sábado, 23 de dezembro de 2017

4298) Um poema de John Ashbery (23.12.2017)




(Morreu pouco tempo atrás nos Estados Unidos o poeta John Ashbery, que mereceu longos e elogiosos obituários. Na época o nome não me despertou nenhuma lembrança. Agora, remexendo em arquivos velhos, encontrei este poema que li e salvei há alguns anos, movido por alguma ressonância autobiográfica. É um belo poema sobre o processo criativo literário, familiar a todo escritor que de vez em quando vai à janela. Vai ele aqui com tradução minha. O original é de 1956, do livro “Some Trees”.)


O MANUAL DE INSTRUÇÕES
(John Ashbery)

Sentado à janela do meu prédio, olhando para fora,
penso como seria bom se não tivesse de redigir
um Manual de Instruções a respeito das utilidades de um novo metal.

Olho para a rua lá embaixo e vejo as pessoas,
cada qual passeando cheia de paz interior,
e sinto inveja delas. Tão distantes de mim!
Nenhuma delas tem que se preocupar
com a entrega do Manual no prazo combinado.

E, bem ao meu jeito, começo a sonhar,
apoiando os cotovelos na mesa
e me soerguendo um pouco para olhar pela janela,
e sonho com Guadalajara! A cidade das flores cor de rosa!
A cidade que eu mais desejo conhecer, e nunca conheci, no México!
Mas imagino vê-la agora, sob a pressão de ter que escrever o Manual de Instruções,
vejo a praça pública da cidade, seu coreto cheio de adornos!
A banda está tocando Scheherazade de Rimsky-Korsakov,
e em redor do coreto as garotas das flores
seguram flores cor de rosa e de limão,
cada uma tão atraente em seu vestido de listas em azul-e-rosa (oh! cada tom de rosa e azul!)
e ali perto a barraquinha branca onde mulheres de verde
distribuem frutas verdes e amarelas.

Os casais desfilam: todos estão em clima de feriado.
Primeiro, puxando o desfile, vem um sujeito elegante
vestido de azul escuro. Na cabeça traz um chapéu branco
e exibe um bigode, que foi aparado para aquela ocasião.
Sua querida, sua esposa, é jovem e bela; o xale dela é vermelho, cor-de-rosa e branco.
Suas sandálias são de couro, ao estilo americano,
e ela traz um leque, porque é encabulada, e não quer que a multidão veja seu rosto o tempo inteiro.

Mas todo mundo está tão ocupado, com suas esposas ou suas amadas,
que duvido que notem a esposa do homem de bigode.
E aí vêm os rapazes! Vêm saltando e jogando coisas na calçada
que é feita de ladrilhos cinza. Um deles, um pouco mais velho, traz um palito entre os dentes.
É mais silencioso do que o resto, e finge não reparar nas moças bonitas de vestido branco.
Mas os amigos dele reparam, e gritam provocações para as garotas risonhas.

E no entanto isso tudo vai acabar,
quando os anos ficarem mais profundos,
e o amor os trouxer ao desfile por outros motivos.

Mas acabei perdendo de vista o rapaz com o palito.
Esperem! Ali está ele, do outro lado do coreto,
separado dos amigos, envolvido na conversa com uma garota
de catorze ou quinze anos. Tento escutar o que estão dizendo
mas parece que estão apenas murmurando coisas – palavras tímidas de amor, provavelmente.
Ela é um pouco mais alta do que ele, e abaixa os olhos com calma para os olhos dele, tão sinceros.
Ela está de branco. A brisa agita seus cabelos longos e finos de encontro ao rosto moreno.
Ela está visivelmente apaixonada. O rapaz, o rapaz do palito, está apaixonado também:
os olhos dele o demonstram. Afastando minha visão deste casal
vejo que houve agora um intervalo no concerto.
Os transeuntes estão descansando, tomando refrigerantes no canudinho
(o refrigerante está numa grande jarra de vidro, e quem o serve é uma senhora de azul escuro),
e os músicos se misturam a eles, com seus uniformes brancos, e conversam,
sobre o clima, talvez, ou sobre como as crianças estão se saindo no colégio.

Vamos aproveitar esta oportunidade
e entrar na ponta dos pés nesta ruazinha transversal.
Aqui vocês podem ver uma daquelas casinhas brancas com enfeites verdes
que são tão populares aqui. Olhem! Bem que eu lhes disse.
Dentro está mais fresco à sombra, mas o pátio está banhado de sol.
Uma mulher idosa de vestido cinza está sentada, abanando-se com um leque de folha de palmeiras.
Ela nos convida a entrar no pátio, e nos oferece um refresco para beber.

“Meu filho está na Cidade do México,” diz ela. “Ele os receberia também se estivesse aqui. Mas ele trabalha num Banco, lá.
Olhe, este aqui é o retrato dele.”

E o rapaz de pele morena com dentes de pérola nos sorri naquela velha moldura de couro.
Agradecemos a ela sua hospitalidade, porque está ficando tarde
e precisamos olhar melhor a cidade, antes de irmos embora,
olhar a cidade de cima de um lugar bem alto.

A torre daquela igreja pode servir – aquela em cor de rosa desbotada, de encontro ao azul vívido do céu. Entramos lentamente.

O porteiro, de uniforme marrom e cinza, pergunta há quanto tempo estamos na cidade, e se estamos gostando.
A filha dele varre os degraus, e nos cumprimenta quando passamos rumo à torre.

Logo chegamos ao topo, e a teia quadriculada da cidade se estende aos nossos olhos.
Ali está o bairro nobre, com suas casas rosa e branco, e seus terraços cheios de plantas se esboroando.
Ali o bairro mais pobre, onde as casas são azul escuro.
Ali o mercado, onde os homens vendem chapéus e espantam moscas,
e ali a biblioteca pública, pintada em tons de verde claro e bege.

Olhem! Lá está a praça de onde viemos, onde o pessoal passeia.
Agora há menos gente por lá, agora que o calor do sol ficou mais forte,
mas aquele rapaz e a garota ainda conversam junto ao coreto.

E aquela é a casa da pequena senhora—
lá está ela no pátio, se abanando.

Como foi breve, mas como foi completa, a nossa experiência de Guadalajara!
Vimos o amor entre os jovens, entre os casados, e o amor de uma mãe idosa pelo filho.
Ouvimos a música, provamos as bebidas, olhamos as casas coloridas.
O que nos resta a fazer, senão ficar? Mas isto não é possível.

