-dia.



(Agatha Christie)







domingo, 2 de fevereiro de 2020

4546) Os contos de Guimarães Rosa (2.2.2020)




Guimarães Rosa estreou com Sagarana (1946), um volume de contos longos, ou noveletas, um tipo de narrativa onde ele parecia sentir-se totalmente à vontade. Nesse formato, ele não se limitava a contar a estória principal. Divertia-se em incrustar pequenos episódios que não tinham nada a ver com o enredo em si mas tinham tudo a ver com a Estória maior sendo contada. Inseria seus impagáveis personagens secundários, aqueles que surgem, brilham por uma ou duas páginas e desaparecem para sempre...

Ele começou assim, como um escritor de peripécias largas, e de arcos narrativos amplos que se estendiam por dezenas de páginas.

Seu segundo livro, Corpo de Baile (1956), ampliou essa tendência.

Só para comparar: a quarta edição de Sagarana tem nove contos em 365 páginas, o que dá uma média de 40 páginas por estória. 

A segunda edição de Corpo de Baile, de 1958 (a única em que todos os sete contos estão reunidos num volume só) tem 515 páginas, o que dá uma média de 73 páginas por conto.


O autor estava estendendo-se cada vez mais, como prova o tijolaço que foi o romance Grande Sertão: Veredas (1956), uma única narrativa em 574 páginas (na segunda edição, a que possuo).

Depois disso, começou a encolher: seu livro seguinte, Primeiras Estórias (1962), tem 21 estórias em 176 páginas, média de oito páginas por conto.

E seu livro final (excluindo os póstumos), Tutaméia (1967) tem 44 textos (40 contos e 4 prefácios) distribuídos por 192 páginas, numa média de quatro páginas por texto.

É um movimento bastante nítido de narrativas que começam com grande extensão, vão se ampliando... E depois recuam, pressionadas pelas marés da vida, reduzem-se e se concentram em contos compactos, concentradíssimos, que alguns críticos mais impacientes consideram quase ilegíveis.

Os dois últimos volumes de contos que Rosa publicou em vida têm uma origem completamente diversas das de Sagarana e Corpo de Baile, histórias espichadas pelo autor ao seu bel-fazer, compondo preguiçosamente com caneta e caderno.

Os contos de Primeiras Estórias e de Tutaméia tiveram, praticamente todos, uma primeira edição em periódicos, e foram revisados em seguida para a publicação em livro. Isso sem dúvida contribuiu para que os textos de cada volume tivessem entre si aproximadamente a mesma extensão, visto que apareciam em páginas com espaço predeterminado. Isso é bem mais visível em Tutaméia.


De acordo com a bibliografia organizada por Plínio Doyle para o precioso volume Em Memória de João Guimarães Rosa (José Olympio, 1968), os vinte e um contos de Primeiras Estórias foram selecionados, em sua maioria, dentre 34 textos publicados pelo autor, semanalmente, no jornal O Globo, entre 7 de janeiro de 1961 e 26 de agosto do mesmo ano.


Ali saíram, por exemplo, alguns dos contos mais importantes daquele livro, como “Soroco, sua Mãe, sua Filha” (18-3-1961), “A Terceira Margem do Rio” (15-4-1961), “Um Moço Muito Branco” (29-7-1961) e assim por diante. Dos textos não selecionados para Primeiras Estórias, vários acabaram sendo recolhidos no volume póstumo Ave, Palavra (1970; 2ª. edição, 1978), organizado por Paulo Rónai.

Algo parecido aconteceu com os textos que foram reunidos anos depois em Tutaméia. Rosa colaborou, entre maio de 1965 e julho de 1967, no semanário médico Pulso, editado pelo Laboratórios de Sidney Ross, no Rio de Janeiro, sob a direção do Dr. Roberto de Souza Coelho. Eram colunas quinzenais, porque ele, ao que parece, se revezava com Carlos Drummond: o texto inicial citado por Plínio Doyle nesse segmento intitula-se “Guimarães Rosa em PULSO, revezando com Drummond” (15.5.1965).

Esse obscuro semanário trouxe a público as primeiras versões de boa parte do conteúdo de Tutaméia.

