quarta-feira, 20 de setembro de 2017

4270) Palavras do dicionário paraibano (20.9.2017)



Quando falamos em linguajar regional, geralmente pensamos em palavras específicas de uma parte do Brasil . “Oxente” é nordestino, “bah” é gaúcho, “porreta” é baiano, “uai” é mineiro e assim por diante.

Outro aspecto, também muito comum, é que uma mesma palavra, de uso geral, seja dita com um significado num lugar, e com outro significado numa região diferente.

VEXAME
Acho que já falei nesta coluna sobre a palavra “vexame”. No Sudeste, ela é usada como sinônimo de “constrangimento, vergonha”: “Passei o maior vexame no restaurante porque meu cartão apareceu como bloqueado”. No Nordeste, usamos com mais frequência como sinônimo de “pressa”: “Deixe de vexame porque ainda falta meia hora para o banco fechar, vai dar tempo”.

MALA
Outro termo que às vezes gera malentendidos: “mala”. No Rio, um sujeito mala é um chato-de-galochas, um cara insuportável, sentido reforçado na fórmula intensificada: “Fulano é um mala sem alça”. Em Campina Grande, pelo menos, “mala” é sinônimo de “malandro, esperto”, e muitas vezes é usado como elogio: “O atacante foi muito mala, bateu a falta depressa e pegou a defesa deles aberta”.

EMBALAGEM
Veja outro termo interessante: “embalagem”. Na Paraíba, pelo menos, não é apenas sinônimo de “papel de embrulho, invólucro”, e sim de “embalo, impulso, momentum (massa x velocidade)”.  “O motorista até tentou frear, mas o caminhão vinha numa embalagem muito grande e acabou virando por cima do muro da casa.”  Também se usa “aproveitar a embalagem” no sentido figurado, equivalente a “aproveitar que está com a mão na massa”:   “Já que você está lavando a cozinha, aproveita a embalagem e lava também o banheiro”. Nesse sentido, quem e de fora deve interpretar a palavra como se fosse “embalo”.

ENGUIÇAR
No Brasil inteiro enguiçar é “dar defeito, pifar” – aplicado a máquinas e motores em geral. No Nordeste, enguiçar é passar andando por sobre o corpo ou as pernas estendidas de alguém que está sentado no chão.  Diz a superstição popular que quando isto acontece a pessoa que foi “enguiçada” não cresce mais. Acredita-se que para anular o efeito basta “desfazer” o ato, passar de trás para diante.  “--Ei!  Que história é essa de vir entrando e enguiçar a gente?  Pode voltar, e desenguiçar!” Também já vi ser atribuído ao ato de “enguiçar” o poder de cura contra mau-olhado.  “Esse menino só vive doente ultimamente!  Tá bom de alguém enguiçar ele, isso deve ser mau-olhado.”

E ali com um punhal
Para Adriano avançou
Mas Adriano ligeiro
Por cima dele saltou
Então quando o enguiçava
Mesmo no vão lhe cravou.
(Expedito Sebastião da Silva, folheto “Adriano e Joaninha”)


ARRUMAR
Diz-se no sentido de “arranjar, conseguir”.  "Me arruma aí um dinheiro, que eu deixei a carteira em casa".  "Vou falar com meu tio para ver se ele me arruma um emprego na Prefeitura."  "Ele foi passar as férias no Rio e acabou arrumando uma noiva."

CAÇAR
Parece ser um arcaísmo no sentido que descrevo aqui, o de “procurar”. É geralmente usado por gente iletrada ou gente bem do interior rural.  “Desde hoje que eu estou caçando meus óculos e não sei onde botei.”   “Fulano está caçando emprego desde o fim do ano passado.”   É linguagem bem característica de “gente do mato”. 

CARREGAR
Não é apenas “dar carga” (“Preciso lembrar de carregar o celular antes de sair”). Usa-se mais como “levar embora”, no mesmo sentido em que se usa dizer “Vá para o diabo que o carregue”: “Quem foi que carregou meu guarda-chuva, que eu deixei aqui junto da porta?”  « Cuidado com esses meninos brincando soltos na rua, um dia aparece um tarado e carrega um! » 

DOIDINHO
É o que chamam de “bobo” no Rio de Janeiro. No futebol, brincadeira em que um grupo de jogadores troca passes entre si, enquanto um deles, escolhido por sorteio, tenta apoderar-se da bola; quando o consegue, o “doidinho” passa a ser o jogador que perdeu a bola para ele.  Também se diz “zorra”.  Usa-se também como termo de comparação: “Eu não sei pra que escalaram Fulano como centroavante: a defesa dos caras passou o jogo todo fazendo doidinho com ele.”

RAZÃO
Usa-se muito no Nordeste como sinônimo exato de "arrogância, prepotência": "Ei, que razão é essa?  Quem é você pra vir me dar ordens?"  "Fulano é muito engraçado: a gente faz o trabalho todo, resolve todos os problemas, aí quando é depois ele chega, com a maior razão do mundo, botando defeito em tudo."  É mais frequente na expressão "cheio de razão": "Estava tudo muito tranquilo, mas de repente chegou um cara todo cheio de razão, dizendo que era amigo do dono do bar e que aquela mesa era dele."  