E quando a derradeira brisa refresca o topo da velha torre,
eu giro a cabeça, e os meus olhos
se voltam para o Manual de Instruções – que me fez sonhar com Guadalajara.









terça-feira, 19 de dezembro de 2017

4297) Tolkien e os rios da Terra Média (19.12.2017)





Um dos encantos que fascinaram os primeiros leitores da trilogia O Senhor dos Anéis (1954-55) de J. R. R. Tolkien foi a impressão de realidade intensa produzido por um livro que era claramente de fantasia, que transcorria num mundo sem nenhum país reconhecível, nenhuma cultura reconhecível, mas que era intensamente real, verossímil, mesmo quando estava descrevendo cenas com seres fantásticos e forças sobrenaturais.

Já se disse que o livro de Tolkien foi um dos primeiros em que um leitor sentia o quanto custa fazer longas viagens a pé. Os personagens passavam longos capítulos para ir de um lugar a outro, numa época literária em que esse nó-górdio era cortado com fórmulas mágicas tipo: “Depois de alguns dias de extenuante caminhada, nossos heróis viram-se finalmente à beira do Rio Aligátores...”

A textura de uma roupa, a profusão de odores numa estalagem, a sensação de estar amarrado há horas e cheio de cãibras, tudo isso eram pontos positivos na criação de uma narrativa fisicamente verossímil.

E quando focalizávamos a atenção no chamado ambiente-macro, a impressão se mantinha. Aqueles personagens não eram ciscos de poeira boiando no ar. Pertenciam a famílias longuíssimas onde todo mundo tinha nome e datas, serviam a reis cujas dinastias eram descritas com minúcias ao longo de séculos. Era um mundo onde todo mundo existia de verdade, com testemunhas.

Invoco todas estas qualidades do texto de Tolkien para introduzir uma divertida crítica feita por Alex Acks (geólogo e escritor) a respeito dos rios e das montanhas da Terra Média, “Middle Earth”.

Num artigo reproduzido pelo saite da editora Tor Books, Acks faz uma série de críticas ao modo como os rios parecem se comportar na paisagem da Terra Média tolkieniana. Não vou transcrever aqui a argumentação dele, cuja íntegra pode ser lida no link original:


Basicamente, Alex diz que apesar de ser um admirador da obra de Tolkien, ele considera que os mapas incluídos nela são “os mapas mal-feitos de fantasia que deram origem a milhares de mapas mal-feitos de fantasia”. Esses mapas se tornaram um “bônus” quase obrigatório do gênero, tal como as plantas-baixas da casa onde ocorreu o crime o foram para a literatura detetivesca dos anos 1930-1950.

Diz Alex que o curso do Anduin, o principal rio, é “incompreensível”, devido a vários fatores. Um deles é o fato de que quando um rio entra em rota de colisão com uma cadeia de montanhas (um local onde o terreno “sobe”, por definição) isso tem algo de estranho. Ele faz algumas ressalvas (talvez o rio já existisse, e as montanhas tenham se erguido muito tempo depois, por uma convulsão geológica qualquer), e segue adiante.

Ele observa que o Anduin não parece ter grandes afluentes visíveis, e que os rios em volta, em vez de correram na direção dele, parecem ir cada qual numa direção diferente, o que sugere uma topografia  de relevos pouco realistas. A direção de um rio indica que existe ali uma baixa, pois a água tende a se escoar sempre para os lugares mais baixos. E essa direção dele tem que estar de acordo com as outras figuras de relevo em volta.

O que uma crítica desta natureza nos diz sobre o talento literário de Tolkien?

Várias coisas, e nenhuma delas muito grave. Tolkien era meio filólogo, meio medievalista. Era professor em Oxford, o que já é meio caminho andado para a especialização do conhecimento. O cara tende a ser um esgotador-de-um-só-assunto, e não um comparador-transversal-de-disciplinas.  É mais que compreensível que ele entendesse pouco de geologia. Todo escritor acaba errando, quando usa dados de fora de suas áreas de conhecimento. Os erros hidrográficos de JRRT não me parecem graves; pelo menos, foi a primeira vez que vi alguém falar a respeito.

Tolkien fazia uma espécie de hard fantasy, ou seja, uma fantasia que mesmo admitindo elementos sobrenaturais busca uma coerência interna, uma lógica, um compromisso de rigor. A verossimilhança de um elemento fantástico é maior quando o leitor percebe que existem regras, existe um quadro geral de forças e pressões no qual esse elemento tem que se encaixar.

Numa carta ao seu filho Christopher, em 25 de abril de 1944, quando trabalhava no Livro IV, ele diz:

Dei uma aula medíocre, depois encontrei por meia hora os Lewises [provavelmente C.S. Lewis e seu irmão] e C.W. [provavelmente Charles Williams].  Aparei três gramados, escrevi uma carta a John [o outro filho de Tolkien], e lutei com uma passagem problemática em The Ring. A esta altura, eu tenho de descobrir quanto tempo mais tarde a lua se eleva a cada noite, quando está próxima de ficar cheia; e como preparar um guisado de coelho!

Se Tolkien desconhecia os detalhes da dinâmica dos fluxos hidrográficos, ou sei lá como se chama isso, não era por burrice ou negligência, era por falta de tempo mesmo. Se pudesse, ele estaria consertando e aperfeiçoando essas coisas até hoje. Ele era desse tipo.

Os possíveis erros não influem no desenvolvimento do enredo e, principalmente, não são aqueles erros que empurram o enredo para um beco sem saída e que o autor, percebendo tarde demais, resolve mediante um deus ex machina qualquer.

Tolkien parecia ver um mapa (e assim agem muitos dos autores que o seguem) como um quadro, uma obra de arte, um retrato idealizado de uma paisagem, destinado apenas a sugerir vagamente a posição relativa dos elementos, e uma distância aproximada. (Como os mapas de metrô, p. ex.) Ali, como numa “carta enigmática”, cada elemento pictórico corresponde a uma feição do mundo exterior, mas num sentido meramente ilustrativo.

Um mapa físico, no entanto é mais do que isto: mesmo estático, ele indica a posição atual de um processo dinâmico, algo que envolve placas tectônicas, secas, alagamentos, erosão. É um caso de “a foto da nuvem”, só que uma nuvem muitíssimo mais lenta, que não muda no curso de minutos, e sim de milênios.

Existe forçosamente uma sintaxe interna entre os elementos representados num mapa científico. Isto modifica aquilo. Isto é consequência daquilo. Isto e aquilo são consequências distintas de um fenômeno que já passou.