Um levantamento cuidadoso da história editorial destes textos está no texto (disponível na web) “Tutaméia, a Trajetória da Escrita”, de Sandra Paro, da PUC-GO.



Tutaméia surgiu, portanto, de um compromisso profissional de colaboração na imprensa, num espaço provavelmente limitado, que fez com que os contos acabassem tendo mais ou menos a mesma extensão. Alguns dos textos de Tutaméia são episódios breves, cuja ação interna dura apenas algumas horas, ou até minutos; outros são narrativas de uma vida inteira. Tudo comprimido no mesmo espaço que, naquela década, era provavelmente medido nas tradicionais laudas de 2.100 toques (30 linhas de 70 toques cada).

Por um lado, isto certamente reflete a vida mais atarefada do Guimarães Rosa pós-1956, envolvido com entrevistas, supervisão de traduções e de reedições, compromissos literários – para não falar nas suas atribuições como diplomata, às quais sempre se dedicou com o mesmo zelo que aplicava ao trabalho literário.

Mostra também a maleabilidade do escritor, que despontou para o sucesso com contos de 40 páginas e duas décadas depois não se recusava a atuar dentro da camisa-de-força das quatro páginas. O que levou os textos deste derradeiro volume a um certo preciosismo verbal (ou “maneirismo”, como admitia Ariano Suassuna, seu amigo e grande admirador).









quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

4545) Minhas Canções: "A Volta dos Trovões" (30.1.2020)



Esta música foi gravada por Elba Ramalho num dos melhores discos da primeira fase de sua carreira, Coração Brasileiro (1983), o disco que marcou também o seu primeiro grande estouro nos shows ao vivo. Foi a época em que o Canecão mandou ampliar suas arquibancadas laterais (reza a lenda) para comportar o público de Elba, porque os ingressos esgotavam com 15 ou 20 dias de antecedência. Não sei se é verdade; o que posso garantir é que todas as noites o show botava gente pelo ladrão, e todas as noites eu estava lá.

Acho que “A Volta dos Trovões” não estava no roteiro deste show; quem estava era “Nordeste Independente”, cuja história já contei em entrevistas até abusar. Mas “A Volta...” era para mim uma das melhores canções da minha parceria com Fuba, e uma gravação que acabou se tornando uma beleza. Sim, porque não são poucas as vezes em que um compositor vê sua música ser gravada de uma maneira completamente avessa ao que ele tinha em mente. Em casos assim acho que deve prevalecer a vontade do intérprete, que tem o direito a sua própria leitura da música. A qual, idealmente, poderá ser regravada e relida dezenas de outras vezes.

“A Volta dos Trovões” foi composta quando eu e Emilia Veras dividíamos com Fuba uma casa em Santa Teresa, perto do Largo das Neves. Muitas canções foram feitas durante o ano e meio, mais ou menos, em que moramos naquela casa da ladeira, no andar térreo, tendo no andar superior a vizinhança circunspecta e editorial de Jorge Chaves, que trabalhava na livraria Leonardo da Vinci.

A melodia, Fuba extraiu primeiro do violão, e passou meses tocando diariamente e abrindo concorrência para uma letra. É um dos casos em que o compositor faz um “monstro”, uma letra provisória e sem sentido que a gente aconchambra com o único propósito de dar apoio à melodia, para a gente cantar melhor e não ter perigo de esquecer. As frases finais das duas estrofes da música, “armas de estrondo e luz” e “a volta dos trovões” tinham suas seis sílabas cantaroladas por nós como “Gira Cascaviou”, que é do mesmo idioma de “Yolesman Crisbeles” ou de “Klaatu Barada Nitko”.

Lembro que nessa época a gente tinha na parede da sala uma foto do olindense Xirumba, mostrando índios deitados na rede. Muitas vezes as visitas lá na casa, que eram frequentes, comentavam historias de índios. Alguém nos contou que numa certa tribo, que ocupava um território muito valioso, um avião passou certo dia em voo rasante e jogou lá de cima, bem no centro da aldeia, várias sacas de açúcar, que estouraram, é claro, ao se chocar com o chão. Segundo essa versão, índios adoram açúcar, e meia hora depois aquilo estava fervilhando com a presença atarefada de todos os indígenas ao alcance da voz, recolhendo todo o açúcar possível.