BONDADE
Assim como “razão” é usado com viés negativo, o mesmo se dá com “bondade” em certos contextos. Quando se quer dizer que um indivíduo é humilde, pacato, não quer ser melhor do que ninguém, diz-se: “Fulano me surpreendeu, é uma pessoa sem bondade, conversa com todo mundo, trata todo mundo como igual”. O sentido subjacente é que o sujeito não pretende ser “mais bom” do que ninguém.









sábado, 16 de setembro de 2017

4269) Os cabarés de Campina (16.9.2017)





O saite Retalhos Históricos de Campina Grande publicou uma matéria sobre o Cassino Eldorado e as diversas zonas do “baixo meretrício” de Campina Grande, em diferentes épocas da História.

Aqui:

Aliás, o uso desse termo é uma injustiça e uma imprecisão, porque o Eldorado era uma casa de “Alto Meretrício”, isso sim, inclusive com mulheres importadas – polacas, francesas... Como qualquer cidade brasileira, de Manaus a Londrina, que já viveu um boom econômico com presença de estrangeiros.

Se bem que as maiores atrações eram as beldades locais. Jackson do Pandeiro, que foi percussionista da orquestra do Cassino em sua juventude (“Ah, meus 18 anos!”), recordou muitos anos depois no clássico “Forró em Campina”:

Me lembro de Maria Pororoca,
de Josefa Triburtino e de Carminha Vilar.

(gravação original aqui:

O Eldorado está desabando; virou uma ruína fétida cercada por tapumes. É habitado por uma meia dúzia de malucos inofensivos, os quais são como os pássaros e os cavalos que, no conto de Jorge Luís Borges, não deixam morrer de todo as ruínas de um anfiteatro.

O propósito de estar escrevendo aqui é esta imagem, que peço emprestado ao pessoal do Retalhos Históricos, onde se vê o desenho do projeto do Cassino, e se dá como localização da famosa Rua Manuel Pereira de Araújo o “Bairro Chinez”. (Note-se a elegância do traçado, e as letras modernosas!)



Pois é, Campina também já teve a sua Chinatown.

Na época, chamavam de Manichula, nome que o saite corretamente relaciona com a invasão da Mandchúria em 1931.

É interessante que zonas de prostituição e favelas acabem recebendo nome de regiões em guerra, regiões em conflito. Em Campina, além da “Mandchúria”, tinha no meu tempo o “Vietnam”, uma fileira de botequins e barracas. Sua localização precisa no mapa urbanístico da cidade eu não lembro, porque nas poucas vezes em que fui lá “entrei bêbo, saí bêbo” (como diria a música gravada por Gilberto Gil). Mas meus companheiros de geração poderão esclarecer.

O famoso “Forró da Coréia” natalense, celebrado pelo grande Elino Julião, pode muito bem ter sido batizado pela guerra homônima. Foi isso que aconteceu com o bairro das Malvinas, em Campina, que ganhou esse nome por causa da guerra na Inglaterra com a Argentina.

Fico pensando quantas favelas haverá Brasil afora chamadas “Iraque” ou “Afeganistão”. Isso é tanto mais interessante porque, se não me engano, quem bota nome em favela não é a Prefeitura, é o povo que mora lá. E muitas vezes eles pegam justamente um “nome de lugar” que está em todas as bocas, está na TV, está no rádio. É o lugar famoso do momento, e é, tantas vezes, uma zona de guerra.

Voltando ao Eldorado e aos Retalhos: o saite nos fornece um link (que lhe peço emprestado aqui) para o valioso trabalho de Uelba Alexandre do Nascimento, Mandchúria: o bairro chinês de Campina Grande, que conta um pouco da história da vida noturna e das “mulheres de vida airada” em nossa cidade.


Entre outras coisas, o trabalho de Uelba puxa do fundo do baú outra lembrança musical, a dos famosos “banhos de domingo no Bodocongó”. Era uma diversão pouco inocente em que o pessoal ficava pelado para tibungar no Açude e depois ficar se divertindo pelas beiras. 

Marinês cantou a respeito desses folguedos no clássico “Saudades de Campina Grande” (1959), de Rosil Cavalcanti:

Tenho saudade de Campina Grande
da Lagoa dos Canários e do Zé Pinheiro
dos banhos do domingo no Bodocongó
de Zacarias Cotó, banho no Louzeiro...

(gravação original:

A canção de Rosil celebra um tempo que minha geração não alcançou, e decifrar cada referência dessa longa letra era um passatempo nosso em mesa de bar. De minha parte, sei que “Zacarias Cotó” era Zacarias Ribeiro, jogador e fundador do Treze.