É neste aspecto que a notável mente analítica de Tolkien, durante a criação da obra, cedeu espaço a sua não-menos-notável mente imaginativa, e seu mapa se tornou uma peça de arte gráfica, um híbrido, a meio caminho entre a descrição de fenômenos físicos e a pictografia armorial.







sábado, 16 de dezembro de 2017

4296) O mistério policial no "Romance da Pedra do Reino" (16.12.2017)




Tem lugares que guardam um enorme valor simbólico para um leitor de romances policiais. Como por exemplo o endereço de 221b Baker Street, em Londres.

Dias atrás estive na cidade de Aparecida (PB), a convite do Centro Cultural Banco do Nordeste (Sousa), participando da 8ª. Mostra Acauã do Audiovisual Paraibano, um evento sertanejo que ocorre periodicamente na Fazenda Acauã, um dos marcos históricos mais interessantes da Paraíba.

Por convite de Sergio Silveira (CC-BNB) e Laércio Filho (Acauã Produções Culturais), não só fiz uma palestra como pude presenciar o lançamento do novo romance de Ariano Suassuna, que foi apresentado por seu filho, o artista plástico Dantas Suassuna.

O Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores é na verdade uma caixa com um conjunto de dois livros, “O Jumento Sedutor” e “O Palhaço Tetrafônico”, que se juntam ao clássico Romance da Pedra do Reino para compor um conjunto romanesco, “A Ilumiara”.

Foi em função disto que fui até lá, para falar sobre “O Mistério Policial no Romance da Pedra do Reino”.

Quem leu o livro de Ariano sabe que ele tem linguagem fácil mas estrutura difícil – há uma quantidade absurda de informações a serem assimiladas e conectadas entre si, para que se possa compreender com clareza a aventura do narrador, Pedro Dinis Quaderna, que se anuncia como novo imperador do Brasil. 



(Irandhir Santos, como Quaderna)

Quaderna descende do fanático que em 1838 promoveu um massacre na Pedra do Reino (hoje no município de São José do Belmonte, em Pernambuco) para lavar com sangue os rochedos, desencantar um reino e trazer de volta D. Sebastião, o rei desaparecido de Portugal.

Um dos mistérios do livro original (quem quiser detalhes vá direto ao Capítulo/Folheto 51, “O Crime Indecifrável”) é o assassinato do tio de Quaderna, Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto, encontrado morto num aposento trancado por dentro, em sua fazenda, a Onça Malhada.

Peço ao leitor recente que não se preocupe com spoilers, que é um dos traumas permanentes dos leitores de livros policiais. Vou revelar aqui a resposta, sim, mas isso é uma gota no oceano do romance, e ouso dizer que o próprio Ariano daria de ombros diante de um excesso de preocupação do leitor. O livro é sobre outra coisa.

Perguntei uma vez a Ariano Suassuna se ele era fã de Edgar Wallace, e ele confirmou. Wallace, inglês, foi um dos autores policiais mais famosos nas primeiras décadas do século 20. Traduzidíssimo no Brasil, era lido por minha avó Clotilde, meus tios, meu pai. Existe até uma foto famosa de Lampião lendo um livro dele.

Se Lampião gostava, por que não Suassuna? Ele confirmou que o mistério policial da Pedra do Reino foi inspirado em dois livros de Wallace que por coincidência eram dois dos meus favoritos, publicados pela saudosa Coleção Amarela, da Editora Globo de Porto Alegre: Na Pista do Alfinete Novo e A Pista da Vela Dobrada.



Aqui, outro artigo meu a respeito:


São aqueles enigmas tradicionais que a gente chama de “quarto fechado” (“locked room”): o mistério consiste em saber como o assassino se evadiu do local depois de cometer o crime, visto que o aposento está trancado pelo lado de dentro.

Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto, no dia em que foi morto, subiu para o andar superior de uma espécie de sobrado que tinha na sua fazenda, vizinho à torre do sino e à capela.

A fazenda Onça Malhada do livro é diretamente inspirada na Fazenda Acauã (ou Acauhan) que pertenceu a João Suassuna, pai de Ariano, e onde ele, menino, passou parte de sua infância.

Na foto abaixo, de Gustavo Moura, vemos o conjunto desta construção, que data do século dezoito.



Ao subir para o andar de cima do sobrado, o fidalgo fechou atrás de si uma porta que vedava o acesso da escada, e uma vez lá em cima também fechou por dentro a porta do aposento, cujas únicas aberturas eram algumas seteiras muito estreitas, incapazes de dar passagem a qualquer pessoa. E ali ele é encontrado morto, várias vezes apunhalado, o sangue ainda golfando, e marcado a brasa por um ferro que ninguém foi capaz de encontrar.

Nesta foto minha, o acesso atual à parte de cima do “sobrado”, onde ocorreu o crime:



Anos atrás apresentei um trabalho num Congresso da BRASA (Brazilian Studies Association) no Recife, convidado por Idelette Muzart, estudiosa e grande conhecedora da obra de Ariano. O trabalho era justamente sobre as soluções possíveis para o crime de quarto fechado proposto por Ariano.

Cada leitor do Romance da Pedra do Reino tem sua teoria.

Dantinhas Villar, filho de Manelito Vilar, da Fazenda Carnaúba, em Taperoá, suspeita de Silvestre, o irmão mais novo e abobalhado de Quaderna.

Eu suspeito que o próprio Quaderna teria sido o assassino de Dom Pedro Sebastião – faltar-lhe-ia o motivo, visto que Quaderna adorava o tio, mas se alguém me pagar um cachê eu invento três motivos diferentes, cada qual mais lógico do que o outro.

Há quem suspeite de Arésio, o filho revoltado do velho fidalgo, agressivo, violento – aquele Caim impiedoso que toda família nobre costuma produzir.

Há quem suspeite do Major Antonio Moraes, usineiro e comerciante de minérios em Taperoá, inimigo mortal do fidalgo assassinado, e que tem como objetivo tomar-lhe a mulher, as terras, a fortuna.

Mas todas as hipóteses esbarram no problema: como alguém pôde entrar sem ser visto no aposento do sobrado, matar sem ser visto, fugir sem ser visto?

Quando foi feita a adaptação do romance de Ariano para minissérie da TV Globo, éramos três roteiristas: Luiz Fernando Carvalho (também diretor), Luís Alberto Abreu e eu. A gente tinha que fazer uma série de TV contando uma história que o próprio autor do livro não tinha terminado ainda de revelar. (Não é esta a única semelhança entre o Romance da Pedra do Reino e Game of Thrones).