E então o avião fez o seu segundo sobrevoo, exatamente na mesma rota, e ao passar sobre a aldeia jogou dinamite.

É interessante o choque entre civilizações quando existe não apenas um desnível tecnológico, mas uma irredutibilidade conceitual. Lembro o exemplo do cacique maia que derrubou em batalha o espanhol Pedro de Alvarado e, tendo abatido o cavalo do conquistador, deu-lhe as costas, imaginando (por não serem os cavalos conhecidos no Peru de então) que os dois eram uma criatura só; Alvarado ergueu-se e o matou.

A guerra dos maias contra a tecnologia armamentista dos brancos equivaleria a que?  Pensei: equivaleria a uma hipotética guerra desses brancos contra alienígenas (em vez de indígenas), uma luta já tantas vezes descrita na ficção científica menos ufanista. Não é muito difícil a um escritor de space opera imaginar “matadeiras” high tech que deixem no chinelo as pretensões  belicosas da Humanidade.

Reconheço que na letra da canção não ficou muito claro, mas a primeira visão da letra foi supor uma lenda cíclica, de algum povo nativo e de baixa tecnologia: uma lenda de que um dia, no futuro, gente armada descerá do céu sobre eles, com armas de estrondo e luz, e os derrotará para sempre, ou os dizimará, ou os escravizará.

Isso acontece, os brancos massacram os índios na parte 1 da música. Na parte 2, que começa com “Onça negra caminhou na trilha... vê-se a ocupação da terra dos índios pelos brancos, que não são muito mais gentis do que os “genocidas” do romance de Thomas M. Disch. E os remanescentes dos índios, escondidos em algum desvão da paisagem agro-terraformada, sonham com o momento em que a morte voltará a descer do céu, com ribombos e ofuscação – sobre os moradores atuais.

Foi, pelo que lembro, uma das faixas mais bem produzidas do disco, que é todo muito bom. O arranjo foi de César Camargo Mariano, que chamou os grupos Boca Livre e Céu da Boca para fazerem um vocal ao estilo de um canto indígena.

Do ponto de vista da técnica empregada, foi um desses casos em que a gente pega uma melodia 100% pronta e vai encaixando as sílabas da letra como quem encaixa ladrilhos num mural: de um em um.


***********


A VOLTA DOS TROVÕES  (Elba Ramalho)
(Braulio Tavares e Fuba)


Um tambor amedrontou a mata
quando o dia clareou.
Na clareira respondeu a flauta
um aviso de terror.

Um cacique descobriu pegadas
de um estranho caçador.
Uma tribo foi exterminada
onde o rio avermelhou.

Antes das chuvas,
quando um trovão
tombou das estrelas
e a selva escura
viu brilhar nas mãos de um deus
armas de estrondo e luz...
Como avisou a lenda:
armas de estrondo e luz.


2
Onça negra caminhou nas cinzas
da fogueira que passou.
Gavião voando contra a brisa
viu a mancha do trator.

Sobre o chão onde os pajés dançavam
uma vila se formou.
Todo dia longe ressoava
o machado lenhador.

Dentro da selva
pulsam os corações
dos guerreiros,
esperando a noite
em que os astros vão trazer
a volta dos trovões...
Como promete a lenda:
a volta dos trovões.














domingo, 26 de janeiro de 2020

4544) "Babel-17" (26.1.2020)




Samuel Delany tinha apenas 24 anos quando este romance foi publicado e ganhou o Prêmio Nebula de ficção científica. 

É o prêmio mais “intelectual” da FC norte-americana, votado por escritores, editores e críticos, em comparação ao Prêmio Hugo, mais “popular”, votado por leitores e fãs. E tem mais: ele já havia publicado àquela altura cinco novelas curtas, das quais pelo menos uma (Empire Star, 1966) é de qualidade excepcional.