(Zacarias é o quarto, em pé, da esquerda para a direita)

Tem também esse trecho, na mesma canção:

Ainda recordo o Zé Iracema,
centrefó do Paulistano nos dias de jogo
com o Treze, o velho Galo lá da Borborema,
que jamais teve um problema, pegava fogo.

Foi com certa surpresa que vi a descobrir, depois de adulto, que “Zé Iracema” era o sociólogo José Lopes de Andrade, que foi meu professor na UFPB e era pai do meu parceiro musical Zeca Lopes, ex-guitarrista d’Os Falcões.



Alguém virá perguntar que importância tem, e que interesse tem, ficar rememorando a história dos cabarés e das prostitutas do passado. Não existe algo mais nobre para recordar, da história de Campina?

O que ele talvez não saiba é que a História é um tecido onde tudo está amarrado a tudo, e que quem pega “um fio só” arrisca-se a puxar o pano inteiro.

A história dos cabarés não pode ser dissociada da história dos médicos, advogados e políticos que os frequentavam; a história das prostitutas não está dissociada da história dos músicos que com elas se divertiram ou da história dos adolescentes (futuros “cidadãos do bem”) que com elas tiveram acesso ao primeiro e último dos mistérios: o mistério da vida real.







quarta-feira, 13 de setembro de 2017

4268) As aventuras de João Furiba (13.9.2017)





Eu estava no meio de uma viagem com um grupo de cantadores, e tivemos que pernoitar no Recife para prosseguir no dia seguinte. Estava todo mundo exausto depois de horas de ônibus na estrada. Eles estavam fazendo cantorias e eu acompanhando, assessorando, peruando, compartilhando a embriaguez do verso.

Fomos pernoitar em Olinda, nos alojamentos da Casa das Crianças, a fundação de Giuseppe Baccaro, que fornecia quartos gratuitos para violeiros de passagem.

Chegamos lá por volta das onze da noite. Não era tão cedo que permitisse descansar um pouco e depois ir pra farra, nem era tão tarde que a farra ficasse inviável. Decidimos deixar ali as malas e as violas, e sair para beber.

Não lembro exatamente quem eram os outros do grupo; talvez Oliveira de Panelas, Sebastião Dias, Bandeira Sobrinho... E o protagonista da história, João Furiba, um dos cantadores mais queridos e mais engraçados de sua geração. Está hoje com 90-e-bote-força.

Baixinho, magrinho, meio feioso, cheio de dentes de ouro, Furiba tinha a fama de conquistador inveterado por onde passava. Nas cantorias apregoava riquezas babilônicas:

Sofri um pequeno atraso
porque tive de emprestar
para o presidente Reagan
minha Ferrari sem par,
só fiquei com o Rolls Royce
que anda mais devagar.

Nessa noite, Furiba estava mais cansado do que os outros e resolveu não sair.

– Não, Deus me livre. Estou morto. Vão vocês se divertir, eu vou é dormir um sono.

Como estávamos chegando ali meio de supetão, foi preciso combinar com o poeta Palito, que era meio administrador das coisas, o local de dormida para todo mundo. Ele indicou nossos quartos, e foi mostrar o de Furiba.

– Furiba, quem estava nesse quarto era Zé Gaspar, mas ele foi pra uma cantoria e só deve voltar amanhã. Afaste as coisas dele, e durma.

Os quartos da Casa das Crianças eram pequenos, simples. Furiba levou para lá sua maleta, a viola e uma melancia que tinha comprado para levar pra casa. Despediu-se de nós e foi dormir. Deixamos nossas bagagens nos outros quartos e fomos em busca de algum lugar com comida quente e cerveja gelada.

Fomos parar num daqueles botequins de calçada, de frente pro mar. Bebemos um monte de cervejas e comemos uma carne de sol que pra cortar foi preciso pedir uma serra de pão. Lá pelas duas da manhã voltamos para a Casa das Crianças.

Assim que passamos do portão vimos no escuro uns vultos que tinham chegado pouco antes de nós. Iam mais à frente nas alamedas, rodeando os gramados e subindo a encosta rumo aos quartos. Pelas vozes, e pelos vultos, quando chegamos mais perto, reconheci alguns deles.

No meio vinha Zé Gaspar. Que àquela altura já estava batendo com força na porta do quarto.

– Ei, caba safado, esse quarto é meu! Sai daí, misera!

Fomos chegando e tentando explicar que quem estava ali era Furiba. Foi pior.

– Esse mentiroso safado? Ele tá pensando o que? – Zé Gaspar, visivelmente, tinha tomado umas-e-outras e devia estar ansioso para desabar no colchão. – Bora, nojento! – E tome murro na porta – Abre essa porra aí, seu corno, esse quarto é meu!

Com a minha vocação para Itamaraty-de-cantador, eu me interpus:

– Calma, Zé, vamos chamar ele e a gente resolve isso sem problema.

Zé Gaspar é um caboclo entroncado, musculoso, daquele tipo que desatola sozinho um carro de boi. Ele me encarou furioso:

– Isso é BT? O que diabo você tá fazendo em Olinda?