Depois do romance ser publicado em 1971, muita gente achou que os volumes seguintes avançariam a história e revelariam a solução do mistério. Ledo engano: os volumes seguintes pularam para o passado, contando apenas o que tinha acontecido antes da história já conhecida. (Não é esta a única semelhança entre o Romance da Pedra do Reino e a série Star Wars de George Lucas).

Reunimos nosso triunvirato e encostamos Ariano na parede: ou revela o mistério ou a gente inventa uma resposta por conta própria. 

Assim coagido, o Cabreiro Tresmalhado sentou-se e produziu um manuscrito revelatório de 52 páginas, com data final de 19 de julho de 2006, com a intimidante autorização: “Aí está o que pude escrever. Vocês podem cortar, desenvolver e acrescentar o que for necessário.”

Assim, foi feito – na medida do possível. Esse texto, que permanece inédito, provavelmente será incluído na republicação do material ligado ao romance, que está nos planos da Editora Nova Fronteira. A solução proposta por Ariano para o mistério policial foi uma solução heterodoxa, que talvez não fosse aceita por teóricos rigorosos como S. S. Van Dine ou John Dickson Carr, mas enfim, esses caras são gringos do hemisfério norte e não entendem o universo oncístico, negro-tapuia, alanceado e épico em que a história transcorre.

E só por isso não vou mais revelar aqui a solução Quem quiser que leia o livro, veja o DVD da série e deduza por si mesmo. Como diria Sherlock Holmes, “The game is afoot”!  








quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

4295) "Vergonha" de Ingmar Bergman (13.12.2017)



O cinema de Ingmar Bergman  era considerado, durante a fase mais brilhante de sua carreira (anos 1960-70) um cinema intimista, interiorizado, voltado para dramas existenciais e para a micropsicologia das relações amorosas.

Vergonha (“Skammen”, 1968) foi um desvio importante nessa tendência, e na época foi malhado por muita gente.

Os apreciadores dos filmes intimistas se assustavam ao ver Bergman filmando exércitos, bombardeios, crimes brutais. “Cedeu aos críticos engajados,” diziam. “Deixou de fazer o que sabe, e quer agora mostrar aos críticos de esquerda que também tem coragem de criticar os militares”.

Do lado oposto, os apreciadores de filmes políticos torciam o nariz para um filme que em momento algo perdia o viés alegórico, abstrato. Um filme de guerra que não mencionava o nome de um país sequer, um partido sequer, uma ideologia sequer.

Vergonha é um dos melhores filmes de Bergman. Revê-lo hoje quase 50 anos depois de feito mostra o quanto o diretor acertou ao não incluir, por exemplo, protestos específicos contra a Guerra do Vietnam, como lhe foi cobrado na época.

Eva e Jan Rosenberg (Liv Ullmann, Max von Sydow) são músicos de orquestra que moram numa ilha vagamente escandinava, numa casa distante de tudo. O rádio de casa está quebrado, e eles não entendem direito que movimentação de tropas é aquela que veem passando na estrada. Fala-se o tempo todo na possibilidade de uma invasão. Eles estão mais preocupados em cuidar da estufa de plantas e das galinhas, em comprar um peixe ou um vinho quando vão à vila mais próxima.

Discutem com leveza por causa da indolência dele; avaliam se dá ou não para terem um filho. Vê-se que são um casal sem nada de extraordinário, cuja vida é uma mistura de rotina harmoniosa e enfrentamento calmo dos problemas comuns.

Quando a guerra vem, vem passando o rodo em tudo. No primeiro terço do filme o casal vive uma história de amor íntima e discreta, com a fotografia em preto e branco registrando olhares, semi-sorrisos, pequenos gestos. Como disse famosamente Paulo Francis, Bergman é o único cineasta que filma um copo dágua e a gente sente a presença de um copo dágua ali. (Francis devia ter atribuído isso ao fotógrafo Sven Nykvyst, mas todo crítico tem suas viseiras.)

O terço central do filme mostra o tsunami de bombardeios, metralhas, incêndios, prisões, espancamentos, torturas, humilhações, execuções brutais.

O terço final é a lenta deterioração moral do casal. Pior do que a morte, às vezes, é a sensação de ter sobrevivido à custa de concessões que talvez fosse melhor ter morrido sem fazer.

A cada nova investida dos invasores, a casa deles vai sendo mais destruída. E o casamento junto com ela.

Liv Ullmann faz mais um dos papéis que expandiu lentamente ao longo da obra de Bergman: a Mulher Vital. Chamo a essa personagem de Mulher Vital como antítese para a “Mulher Fatal” de tantos filmes policiais hardboiled, a sereia maligna que traz consigo a sedução e a perdição.

A Mulher Vital é quem sustenta psicologicamente um homem inseguro (aqui, Max von Sydow). A mulher dá a esses personagens um foco, um centro, evita que eles se auto-destruam por excesso de voluntarismo ou definhem por falta de iniciativa.

Jan Rosenberg é o personagem mais trágico da história. A guerra pega um sujeito hesitante mas boa praça e o transforma num canalha insensível. As pessoas covardes em geral tornam-se mais cruéis do que as outras quando estão numa posição de poder.

Outro personagem trágico é Jacobi, o ex-prefeito, em princípio o vilão da história. Interpretado por Gunnar Bjornstrand, um ator frequente nos filmes de Bergman, ele é aquele típico funcionário público “gente boa” que se torna aderente de primeira hora ao fascismo da vez. Vira portador do fascismo como quem é portador de uma doença.

A guerra extrai dele o que ele tem de pior, ele sabe disso, e deixa-se matar com a fixidez dos suicidas.

Apesar dos bombardeios e das brutalidades, a maioria das mortes do filme ocorrem fora de quadro. Bergman não é de mostrar tripas explodindo para fora de um abdômen. Mas quando o carro dos Rosenberg, em fuga, para diante de uma casa de campo em chamas e Eva se ajoelha junto ao corpo de uma menininha caída no chão, o enquadramento, o som, a expressão da atriz dão àquela morte anônima um peso de realidade proporcional ao que Francis reconhecia no copo dágua.

A guerra faz mais do que matar as pessoas: deixa-as vivas e mata as pessoas que eram antes. A pessoa que sobrevive no mundo dominado pelo inimigo torna-se meio  cúmplice desse inimigo. Torna-se parte dele. Embrutecida, passa a querer agir como ele, pensar como ele. Não há vergonha maior do que esta, a de sobreviver nesses termos.

A sequência final mostra o casal juntando-se a um grupo que foge para o continente num barco. O motor pifa. A comida acaba, a água acaba. E o barco fica rodando sem avançar, num mar juncado de corpos de soldados em decomposição.