Babel 17 foi uma porrada na elite dos autores de FC da época porque pegava alguns dos temas, ambientes e truques narrativos da pulp fiction dos anos 1930-40 e da FC mais literariamente consciente dos anos 1940-59. E no meio disso tudo injetava uma overdose de elementos contemporâneos da contracultura da época, dos jovens da época. Quando este livro surgiu, os grandes nomes da FC norte-americana eram Isaac Asimov, Frederik Pohl, Robert Heinlein, Theodore Sturgeon, A. E. Van Vogt – todos na faixa dos 45 anos ou mais. Aos olhos deles, Delany era uma espécie de menino-prodígio.

Babel-17 tem um cardápio habitual nas aventuras de space opera: batalhas espaciais, astronavegação visionária, invasores implacáveis, assassinos de encomenda, piratas galácticos, um espião oculto entre uma tripulação fiel, armas de poder titânico...

Na obra de Delany, o livro tem uma continuidade temática e estilística com Nova (1968), que já comentei aqui no blog. Ambos os livros, aliás, começam com um longo trecho em que o capitão de uma espaçonave caminha pelo submundo de uma cidade espaçoportuária, selecionando tipos extravagantes para compor a tripulação de sua nave – como em tantas aventuras piráticas-marítimas do romance clássico de aventuras.

Nenhum leitor poderia se queixar de temática obscura. Tudo ali é familiar: a humanidade em combate feroz contra um invasor incompreensível, e o herói (no caso, a heroína) que detém uma habilidade única e excepcional, capaz de reverter o equilíbrio da guerra.

Babel-17 é uma das obras fundadoras da New Wave da FC norte-americana da época. Um sinal disto é que deve ser o primeiro romance na história da FC em que a personagem principal é uma poeta, e que ela vence suas batalhas intergalácticas enfrentando uma ameaça de natureza linguística, e não apenas armas nucleares.

Uma poeta bem space opera, em todo caso, porque Delany diz logo no início, sobre a capitã-de-espaçonave Rydra Wong:

Ela era a poeta mais famosa nas cinco galáxias já exploradas.

A suspensão de incredulidade neste caso é necessária, não para admitir a hipótese de que a humanidade já tivesse a essa altura explorado cinco galáxias, mas de que uma poeta fosse famosa em todas elas. Ou seja: é space opera, é puro melodrama, é uma história épica em grande escala onde mais importa o vívido do que o verossímil.

A escala do romance é épica, sim, contando a guerra entre a Aliança e os Invasores, um conflito político descrito assim (com um possível erro de continuidade):

Havia nove espécies inteligentes entre as sete galáxias já exploradas pelas viagens interestelares. Três haviam se unido permanentemente à Aliança. Quatro ficaram ao lado dos Invasores. Duas não se envolveram. (Parte 3, IV).

No meio da guerra aparecem piratas espaciais simpáticos, comandados por Jebel Tarik; piratas estão presentes também em Nova (1968), o romance seguinte do autor. Existem armas de tecnologia ultra-avançada para a época, androides que funcionam como perfeitas máquinas de matar.


Uma aventura de space opera não vale apenas pela grandiosidade e exotismo de sua ação, mas pela capacidade de produzir (como nos melhores livros de Van Vogt, de Edmond Hamilton, de Doc Smith) frequentes flashes de imaginação descritiva, evocando episódios inteiros de aventuras que não serão contadas. Como neste trecho, em que num momento de crise um personagem lembra um perigo por que já passou:

...parado e tiritando de frio nas cavernas ressoantes de Dis onde ficara enclausurado durante nove meses, depois de devorar toda a comida, e mais o cachorrinho de Lonny, depois Lonny, que morrera congelado tentando escalar a encosta de gelo, até que de súbito o planetóide saiu da zona de sombra de Ciclope e o clarão de Ceres explodiu no céu, de modo que quarenta minutos depois a caverna estava inundada por uma água gelada que lhe chegava ao peito. (Parte 4, II)

Essas “ilustrações” brotam (e desaparecem para sempre) no meio de uma ação totalmente diferente, e expandem o universo proposto.  São, nas aventuras espaciais, o equivalente às recordações de guerra de velhos soldados ao pé da lareira, ou de lobos-do-mar num convés noturno, ou de caçadores em volta da fogueira.