– O mesmo que você. – Bati na porta. – Furiba véio, abra aí pra gente conversar.

– Eu não dialogo com trogloditas – veio a voz lá de dentro, magrinha de medo.

– Furiba, o quarto é dele, ele quer as coisas dele. Qualquer coisa você passa pro meu, e eu vou embora. Eu tenho amigos que moram aqui perto.

– Sai logo, seu corno! – bradou Zé Gaspar em nova investida, me arremessando de encontro à porta. Bandeira Sobrinho e Oliveira tiveram dificuldade para contê-lo. – Eu tenho dinheiro guardado aí! Se tiver faltando um cruzeiro, o diabo vai se soltar.

A essa altura nem sei se era cruzeiro naquele tempo, mas tanto faz. Furiba retrucou, na segurança da porta fechada:

– Já me chamou de corno e de ladrão. Desse jeito eu vou acabar me aborrecendo.

Zé Gaspar tinha se soltado dos outros e bufava, olhando para os lados, como quem está reunindo forças para invadir Tróia. Bandeira Sobrinho tirou os óculos, soprou neles, botou de novo, alisou o bigode e disse:

– Eu sabia que isso não ia dar certo.

Nesse momento a luz do quarto se acendeu, a porta se abriu, e no umbral apareceu João Furiba, no pleno vigor do seu metro-e-sessenta e de seus 50 quilos, nu com exceção de uma Zorba verde-limão e meio frouxa, empunhando um canivete em riste e proclamando:

– A honra se lava com sangue.

Zé Gaspar partiu pra cima dele como um miúra, e nós todos nos engalfinhamos, rodamos levantando poeira e de repente alguém deu uma rasteira em alguém e o bolo de gente rolou pelo chão por entre sopapos e impropérios. Eu senti uma dor no cotovelo, me despreguei da confusão e fiquei de pé.

Eles foram se soltando e se levantando. Ergui a mão: era sangue. A queda tinha arrancado um samboque do meu cotovelo. Bandeira me estendeu um lenço:

– Tome, poeta, pra estancar.

– Vou estragar teu lenço – disse eu.

– Deixa pra lá. Já tá cheio de catarro mesmo...

Apliquei o lenço no ferimento, mas a essa altura Palito já havia chegado providencialmente com uma solução, e até Zé Gaspar estava rindo, enquanto Furiba permanecia na porta em plena Zorba e de canivete em punho, e dizendo:

– Não mexa comigo não, que eu sou perigoso.

A noite acabou nos levando de volta aos bares, para baixar a adrenalina da briga.  Paramos nos Quatro Cantos, onde tinha numa calçada uma turma conhecida tocando violão, era Don Tronxo, Romero Mamata, aquele pessoal que vivia por ali. Emendamos as mesas e mais tarde eu já estava bebo, com o lenço amarrado no cotovelo, fazendo sextilhas com Zé Gaspar, e desta noite me sobrou essa pérola:

Tem certos dias na vida
que nada-nada dá certo
a cisterna do desastre
ficou de registro aberto
quando alguém me dá bom dia
eu digo: saia de perto.













sábado, 9 de setembro de 2017

4267) A arte de comprimir a narração (9.9.2017)




O filme Acossado (A bout de souffle) de Jean-Luc Godard (1959), fez algumas pequenas revoluções na linguagem do cinema. Godard, nesse filme, mostrou Jean-Paul Belmondo num quarto de hotel, conversando ao telefone, e cortou em seguida para o mesmo Belmondo caminhando pelas ruas de Paris. 

No cinema dos anos 1950 era de praxe mostrar os estágios intermediários. Para mostrar que ele saiu para a rua, por exemplo, seria preciso mostrar Belmondo falando ao telefone, depois vestindo o paletó, depois trancando a porta, descendo as escadas, chegando à rua.  É sem dúvida uma maneira mais fluida de mostrar as ações, com transições mais suaves, quase imperceptíveis. 

Era assim que se narrava, mas Godard, como qualquer artista que começa a criar um estilo próprio, estava buscando uma maneira diferente de dizer. 

Comprimir a narrativa (no cinema, na literatura, no teatro, nos quadrinhos) envolve uma avaliação da parte do narrador. Que nível de familiaridade tem o público com esse modo de narrar?  Está cansado de uma narrativa “mastigada” demais?  Receberia com prazer o desafio de uma narração mais rápida?  Seria capaz de preencher por conta própria as lacunas, compreendendo sem muito esforço o que foi deixado de fora? 

Hoje em dia, a narrativa se acelerou tanto que praticamente se pode cortar de qualquer coisa para qualquer coisa. O público, principalmente o público jovem, faz essas conexões sem muito esforço.