Vergonha é um filme sobre a inutilidade de sobreviver depois que um certo limiar de concessão é ultrapassado. 





sábado, 9 de dezembro de 2017

4294) Contracapa de SoundCloud (09.12.2017)




&  o pior da velhice é ter que ficar o tempo todo explicando as piadas 

&  para algumas pessoas, a busca da verdade é uma escalada do Everest; para outras, é caminhar na estrada do Canindé 

&  tudo na vida contém apenas 10 por cento de si mesmo 

&  não há nada mais desesperador do que ver um especialista explicando alguma coisa a um leigo total 

&  não há muita diferença entre um currículo e uma carteirada 

&  desgraça pouca é investimento 

&  de manhã no espelho eu sempre estou com uma cara de Canudos depois da guerra 

&  aí um dia eles inventaram um aplicativo que extinguiu a Ocasião de Ficar Calado 

&  o que estraga a arte é a ansiedade em ser original; a originalidade só presta se for obtida sem querer 

&  hoje em dia só acredita em telejornal quem acredita também no Horário Eleitoral Gratuito 

&  o problema das redes sociais é quando se juntam a incapacidade de pensar e a obrigação de dizer alguma coisa 

&  achar que o PT é comunista é como achar que Justin Bieber canta rock-and-roll 

&  tem um pessoal aí cujo sonho é sair mundo afora punindo impunemente 

&  a imprensa nunca foi tão irrelevante, nem tão reveladora 

&  tanto a lembrança quanto a imaginação pescam num só rio, que é o da memória 

&  a burocracia e a burrice estão sempre na mesma página do dicionário 

&  e a vida nos ensina a transformar um carinho num favor, um favor num hábito, e um hábito numa obrigação 

&  eu olhei para dentro do Abismo e o Abismo neeem tomou conhecimento 

&  a gente passa a vida fazendo anotações para um grande livro, não escreve, publica as anotações, elas se tornam o grande livro 

&  o slogan “Paz e Amor” significa, na melhor das hipóteses, “Cessar-Fogo-Provisório e Sexo-Consensual” 

&  a publicidade é a arte de se dirigir a um ouvinte como se ele fosse um idiota para que ele pense que é inteligente 

&  certas tragédias têm algo de óbvio e de inconcebível, têm algo de impossível e de inevitável 

&  nem tudo em forma de verso é poesia, assim como nem toda mão batendo num piano está fazendo música 

&  tem cara que leva um tiro, escapa vivo, e fica guardando a bala dentro só pra não se esquecer 

&  às vezes alguém reage a uma desatenção nossa com tanta gentileza que dissipa a ansiedade e aumenta a vergonha 

&  fico só imaginando quem vai, no final de tudo, devotar uns urubus tão gordos 

&  tem gente que sofre um desprezo e agride o outro porque prefere o ódio 

&  a civilização como a conhecemos não sobreviveria a um mês sem energia elétrica 

&  o mundo está de um jeito que um cara pode praticar um atentado terrorista achando que aquilo é uma vingança meramente pessoal 

&  minha alegria tem lugar pra todo mundo; minha dor não é da sua conta 

&  tudo que eles querem é nos fazer escolher entre o reino da impunidade e a caça-às-bruxas 

&  não fiquem aí tocando na campainha; quem está dentro, entrou botando a porta abaixo









quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

4293) Essa palavra existe (6.12.2017)




Foi uma troca de posts que vi anos atrás numa rede social. Alguém fez a postagem inicial dizendo algo como: 

“Gente, estou muito feliz. Meu conto XXXX foi antologizado por Fulano de Tal e será publicado este ano pela editora YYYYY”.  

O primeiro comentário que veio ao post foi de alguém dizendo: “Essa palavra ‘antologizado’  existe?”.  E o cara respondeu: “Você acabou de usá-la. Vou responder o quê?”

Escrevo estes comentários aqui resistindo à tentação de ir ao Dicionário Houaiss e checar. Não preciso. A palavra existe sempre que é usada, e se o dicionário não a registra, é só questão de tempo.

Eu posso, por exemplo, dizer que existem palavras desdicionarizadas, e se o dicionário não registra esse adjetivo cujo sentido é óbvio e se auto-explica, o problema é do dicionário, não meu ou seu.

E na verdade entendo a estranheza da pessoa que fez a tal pergunta. Ela certamente passou pelo mesmo moedor-de-carne por que eu passei quando era pequeno: a obrigação férrea de falar certo, escrever certo, não cometer erros nunca, pra não ser reprovado, pra que ninguém mangasse de mim, pra que ninguém usasse meus erros de português como prova de minha inferioridade social e me cassasse tais e tais direitos.

A educação é um moedor de carne, sim, um moedor de carne mental que acaba nos convencendo de que linguagem é como dinheiro. Como todo mundo sabe, só quem pode emitir moeda e fabricar cédulas relativas ao padrão monetário vigente é o Estado, através da Casa da Moeda ou similar. O Estado simplesmente não pode permitir que cada pessoa imprima suas próprias cédulas para fazer compras na quitanda. Imagina o caos.

Pois bem, esse caos existe na linguagem, porque não cabe ao Estado (ou a algum dos seus prepostos) criar as palavras e depois distribuí-las entre a população. Pelo contrário. A população imprime suas palavras. Faz isso meio de improviso, no burburinho das calçadas e das feiras livres, dos balcões de bar e das salas de aula, na sociabilidade da mesa e na intimidade da cama. O Estado não tem nada a ver com isso.

Ou melhor, tem, e para isto há um esforço conjugado de escolas, faculdades, academias, editoras, institutos públicos e privados que unem esforços para disciplinar um pouco o caos linguístico evitável. Surge então essa entidade mítica chamada “o Dicionário”.

Para algumas pessoas, é um manual de referência, um índice do mundo real, como um guia telefônico. Para outros, é um microcosmo do universo, e se não está em um é porque não existe no outro. A pessoa excessivamente meticulosa só se sente autorizada a usar uma palavra se o dicionário a tiver legalizado. Se não, ela fica ansiosa, como se estivesse passando adiante uma cédula falsa.

Existe o verbo antologizar? Eu defendo que sim, até porque, ao contrário de tantos termos, é uma palavra autoexplicativa. Antologizar é incluir em antologia. Eu antologizo, tu antologizas, ele antologiza; nós antologizamos, vós antologizais, eles antologizam. Bastante intuitivo, fácil de usar. Qual é o problema?