São uma figura narrativa essencial ao romance de aventuras. Servem para lembrar ao leitor que a aventura sendo contada não é a única, e que contá-la implica em puxar os fios de muitas outras que ficaram (e ficarão) para trás, pois o mundo do Romance de Aventuras vive do exotismo e do fascínio das coisas extraordinárias que transformam pessoas comuns em pessoas extraordinárias.  

É um mundo futuro onde a cirurgia cosmética avançou a galope, e praticamente todo mundo ostenta algum tipo de enxerto ou deformação estilosa:

“A maior parte deles eram homens e mulheres normais, mas os resultados da cirurgia cosmética eram numerosos, e faziam o olhar de um observador pular de um lado para outro. Criaturas anfíbias ou reptilianas discutiam e gargalhavam com grifos e com esfinges de pele metálica.” (Parte 1, III)

E ao mesmo tempo é um universo onde os personagens comem hamburger e batata frita e ketchup, bebem “ice cola”, compram jornais para saber das novidades. Essa mistura entre imaginação exótica e ambientação banal existe em toda space opera. Em Delany, ela parece menos resultado da pressa ou da preguiça, e sim da intenção consciente de aproximar o futuro ao presente, e ver que tipo de faísca de percepção resulta desse atrito.

Há um capítulo curto e bem humorado (Parte 4, I) em que duas pessoas estão trancadas na cabine de comando, aparentemente fazendo sexo, e um tripulante fica interferindo com perguntas de rotina pelo áudio e recebendo respostas monossilábicas até que encerra dizendo: “Puxa, desculpa aí se eu interrompi alguma coisa.”

A luta entre a Aliança e os Invasores tem no idioma Babel-17 uma de suas armas. William Burroughs dizia que a linguagem é um vírus do espaço exterior. Neste caso, a linguagem é um vírus que um dos grupos em guerra faz infiltrar nas telecomunicações do outro, para desorganizar suas associações de idéias. É curioso que Delany recorre (Parte 5, IV) ao uso de paradoxos para explicar o poder “travador” de uma linguagem – em Alphavile (1965), Jean-Luc Godard usava trechos de poesia para provocar num bug no supercomputador futurista, Alpha 60.

O filme de Godard e o romance de Delany  mantêm aquele equilíbrio instável, bem dos anos 1960, entre cultura erudita e cultura pop, embora o livro seja muito mais “literário” e mais fundamentado em assuntos de linguística (Delany é um dos mais “semióticos” autores da FC) e demonstre muito mais prazer-de-leitor com a FC clássica do que ocorre com Godard.

A primeira edição brasileira deste livro saiu há pouco pela Ed. Morro Branco (SP), com tradução de Petê Rissatti (num volume duplo que inclui o excelente Estrela Imperial), mas meus comentários neste artigo são a partir da edição em inglês ( trechos traduzidos por mim).


(capa da edição brasileira) 





quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

4543) "Parasita": o filme (23.1.2020)





O marxismo criou a expressão “luta de classes” – se não a criou, pelo menos a transformou num utensílio do idioma. Ou seja, uma expressão que qualquer estagiário de redação usa com plena convicção de que sabe do que está falando. Foi o que aconteceu com “trauma” de Freud, “paradigma” de Thomas S. Kuhn ou “quântico” de Max Born.

Não importa quem inventou o termo. Na verdade, nem importa quem o gravou na linguagem popular, um suporte mais duradouro do que o mármore. Importa que após esse ato de nomear uma coisa abstrata ela se torna estranhamente concreta e as pessoas mais variadas (inclusive jornalistas culturais não-remunerados, como eu) se julgam no direito de botá-la no bolso e sacá-la sempre que for preciso.

O motivo deste nariz-de-cera é que pensei em falar do filme coreano Parasita (2019), de Bong Joon-Ho, sob a ótica da luta de classes, mas essa luta não é uma guerra tão nítida quanto – por exemplo – a guerra entre as formigas e os cupins. O que acontece entre os ricos e os pobres é luta, mas em certos aspectos é dança, em outros aspectos é intercurso sexual, em outros é esporte radical, em outros é combinação-contra-o-feda (como se diz na Paraíba), em outros é jogo de cena, em outros é bestialização coletiva...