A compressão serve às vezes apenas para simplificar e enxugar a narrativa, mas pode também provocar um efeito estético, aumentando a imprevisibilidade (a “dificuldade”) do texto para intensificar seu significado.  Veja-se o famoso parágrafo inicial do conto “A Loteria em Babilônia” de Jorge Luís Borges:

Como todos os homens em Babilônia, fui procônsul; como todos, escravo; também conheci a onipotência, o opróbrio, os cárceres.  Olhem: à minha mão direita falta-lhe o indicador.  Olhem: por este rasgão da capa vê-se em meu estômago uma tatuagem vermelha: é o segundo símbolo, Beth.  Esta letra, nas noites de lua cheia, confere-me poder sobre os homens cuja marca é Ghimel, mas me sujeita aos de Aleph, que nas noites sem lua devem obediência aos de Ghimel.  No crepúsculo do amanhecer, num sótão, jugulei ante uma pedra negra touros sagrados.  Durante um ano da lua, fui declarado invisível: gritava e não me respondiam, roubava o pão e não me decapitavam.  Conheci o que ignoram os gregos: a incerteza.  Numa câmara de bronze, diante do lenço silencioso do estrangulador, a esperança me foi fiel; no rio dos deleites, o pânico.  Heráclides Pôntico refere com admiração que Pitágoras lembrava-se de ter sido Pirro e antes Euforbo e antes ainda algum outro mortal; para recordar vicissitudes análogas não preciso recorrer à morte, nem mesmo à impostura.

Quem lê o conto pela primeira vez, pode achar esta abertura desnorteante. Lido o conto e relida esta abertura, ela fica clara.  A Babilônia de Borges é um país regido por uma misteriosa Companhia, a qual promove uma loteria cujos prêmios são interferências na vida dos cidadãos.  Em vez de meros prêmios em dinheiro, sorteiam-se destinos: o indivíduo premiado é obrigado a praticar ações absurdas ou inexplicáveis, cometer crimes, tomar parte em alguma complexa encenação coletiva. 

Relido, o primeiro parágrafo mostra a estonteante variedade de situações que um único homem pode experimentar em sua vida, por obra e graça dos sorteios da Loteria. 

Uma prosa assim, comprimida ao máximo, tende em alguns casos a se aproximar da poesia, porque se transforma numa justaposição de elementos díspares, deixando que as conexões entre eles sejam preenchidas pelo próprio leitor. 

A compressão narrativa produz um grande um efeito quando força o leitor a seguir o ritmo imposto pelo autor, seja retardando, seja acelerando esse ritmo. 

É famoso o interlúdio criado por Flaubert no meio do romance Educação Sentimental.  Ele faz o protagonista Frédéric Moreau testemunhar um episódio sangrento durante um golpe de Estado, encerra o capítulo, e diz, abrindo o capítulo seguinte:

Ele viajou. 
Conheceu a melancolia dos barcos a vapor, o frio despertar na barraca, o tédio das paisagens e das ruínas, o amargor das amizades interrompidas. 
Ele voltou. 
Frequentou a sociedade e teve outras amantes.  Todavia a lembrança sempre presente da primeira as tornava insípidas; e ademais a violência do desejo, a própria flor do sentimento, se perdera.

Anos da vida do personagem são resumidos em poucas linhas, como se o autor dissesse que a única coisa importante que lhe sucedeu naquela época é o que vem nas linhas seguintes: o reencontro de Frédéric com a mulher que amara no passado.

O conto “Sequência” de Guimarães Rosa (em Primeiras estórias) conta a fuga de uma vaca tresmalhada que tenta voltar para sua fazenda de origem.  Um rapaz monta a cavalo e vai à sua procura.  Durante todo o restante do conto, ele a persegue, entretido com aquela “involuntária aventura”.  Fuga e perseguição são narradas com minúcias e detalhes pitorescos, como sempre ocorre nos contos de Rosa.

No final, ao anoitecer, a vaca chega à fazenda, com o rapaz atrás dela. Ele avista as luzes acesas da casa grande, onde mora um tal Major Quitério.  Apeia-se.  Sobe a escada, e ali é recebido, “bem-chegado”.

A uma roda de pessoas.  Às quatro moças da casa.  A uma delas, a segunda.  Era alta, alva, amável.  Ela se desescondia dele.  Inesperavam-se?  Da vaca, ele a ela diria: “É sua.”  Suas duas almas se transformavam?  E tudo à razão do ser.  No mundo nem há parvoíces: o mel do maravilhoso, vindo a tais horas de estórias, o anel dos maravilhados. Amavam-se. E a vaca-vitória, em seus ondes, por seus passos. 

O conto se encerra assim: comprimindo neste parágrafo o encontro, a paixão à primeira vista, o casamento entre os jovens, conduzidos um ao outro por uma vaca erradia.  Rosa dilata o tempo da perseguição, aumentando o suspense por algo que não temos idéia do que será.  E contrai todo o tempo futuro do casal em poucas linhas, aumentando a surpresa e o impacto do desfecho.