“Ah, mas não existe no Dicionário, então não estou autorizado a usar”. Amigo, o dicionário não autoriza nada, porque nenhum dicionário esgota o assunto. Achar que um dicionário estão indexadas todas as palavras da língua é como imaginar que em algum lugar existe uma lista alfabética de todos os brasileiros. Mesmo que alguém se dispusesse a fazer esse despropósito, seria um despropósito-em-progresso por toda a eternidade, precisando ser atualizado a cada segundo.

Um bom dicionário registra talvez um terço das palavras que circulam no país, porque fica de fora dele uma quantidade impressionante de gírias, corruptelas, variantes locais, jargões de grupos, termos científicos e técnicos. O Dicionário é um corre-atrás permanente, tentando registrar o que é possível, mas sabendo que é um cobertor curto. Nunca vai cobrir tudo.

Não sei se os dicionários já estão registrando expressões recentes, e que não me agradam muito, como “empoderamento”, “inicialização”... Pelo meu gosto pessoal, não o fariam. Pelo meu senso de justiça, as palavras já devem estar lá, porque existem, independentemente de eu gostar delas ou não. Meu gosto pessoal não conta. Nem o de ninguém. São os falantes da língua que reinventam a língua todos os dias.











domingo, 3 de dezembro de 2017

4292) Uma época estranha para ser judeu (3.12.2017





Associação Judaica de Polícia (Companhia das Letras, tradução de Luiz A. de Araújo, 2009; no original The Yiddish Policemen’s Union, 2007), ótimo livro de Michael Chabon, é um romance policial e é um romance de ficção científica (do subgênero “História Alternativa”), em partes iguais. O tipo de livro que agrada a quem gosta dos dois gêneros (como eu) e desagrada a quem gosta de apenas um e acha a presença dos elementos do outro uma intrusão incômoda.

É um roman noir ambientado no Alasca, e seu detetive é Meyer Landsmann, um policial de vida atribulada, convocado a esclarecer o assassinato de um desconhecido, num quarto do pulgueiro onde ele mesmo reside depois que se separou da mulher.

É um daqueles policiais whodunit que na verdade começam como uma espécie de whogotit: o primeiro trabalho do detetive, antes mesmo de pensar em quem teria sido o assassino, é saber quem foi a vítima. A descoberta dessa identidade começa a criar uma espiral cada vez mais larga de envolvimentos, interesses, ocultações, pressões políticas e o escambau.

É um roman noir meio chandleriano, pelo caráter meio cínico e meio angustiado do detetive, cujos palpites toda vez o precipitam em graves enrascadas.

Sem falar no talento de Chabon pra produzir diálogo preciso e cortante, símiles memoráveis (uma paisagem urbana decrépita é “tão bela quanto um ônibus visto por baixo”), descrições vívidas de ambiente ou de situação com dois ou três traços. Sem falar na presença do xadrez, muito mais decisiva aqui do que nos mistérios de Philip Marlowe.

E a ficção científica? Ah, esta é a parte mais divertida. O livro transcorre num presente alternativo cujo ponto de inflexão é o ano de 1948, quando depois da II Guerra Mundial as potências Aliadas tentaram criar, no território da Palestina, um Estado independente para Israel. Palestinos e árabes em geral reagiram com violência, política e militar. Judeus foram massacrados. Os Aliados recuaram. O Estado de Israel não chegou a existir.

O que aconteceu, então? “Eles continuam a fabricar judeus,” diz um personagem, “e ninguém fabrica um lugar onde possa alojá-los.” O Governo norte-americano ofereceu aos milhões de judeus que já estavam de malas prontas uma faixa de terra no Alaska, para que se estabelecessem. Criou-se ali, portanto, o distrito de Sitka – uma espécie de distrito federal para os judeus, administrado pelos americanos, com prazo de reversão depois de 60 anos. Mais ou menos como aconteceu com Hong-Kong, na China.

Este é o cenário do livro, e é o grande trunfo de Chabon (pronuncia-se SHEY-bon): o ambiente geográfico e humano, um estado israelense que em vez de deserto e sol escaldante tem uma paisagem de gelo, neve, frio glacial, todo mundo com capotes de pele e luvas. (Chabon afirma, numa nota, que a concessão desse terreno chegou a ser proposta a Roosevelt quando este era presidente dos EUA, mas não passou no Congresso.)

E os palestinos? Os propriamente ditos vão bem, obrigado, mas os desalojados da vez, no Alaska, são os índios Tinglit, que levaram um chega-pra-lá geopolítico para que Sitka pudesse receber aquele novo êxodo de fugitivos do Holocausto.

Chabon diz que imaginou essa sociedade ao folhear um livro intitulado Diga Isto em Iídiche, de Uriel e Beatrice Weinreich, um manual prático deste idioma dos judeus exilados e que (segundo ele) foi esnobado aqui no nosso mundo pelo Estado de Israel, o qual deu preferência ao hebraico. Diz Chabon (as traduções neste artigo são minhas):

Em que momento da história do mundo existiu um lugar com o que é sugerido no livro dos Weinreichs? Um lugar onde não apenas os médicos e os garçons e os motorneiros falam iídiche, mas também os balconistas de empresas aéreas, os agentes de viagem, os empregados de um cassino? Um lugar onde era possível alugar a casa de verão de gente que fala iídiche, assistir um filme em iídiche, ter sua ponte instalada por um dentista que fala iídiche?

A suposição de um mundo assim, que não existe, levou Chabon a imaginar sua Sitka cheia de condomínios classe-média e favelas, ruas cobertas de gelo, ventos cortantes, uma sucessão estranha de luz do dia e escuridão, e lugares como a rua Max Nordau, o Café Einstein (onde se reúnem os enxadristas), o Hotel Zamenhof. 

O uso do iídiche (principalmente o vocabulário específico de Sitka) misturado ao inglês dá ao livro uma aparência ligeiramente “laranja mecânica”. Há um glossário no final, mas em geral pelo contexto ficamos sabendo que papiros é cigarro, shoyfer é telefone celular, noz  é “tira”, shammes é detetive (como o “shamus” do inglês), sholem é pistola, e assim por diante.

The Yiddish Policemen’s Union ganhou o Prêmio Locus de ficção científica, pelo modo como utiliza, com rigor e imaginação, os pressupostos do subgênero da História Alternativa. É preciso imaginar um presente diferente do nosso, que começou a diferir dele num ponto específico da História.