“Luta”, apenas, não descreve a relação que neste filme une a família rica (os Park) e a família pobre (os Kim). As duas são simétricas: pai trabalhador, mãe atarefada e cheia de angústias, filha lindinha, filho voluntarioso. Dentro deste quadro, cada um dos oito personagens cresce no seu próprio formato, atira-se no caminho sem volta de suas próprias decisões, sejam pensadas ou aleatórias.

A “luta” entre as classes, em termos como estes, tem algo de sedução e algo de estupro, tem algo de convivência pacífica e de vizinhança em-pé-de-guerra, tem algo de libido predatória e algo de nojo controlado. Como se fosse uma luta entre iguais, mas com armamentos distintos.

Não estarei dando nenhum spoiler se disser que, por uma combinação de circunstâncias, a família de favelados consegue empregar um dos seus membros na casa da família rica; e depois, um segundo; e depois, um terceiro... E por aí vai.

O objetivo deles é previsível, e o resultado disso também. Conheço (aqui do lado de fora da tela) dezenas de histórias pitorescas sobre empregados que, no primeiro piscar de olhos dos patrões, aprontam uma, em sua ansiedade de sentir o gostinho do conforto e do consumo.

Quando vou numa casa bem rica, como a arquitetônica moradia da família Park, tenho às vezes a fantasia de que me empreguei ali como mordomo e que, mais dia, menos dia, a família vai passar férias fora e eu ficarei durante uma semana inteira por dono da casa, sozinho. A partir daí, como dizem as sinopses na web, “mayhem ensues”. Instala-se o caos.

É próprio das pessoas de classe baixa essa atitude contraditória com reação à riqueza: admirá-la, sonhar com ela, e, uma vez tendo-a ao alcance, destruí-la de forma pueril e negligente. Porque (aí é minha “mente rica” que interpreta) a gente só dá valor ao que conquistou com esforço, e quando um grupo de gente maltrapilha se apossa de uma adega, de uma despensa, de uma mansão, por que razão deveria tratar aquilo com reverência e parcimônia? O grande exemplo cinematográfico disto é a ceia dos mendigos no Viridiana (1960) de Luís Buñuel.



Parasita é um exemplo interessante da figura narrativa que denomino A Tomada, por inspiração do conto “Casa Tomada” (1951) de Julio Cortázar: uma situação em que pessoas permitem que seu ambiente seja gradativamente invadido, de forma aparentemente casual e pacífica, por pessoas estranhas que de repente tomam o controle de tudo.

Outro exemplo clássico disto é uma história de terror que nada tem de terror, mas que até hoje me dá arrepios quando lembro dela (como ocorreu ao ver este filme). É o conto de Hugh Walpole “A Máscara de Prata” (1932), que incluí na minha antologia Freud e o Estranho – Contos Fantásticos do Inconsciente (Casa da Palavra, 2007).  

Existe algo ominoso, algo cruelmente veraz na sua brutalidade: o vulcão virtual de violência que jaz sob cada jardim gramado onde uma família rica recebe convidados chiques – para uma festa-coquetel, para um casamento ao ar livre, um aniversário de criança...

Neste filme lembrei também, inexplicavelmente, do clássico pouco conhecido da FC, As Esposas de Stepford, livro de Ira Levin, filme de Bryan Forbes. Lembrei do arrepiante almoço-ao-sol no filme Corra! (Get Out) de Jordan Peele, em que um rapaz negro aceita o convite para um fim-de-semana na mansão dos pais da noiva. Neste último caso a lembrança é inevitável, pois vi este e Parasita, por acaso, no mesmo dia.

Todo roteirista pode bem avaliar as possibilidades de variados efeitos quando encaixamos uma cena de festa seguida por uma cena de carnagem. Carnagem é o que cada espectador está esperando ver, por este ou aquele motivo. Parasita é um desses filmes em que numa ocasião social cheia de tensão civilizada começa a se quebrar uma casca com força, e a gente sabe que alguém vai matar alguém de maneira horrenda. O bom é saber isto possível em cada um deles. E quando acontece, a surpresa é igual, a plausibilidade também.