Dashiell Hammett, em Seara Vermelha (“Red Harvest”) cria um curioso efeito de metalinguagem quando o narrador da história, o detetive conhecido como Continental Op, dialoga com outro agente que ele diz ser um cara de poucas palavras. Eles estão investigando juntos alguns dos chefões da bandidagem de uma cidade do interior. Diz ele:

            Um quarteirão mais adiante encontrei Dick Foley, ao volante de um Buick alugado. Entrei no carro e perguntei:
            – O que há?
            – Peguei às duas. Saiu três e meia. Escritório de Willsson. Mickey. Cinco, casa. Movimento grande. Finquei pé. Saí três, e sete. Nada ainda.
            Isto era para me informar que ele tinha começado a vigiar Lew Yard às duas da tarde anterior; que o seguira até o escritório de Willsson às três e meia; onde Mickey estava seguindo Pete; depois seguiu Yard quando este saiu às cinco, voltando para casa; viu muita gente entrando e saindo da casa, mas não seguiu ninguém; vigiou a casa até as três da madrugada, e depois de dormir voltou às sete; e que desde então nada mais acontecera.

A compressão do texto funciona na medida em que o leitor é capaz de preencher por conta própria as lacunas de informação.


(Uma versão diferente deste artigo foi publicada na revista Língua Portuguesa, da Editora Segmento (São Paulo), em outubro de 2009.)










segunda-feira, 4 de setembro de 2017

4266) O Caminhante-na-Terra (4.9.2017)



A literatura (e seus desdobramentos, entre eles o cinema, os quadrinhos, a filosofia) funciona à base de repetições e variantes, trazendo sempre uma mistura do que é conhecido e nos proporciona segurança, e do que é desconhecido e nos desperta a curiosidade.

É assim com certos personagens ou tipos recorrentes que fazem parte da nossa memória cultural, porque para onde a gente se vire dá de cara com uma variante deles.

Eu estava relendo um dos livros problemáticos de Philip K. Dick, A Maze of Death (1970). Digo problemáticos porque tem uma história fascinante, mas talvez seja um dos livros escritos mais descuidadamente pelo nosso grande Maluco Beleza californiano.

Em todo caso, essa aventura dark e sinistra (que já foi chamada pela crítica de “O Caso dos Dez Negrinhos no espaço interplanetário”) é uma das tentativas mais interessantes de Dick em produzir uma religião artificial.

Tanto quanto o “mercerismo” de Do Androids Dream of Electric Sheep (1968), os pesadelos fundamentalistas em Eye in the Sky (1957) e todas as fantasias cósmico-teológicas da fase final de sua vida, começando com The Divine Invasion e Valis (ambos de 1981).



Em A Maze of Death, um grupo de colonistas terrestres num planeta remoto professa uma religião própria baseada num livro sagrado chamado “The Book of Specktowsky”, relativo ao filósofo que a concebeu.

O humor californiano de PKD sempre dilui qualquer pomposidade possível em seus conceitos, de modo que esse equivalente da Bíblia ou do Corão intitula-se na verdade Como Eu Me Ergui Dentre Os Mortos Em Minhas Horas Vagas e Você Também Pode, um saboroso tempero de ironia para um livro que traz a Verdade Suprema.



A religião pregada por Specktowsky tem, é claro, pontos em comum com o cristianismo, e postula a existência de quatro manifestações da Divindade: o Mentufaturador, o Intercessor, o Caminhante na Terra e o Destruidor das Formas. No momento, é o terceiro deles que me interessa.

O Caminhante na Terra (“the Walker-on-Earth”) é uma entidade que se materializa e vem em socorro dos humanos em momentos de necessidade. Por exemplo, no capítulo 2 ele surge como “um homem, ou pelo menos algo como um homem. Um vulto vestindo um robe solto, com cabelos longos caindo sobre seus ombros escuros e maciços.” Aborda um personagem prestes a partir num voo interplanetário e lhe diz que não pegue aquela nave, que está com defeito, pegue outra.

O Caminhante vai embora do mesmo jeito que aparece. Comparado à mitologia cristã ele se assemelha mais a um anjo do que a um dos membros da Santíssima Trindade. Os anjos nos guardam, nos aconselham, nos dão avisos, evitam que façamos bobagem e assim por diante.

No entanto, o modo elusivo e arredio como ele se comporta lembra outro tipo de caminhante: o Judeu Errante, que escarneceu de Cristo e foi condenado a caminhar sem paz pelo mundo afora, até o dia do Juízo Final.



Caminhar pelo mundo significa entrar em contato com Deus-e-o-Mundo. O Judeu Errante não é um eremita escondido no fundo de uma loca. Ele caminha, ele se mistura, mas sem nunca ter um contato real com quem quer que seja.

Como disse Castro Alves:

Viu povos de mil climas, viu mil raças,
e não pôde, entre tantas populaças,
beijar uma só mão...
(“Ahasverus e o Gênio”, 1868)

O Caminhante-na-Terra de PKD parece ter um pouco disso. Ajuda a todo mundo, mas não pode se aproximar de ninguém. Meia hora, uma hora de conversa, e ele desaparece para sempre.