O livro de Chabon deixa o leitor informado do essencial logo nos primeiros capítulos, para que não se perca; mas à medida que o crime vai sendo solucionado pelas tentativas canhestras mas idealistas de Meyer Landsmann, o lado policial vai se resolvendo e a ficção científica avulta, porque aos poucos a história deixa de se focar no cenário meio gótico e preto-e-branco de Sitka, e a revelar o que acontece (ou está para acontecer) no resto do mundo.

Para quem pertence à cultura judaica a história reserva certamente pequenos deleites que um estranho não percebe. Em todo caso, mais que essas vinhetas específicas vale a prosa de Chabon, e uma trama complexa onde se discute a condição judaica, os percalços de um casamento, a vinda do Messias, as gangues e milícias dos bairros étnicos, as relações hostis entre pai e filho, a impessoalidade da espionagem, os problemas éticos do aborto, as metáforas existenciais do xadrez, a vontade de Deus.

“Os milagres são um fardo para um messias,” diz alguém, “não são uma prova de que ele o seja. Milagres não provam coisíssima nenhuma, a não ser para aqueles cuja fé se compra barato.” Não é o caso do cético e torturado detetive Landsmann, para quem “o céu é um lugar kitsch, Deus é uma palavra, e a alma, na melhor das hipóteses, é a carga da nossa bateria.”







quinta-feira, 30 de novembro de 2017

4291) Chico Salles 1951-2017 (30.11.2017)




(foto de Chico Salles por Livio Campos)

As estrofes rimadas do Destino me fizeram estar em Sousa, no sertão da Paraíba, quando recebi a notícia da morte de Chico Salles.

Vi logo, nas redes sociais, que não fui o único a ser pego de surpresa. Chico, além de ser a animação em pessoa, e de fazer trinta coisas ao mesmo tempo, era mais novo do que eu. Mas essa chamada não é pelo número da senha. Ela cai do céu como raio em céu azul. E contra ela nada adianta – o único jeito de se conformar com isso é fazendo trinta coisas ao mesmo tempo.

Para os que não o conheceram: Chico Salles era paraibano de Sousa, radicado no Rio de Janeiro desde a juventude, e que atuou, com o mesmo brilho, como cordelista, sambista e forrozeiro. Três áreas que eu vivo bordejando por curiosidade, e foi o amor pelo cordel, pelo samba e pelo forró que nos aproximou e nos uniu.

Este é um ponto interessante. São três “países” tão próximos e de idioma tão parecido que era de se esperar que houvesse um tráfego maior, um comércio maior entre eles, e até um número maior de pessoas com dupla ou tripla cidadania. Mas eu conheço poucos cordelistas profissionais que tenham composto e gravado forró profissionalmente; samba, então, nem se fala.

Por que? Não sei. São três estéticas diferentes, mas não tão complexas ou tão especializadas quanto alguém pode imaginar vendo de longe. O que se requer de um indivíduo para uma delas pode ajudar em muito a praticar as outras.

A junção entre o samba e o forró tem várias pontes sólidas armadas por gente como Jackson do Pandeiro, Bezerra da Silva e tantos outros. Os versos de cordel, em suas modalidades básicas de sextilha e septilha, se encaixam sem esforço em ambos os ritmos. Mesmo considerando que tanto “samba” quanto “forró” incluem um milhão de variantes rítmicas e estruturais cada um; mas as estrofes e as linhas do cordel são básicas, intuitivas, maleáveis, e correspondem, a esta altura, a uma cadência assimilada pela fala coloquial brasileira. Podem ser usadas sem esforço nas letras dessas canções, sem que pareçam um enxerto artificial.

Chico Salles vivia me catequizando para entrar na Academia de Literatura de Cordel, da qual era membro, e eu, apesar de simpatizar com a instituição em si, e de ter lá muitos amigos, sempre refuguei. Por que? Não sei. Acho que não gosto muito da pompa e formalidade em que as academias se deleitam, aquele negócio de “peço a palavra”, “nobre colega”, “procedamos à leitura da ata”, “vamos compor a mesa”. Mesa que eu gosto é mesa de bar.

Como por exemplo a do Botero, no Mercado das Artes de Laranjeiras, onde Chico pontificava e onde provavelmente nos vimos pela última vez meses atrás,  quando Vladimir Carvalho veio mostrar no Rio seu documentário sobre Cícero Dias. Ali a conversa fluía da Paraíba para o cinema, do Rio para o cordel, para as artes plásticas, para o mundo.

Foi em torno do samba que me envolvi pela primeira vez com um trabalho de Chico, a coletânea Sérgio Samba Sampaio, que ele concebeu, gravou, e lançou em 2013.  Nossa geração foi muito marcada pela música do poeta de “Eu vou botar meu bloco na rua”, uma obra sempre surpreendente, uma espécie de pós-Tropicalismo injetado de Zona Norte (como a de Jards Macalé) e de cultura pop (como a de Jorge Mautner).


Chico fez uma seleção brilhante dos sambas de Sampaio, um material que ouvi pela primeira vez no carro dele, voltando de uma gravação na Tijuca, rumo ao Lamas, na companhia imprescindível de Edmar Oliveira.

Depois veio o CD de Chico sobre Rosil Cavalcanti em seu centenário, Rosil do Brasil (2015), um álbum à altura do homenageado. Foi em outra homenagem que pela única vez dividimos o palco, numa palestra-espetáculo na Biblioteca de Botafogo, no Rio, quando foi comemorado o centenário de Luiz Gonzaga, em 2013. Chico levou um trio nordestino, que tinha inclusive Durval na zabumba, e encerramos o debate botando todo mundo pra cantar xote e baião, num coro que incluiu até Beto Quirino.



Pois é, Chico – nossa academia acabou sendo mesmo, sem desdouro para as demais, o circuito que passa pelo Manolo, pelo Botero, pelo Lamas ou sei lá o que mais. Cordel, forró e samba aproximam quem gosta de verso, de música, da mesa comunal onde todos são iguais na convivência e únicos no talento.  Parabéns pela beleza da obra, que é o que fica de nós. Obrigado pela alegria dos momentos, que é o que fica de tudo.








segunda-feira, 27 de novembro de 2017

4290) Traduzir e retraduzir (27.11.2017)



No artigo cujo link vai aqui embaixo, Rachel Cooke medita sobre os caminhos da tradução literária. Ela começa se referindo ao romance de Françoise Sagan Bom dia, tristeza (“Bonjour, tristesse”), grande sucesso dos anos 1950.


Meus comentários neste artigo vão ficar engraçados porque ela questiona duas traduções diferentes, do francês para o inglês; e eu aqui vou retraduzir estas para o português, mas procurando ficar o mais próximo possível da forma de cada uma.