A luta de classes é sempre encarada como o equivalente sociológico ao choque de placas tectônicas. As histórias humanas são as faíscas produzidas por esse atrito. “Luta” é adequado mas “parasitismo entre classes” talvez fosse um termo mais interessante, porque abriria caminho para comparações possivelmente úteis.

As duas famílias também são parasitas das telecomunicações. Tudo que fazem é mediado por selfies, wi-fi, mensagens, videofone, telefonemas, código Morse. Pode-se igualmente dizer que se, como dizia William Burroughs, “a linguagem é um vírus do espaço exterior”, então as web-comunicações são um vírus criado em laboratório e que está nos parasitando até agora.

Opor um núcleo rico e um núcleo pobre significa a possibilidade de jogar com cumplicidades recíprocas, quando convier à história, e antagonismos declarados, quando for o caso. As chanchadas de Oscarito e Grande Otelo não cansavam de arremessar essa dupla de toscos-simpáticos nos ambientes mais granfinos da época. E instalava-se o caos.

Sobre Parasita, declarou o diretor Bong Joon-Ho:

Para pessoas de diferentes condições sociais a vida em conjunto num mesmo espaço não é coisa fácil. É cada vez mais o que ocorre num mundo triste como o nosso: as relações humanas baseadas na co-existência ou na simbiose não podem se sustentar, e um grupo é levado a assumir uma relação parasítica quanto ao outro. No interior de um mundo assim, que poderá apontar seu dedo contra uma família que batalha, uma família travando uma verdadeira briga pela sobrevivência, e chamá-los de parasitas? Eles não eram parasitas desde sempre. Eles são nossos amigos, são nossos vizinhos, nossos colegas de trabalho. Tudo que aconteceu foi que eles foram empurrados por sobre a borda de um precipício. Ao ser a descrição da vida de pessoas comuns que caem numa tragédia inevitável, o filme é: uma comédia sem palhaços, uma tragédia sem vilões, e nele tudo conduz a em enfrentamento violento e uma queda de ponta-cabeça escada abaixo. Estejam convidados a assistir a ferocidade incontrolável desta tragicomédia.




 (poster: Andrew Bannister)

        






domingo, 19 de janeiro de 2020

4542) O parágrafo anunciado (19.1.2020)




É um gancho narrativo dos mais elementares, e que sempre funciona. Por isso mesmo, deve ser usado com parcimônia, porque depois da terceira vez o leitor pensa, meio sem pensar, “ih, lá vem isso de novo”.

Suponhamos o seguinte trecho de um romance:

“Smith deixou as coisas no hotel, lanchou num bar, assistiu um filme, e de noite foi para a orla da praia, onde pessoas caminhavam, andavam de bicicleta, passeavam com as crianças. Ele lembrou da última vez em que ele e Marybelle tinham ido para a casa dos amigos na Flórida.

Marybelle. Fazia tempos que não pensava nela. Há anos que ela sumira de sua vida por completo. (Etc e tal.)”

Mencionar o personagem, e usar o nome como uma espécie de crachá abrindo o parágrafo seguinte, é um procedimento para informar o leitor de que estão saindo do continuum de ação para o de digressão e memória.  

É um clichê narrativo, essa técnica de  abrir assim um parágrafo, anunciando um nome de pessoa, um lugar específico, um fato ou uma época (“Ah, aquelas férias na montanha com os primos!”). Basta isso para que o leitor ressete a bússola mental e acompanhe o novo canal narrativo, sem nenhum percalço.

O leitor acompanha as mais absurdistas das histórias, se a narração delas fizer um sentido minimamente narrativo: aí estão Campos de Carvalho, Robert Sheckley, Ionesco, Jarry. Acontecem somente coisas bizarras, mas o leitor não tem o menor problema em acompanhá-las.  Seu problema é quando a linguagem narrativa funciona de outra forma – como em James Joyce ou como o Catatau de Paulo Leminski, que são fluxos de frases pouco consequenciais.