As sincronicidades da Literatura Comparada me levaram a no mesmo dia enfiar no draive um DVD de um filme que eu não via há décadas, Queimada (“Burn!”, 1969). É um filme bastante glauberrochiano de Gillo Pontecorvo, descrevendo de forma até didática certos mecanismos do colonialismo no século 19, especificamente o modo como a Inglaterra financia secretamente a independência de um pequeno país negro do Caribe, apenas para tirá-lo de baixo da asa de Portugal e trazê-lo para a sua.



Quem se encarrega disso é Marlon Brando, com uma improvável peruca loura mas um à-vontade notável no papel desse agente provocador que manipula ditadores, revolucionários e capitalistas na mesma medida em que os serve. Ele é um aventureiro, um indivíduo de têmpera superior mas de personalidade instável; eu o compararia a Richard Francis Burton e a T. E. Lawrence, o da Arábia.



Acontece que no filme o personagem de Brando se chama “Walker”. Dizem que é em homenagem a um personagem real, William Walker, que andou aprontando naquela época pela Nicarágua.

Não havia como não ver no Walker de Brando uma espécie de Judeu Errante, destinado a caminhar de país em país a soldo de Sua Majestade Britânica, erguendo e derrubando líderes populares, interferindo, seduzindo, doutrinando, armando, financiando, e depois sumindo de vez para ir fazer o mesmo em outro grotão perdido do Terceiro Mundo.

Como outro Walker: aquele encarnado pelo Fantasma, de Lee Falk, um dos ídolos meio esquecidos da minha infância. The Phantom vive também no meio de pigmeus africanos, como um colonialista qualquer, trazendo-lhes os benefícios da inserção no Mercado.

Ele veste uma dessas roupas colantes e coloridas de super-herói dos quadrinhos, mas quando visita a civilização o faz de chapéu, óculos e sobretudo – e se faz chamar de “Mr. Walker”. Porque ele é no fundo o Fantasma-Que-Anda, “the Ghost-Who-Walks”.  Imortal, como o Judeu Errante.



Outro herói (este conheço pouco) que se aproxima dessa equação “judeu errante / herói mascarado” é o Phantom Stranger (DC/Vertigo).


É interessante o paralelismo desse arquétipo. Ele é uma divindade que desce até os mortais para interferir na sua vida, e é um europeu que desce até o Terceiro Mundo para fazer o mesmo (sempre de forma ambígua). E é sempre alguém de fora, um outsider, que não pertence àquele lugar. (O Fantasma de Lee Falk tem domicílio fixo numa selva, como Tarzan; não vive errando de mundo afora; mas continua a ser, sempre, um “despaisado” alguém sem pátria, alguém de fora.)

Lévi Strauss dizia (com outras palavras) que um mito não corresponde a nenhuma de suas versões, mas aos traços que se reforçam quando todas as versões são superpostas. Os arquétipos literários têm essa mesma característica.

Quem é o Caminhante-na-Terra? Não sabemos (o autor não o revela), mas ele nos parece familiar porque tem traços do Fantasma de Lee Falk e de Lawrence da Arábia; de um anjo desterrado e de um agente-provocador branco em continente negro; de alguém que não morre mas que nunca viveu; de Richard Francis Burton e do judeu errante de Castro Alves, “invejado, a invejar os invejosos”.








quinta-feira, 31 de agosto de 2017

4265) O roteiro e a história (31.8.2017)




("A lista de Schindler")


Um artigo que recente de Tim Long discute uma das normas de roteiro que eu vejo apregoadas com mais frequência. E apregoada com razão, digo logo antes de combatê-la.

É aquela norma que diz mais ou menos: “Só escreva no roteiro o que pode aparecer na tela.”  Só escreva o que pode ser captado por uma câmera e um microfone, ou seja, o que pode depois ser visto e ouvido pelo espectador.

Uma defesa bem humorada e bem fundamentada desse princípio é feita por Hugo Moss no seu esguio e indispensável Como formatar o seu roteiro (Rio: Aeroplano, 2002, 32 págs.). Diz ele:

Outro erro comum, além de (d)escrever demais, é incluir fatos que dificilmente são possíveis de capturar com a informação disponível na tela. Ex.:

EXT. ESTRADA – DIA
Um carro desce uma estrada em direção ao Rio de Janeiro. Dentro, um grupo de músicos, cujo cantor é um homem escuro com cabelos curtos, como um punk do Terceiro Mundo. É Jorge Salgado, que está chegando ao Rio para fazer dois shows gratuitos na praia da Ipanema.

Evidentemente, vendo só um carro descendo uma estrada, é difícil imaginar como a audiência poderá saber detalhes sobre os ocupantes, muito menos adivinhar o motivo específico da viagem. Essas informações teriam que ser inseridas na história de uma outra forma (visual), se é que são fundamentais, e se não, serem descartadas.