Rachel Cooke diz que amou o romance de F. Sagan desde a adolescência, e desde que que leu pela primeira vez a famosa frase de abertura do livro:

« Sur ce sentiment inconnu dont l'ennui, la douceur m'obsèdent, j'hésite à apposer le nom, le beau nom grave de tristesse. »

Uma frase que eu poderia, numa primeira tentativa, traduzir aproximadamente, procurando manter inclusive sua estrutura :

Sobre este sentimento desconhecido cujo tédio e cuja doçura me obcecam, eu hesito em apor o nome, o belo e grave nome de tristeza.

Meio desajeitadão, até porque “obcecam” é uma palavra meio opaca, a gente tem que pensar um segundo a mais para poder entender, e “apor” é um verbo que eu evito mais do que beco escuro de madrugada. Uma solução parcial destes dois problemas poderia ser, numa segunda tentativa:

Neste sentimento desconhecido cujo tédio e cuja doçura me inquietam, eu hesito em colocar o nome, o belo e grave nome de tristeza.

Ficou mais legível, mas resta a questão de fidelidade. Em todo caso, como diz um tradutor amigo meu sem papas na língua, “de graça, só vou até aí.”

Mas preciso lembrar que nossa amiga Rachel leu o livro em inglês. A tradução que ela diz que leu na adolescência foi a de Irene Ash, que abre o livro desta forma:

“A strange melancholy pervades me to which I hesitate to give the grave and beautiful name of sadness”

Uma estranha melancolia se apodera de mim, à qual eu hesito em dar o nome grave e belo de tristeza.

Traduzir essas palavrinhas que envolvem sentimentos é sempre uma coisa traiçoeira, porque nem sempre palavras parecidas, em dois idiomas, correspondem a todas as nuances do que a gente descreve como o mesmo sentimento.

Lembro-me de Gregory Rabassa, o tradutor norte-americano de Cien Años de Soledad de Garcia Márquez, explicando por que o “soledad” em castelhano virou “solitude” em inglês, e não “loneliness”.

No caso da frasezinha de Sagan, “melancolia” e “tristeza” já são duas esquinas onde é preciso parar e observar o trânsito com cuidado; mas é o tal do “pervades me” que me deixa encucado.

Que eu saiba, não temos em português (ou pelo menos no português do meu Dicionário Houaiss) o verbo “pervadir” e o adjetivo “pervasivo”; temos invadir e invasivo, que não são a mesma coisa. Invasivo é um exército ou uma cirurgia; pervasivo é um perfume ou uma lembrança.

Traduzi “pervades me” por “se apodera de mim”, mas isso contamina o texto de uma conotação diferente. A tristeza, no original algo indefinível que aos poucos impregna uma mente ou uma sensibilidade, passa a ser algo que “se apodera”, conquista, arrebata, adquire poder... Não é a mesma coisa, em termos exigentemente tradutórios.

Mas olhe... nem é esse o problema. O problema, para Rachel, é quando ela, querendo reconstituir seus sentimentos de juventude, pegou de novo o livro de Sagan – só que agora em outra tradução inglesa, a de Heather Lloyd. E descobriu que este novo livro começava assim:

This strange new feeling of mine, obsessing me by its sweet languor, is such that I am reluctant to dignify it with the fine, solemn name of ‘sadness’.

Mais uma vez tento arremedar passo a passo a ordem sintática do original, o que nos dá mais ou menos:

Este meu novo e estranho sentimento, que me obceca com sua doce languidez, é tal que me deixa relutante em dignificá-lo com o nome delicado e solene de tristeza.

Rachel Cooke recuou diante dessa frase como se o livro a tivesse mordido, e comenta: “Ela soava aos meus ouvidos como se tivesse sido escrita por um robô”.

A comparação entre essas opções – no contexto de uma simples frase, embora uma frase de abertura, uma frase com altas reponsabilidades – mostra: 1) a dificuldade de encontrar um equivalente exato ao que foi dito, e sugerido, e implicado, e referido no original; e 2) a quantidade de soluções diferentíssimas a que diferentes tradutores podem chegar e geralmente chegam.

Uma matéria que peguei agora na web, da revista Exame, assim reproduz a frase numa tradução em português, sem citar o tradutor:

Sobre esta estranha sensação de que o tédio, a tranquilidade me obcecam, hesito em colocar o nome, o belo nome sério da tristeza. 

Data venia do nobre colega autor dessa tentativa, eu ainda ficaria com a minha que foi exemplificada acima, e que copio de novo:

Neste sentimento desconhecido cujo tédio e cuja doçura me inquietam, eu hesito em colocar o nome, o belo e grave nome de tristeza.

E para quem ficou curioso a respeito do caso de Gregory Rabassa traduzindo Garcia Márquez, vai aqui o arrazoado dele, extraído do seu livro de memórias If This Be Treason (New York: New Directions, 2005):

(...) Chegando a soledad, temos um caso de ambiguidade bem semelhante. (...)  A palavra em espanhol tem o sentido do seu cognato em inglês, mas também carrega em si algo de “loneliness”, e admite tanto os sentimentos negativos quanto os positivos associados à condição de estar sozinho. Preferi solitude porque é um termo mais abrangente, e porque contém em si o gérmen de loneliness, se levado até os limites, como Billie Holliday já demonstrou de forma tão eloquente.

Ele se refere à gravação de “Solitude”, que pode ser escutada aqui:


Meu comentário sobre isto é que “loneliness” é uma palavra muito focada no indivíduo, na sensação de estar sozinho no mundo, mas “solitude” é mais amplo, dá uma escala social, coletiva e até cósmica à condição de um povo que está sozinho no mundo porque “não tem quem puna por ele” e vai ter que se virar sozinho mesmo.

Rabassa comenta que no caso de Cem Anos de Solidão ele não seguiu seu método habitual de pegar o livro “do zero” e ler à medida que traduzia. Ele já havia lido o livro, sem saber que pouco tempo depois seria contratado para traduzi-lo; e talvez ao iniciar a tradução, e pensar no título, ele já tivesse em mente a escala majestosa de tempo, destino e fatalidade em que Garcia Márquez envolve, ao longo de toda a narrativa, seus personagens e sua cidade imaginária.

Sobre o livro de Rabassa, falei mais demoradamente aqui:


Ele traduziu também Clarice Lispector, e quando a conheceu pessoalmente num Congresso literário disse: “É aquele tipo raro de pessoa que parece com Marlene Dietrich e escreve como Virginia Woolf.”