Leminski... Os dois romances publicados pelo poeta curitibano (Agora é que são elas, Catatau) são muito diferentes, e nenhum dos dois obedece a essa estilística que poderíamos chamar “estilística de best-seller”, se isso não passasse a idéia errônea de que livros assim vendem mais do que os outros. Não vendem. Apenas são livros mais fáceis de entender, porque o autor vai sinalizando o rumo para o leitor, usando artifícios dessa natureza. Artifícios que funcionam como aquelas bandeirolas que o pessoal finca nas trilhas entre terras pantanosas, avisando aos transeuntes: “venha por aqui”.

O leitor precisa de continuidade, precisa saber onde está pisando, mesmo que a paisagem em torno seja de árvores desconhecidas.

O que mais atrapalha um leitor e impede o seu avanço no texto não é uma história difícil de compreender (embora isto possa pesar, é claro). É a sinalização gráfica.

Grande parte dos leitores de José Saramago – me refiro a leitores cultos, experientes – se queixa da sua maneira pouco ortodoxa de usar a pontuação, as letras maiúsculas, a troca de interlocutores (que ele às vezes amontoa num mesmo parágrafo, sem dar sinais muito claros de quem disse o quê).

A prosa de ficção da segunda metade do século 20 nos acostumou a uma série de liberdades. Mas não acostumou todo mundo ao mesmo tempo.

Hoje em dia, muitos leitores conseguem se virar sem muito problema diante de um parágrafo como este:

Cheguei no prédio que me indicaram. O porteiro era um cara grandão, sonolento. Boa tarde, mora aqui Doutor Altamiro? Pode ser e pode não ser. Quem quer falar com ele? Me botou um olhar de buldogue entre o almoço e a sesta. Olhe, ele não me conhece. Diga que é da parte de Felisberto. Ele mexeu no interfone, resmungou baixinho, de propósito, pousou o aparelho de volta. Seiscentos e um.

Existem aí três planos de discurso, a narração “de fora”, a voz de A e a voz de B. Como a cena é bastante clara, é natural esperar que o leitor faça a decodificação sem muito problema. E tem mais uma coisa: como os três planos vêm misturados, é preciso que depois de cada ponto e a cada início de frase o leitor interprete, compare e decida: “ah, agora é fulano quem está falando”. São microdecisões tomadas ao longo da leitura, e isso acaba sendo bom, porque, como diz o pessoal mais tarimbado, evita que o leitor pegue no sono.

O mesmo trecho, numa sinalização gráfica convencional, viria mais ou menos assim:

Cheguei no prédio que me indicaram. O porteiro era um cara grandão, sonolento.

– Boa tarde, mora aqui Doutor Altamiro?

– Pode ser e pode não ser. Quem quer falar com ele? – Me botou um olhar de buldogue entre o almoço e a sesta.

– Olhe, ele não me conhece. Diga que é da parte de Felisberto.

Ele mexeu no interfone, resmungou baixinho, de propósito, pousou o aparelho de volta.

– Seiscentos e um.

Fica mais óbvio, fica mais confortável, mais “conforme o figurino”, porque a sinalização está claríssima. Mas não se pode dizer que o primeiro exemplo está incompreensível. Pelo menos me parece mais fluido do que muitos parágrafos (brilhantes, por outros critérios) de José Saramago.

Saramago... Sua coragem de misturar um português clássico, castiço, e uma sinalização heterodoxa causaram surpresa em muitos leitores, para quem esses dois aspectos se excluíam mutuamente. Mas são combinações desse tipo que marcam um estilo, deixam-no totalmente pessoal – no que isto tem de bom ou de ruim.

E se a história que o autor está contando valer a pena, e se for complicada, e se tiver valores e qualidades como história em si... não custa nada sinalizar, deixar que o leitor perceba sem esforço adicional quem falou, quem respondeu, onde aquilo está acontecendo, se é fato real do momento, se está se passando na memória ou na imaginação do personagem. Pequenas sinalizações. Como faz o metrô, que nunca deixa de avisar o óbvio, sem se preocupar pensando que todo mundo já sabe: Próxima estação, Cinelândia. Desembarque pelo lado direito.

Se a história estiver bem sinalizada, o autor pode arrebatar o leitor para a viagem que bem entender.