Em momentos assim, nós, roteiristas, nos deixamos arrebatar pela embriaguez narrativa e começamos a contar a história com palavras, como se fosse um romance, ao invés de simplesmente descrever uma sucessão de imagens e ações visuais.

Esses aspectos subjetivos contaminam incontáveis roteiros, uns mais, outros menos, mas sempre deixando que o modo literário de narrar vaze para dentro do roteiro, que não admite muitos dos seus recursos.

O próprio Hugo Moss se oferece logo adiante para pagar um almoço para quem reconhecer o filme em cujo roteiro lê-se esta indicação:

Geraldo bota o chapéu, faz um movimento imperceptível com a cabeça e sai.

Filmar um movimento imperceptível é um dilema para um diretor (pra nem falar no pobre do ator que precisa executar esse paradoxo quântico).

São literatices, e nenhum de nós está a salvo delas. E não pertencem apenas ao cinema; infiltram-se em outras formas de escrita, inclusive no teatro. Wilson Martins, criticando o teatro brasileiro oitocentista, registra o heroísmo requerido ao ator que numa peça qualquer vê-se solicitado a obedecer a esta rubrica: “Fulano (empalidecendo) - ...

É o cacoete do romance, de um outro tipo de narração infiltrando-se onde não é chamado.

Mas... nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Tendo dado razão a Hugo Moss, num extremo, preciso dá-la igualmente, no extremo oposto, a Tim Loing, neste texto no saite No Film School:


Long começa logo dizendo que “não existe uma única maneira correta de produzir um roteiro”, e que tudo que funciona pode ser utilizado, e que muitos roteiristas deixam-se dominar a tal ponto pelo conceito de “regras” que não conseguem pensar fora delas.

A maioria das regras da narrativa cinematográfica surgiu num certo momento através de artistas que estavam tentando se livrar das regras anteriores.

Long questiona a máxima de que “só podemos escrever o que pode ser visto ou filmado”, e cita o recho de roteiro abaixo, de Steven Zaillian para A Lista de Schindler:

EXT. – BALCÃO DE GOETH – MOMENTOS DEPOIS – MANHÃ
Goeth sai ao balcão vestindo apenas camiseta e calção, e dali fica contemplando o campo de trabalhos forçados, seu campo de trabalhos forçados, seu reino. Satisfeito com essa visão, até um pouco espantado, ele faz lembrar Schindler olhando para seu próprio reino, sua fábrica, tal como ele gosta de fazer através de sua parede de vidro.

A vida é maravilhosa. Goeth empunha um rifle.

De minha parte, acho necessário que o autor do roteiro informe, ao diretor, elenco e equipe, os sentimentos que devem existir por trás de cada cena. Não creio que isso seja a cobrança de uma nuance impossível de filmar; nem que seja uma exigência abstrata que o ator não tem como cumprir. Existe um pensamento, um clima, uma emoção subjacente à cena. Cabe aos membros da equipe que leem o roteiro encontrar um modo de passar isto para o espectador, cada qual com seus recursos.

Outro exemplo dele, desta vez de Barry Jenkins, no premiado Moonlight:

KEVIN
Onde você vai dormir esta noite?

Nenhuma resposta de Black. Nada, nem palavras, nem gestos, nada brota dele nesse momento.

Black devia estar dirigindo, devia estar com os olhos na estrada, prestando atenção nos outros carros, nas coisas que passam. Em vez disso, seus olhos estão em Kevin, encarando de volta o homem que está perdido nessa pergunta, e o espaço entre a pergunta e esse instante é a resposta mais clara.

Kevin afasta o olhar, volta a olhar pela janela. A terra acabou de se mexer. Os dois homens sentiram.

Eu imagino que dois bons atores, lendo isto, sejam capazes de absorver a tensão e as hesitações psicológicas de uma curta cena como esta – e transpor para a tela alguma coisa do que está aí. Metáforas como “a terra se mexeu” provavelmente não virão a ser percebidas jamais pelo público, mas os atores podem com sua atitude, suas expressões, transmitir para o espectador algo igualmente ominoso, igualmente crucial.

Long nos lembra que os primeiros leitores de um roteiro não são os atores que vão interpretá-lo, e sim pessoas para quem é preciso dar uma idéia do tipo de filme que está sendo proposto. São agentes, empresários, executivos de desenvolvimento de projetos, pessoas por cujas mãos passam as primeiras propostas de um roteiro.

Long se refere em seu artigo a “spec writers, spec scripts”: roteiro especulativos, digamos, aqueles que são oferecidos a um estúdio, em vez de serem encomendados por este. Um roteiro não encomendado, oferecido por um profissional de fora, está provavelmente contando uma história que os destinatários desconhecem. É preciso deixar claro que história é essa.

Tim Long remete o leitor a outro artigo:


Ali, ele diz:

Para que seu roteiro se transforme num filme, as pessoas têm que primeiro gostar dele como uma história.

Esta primeira versão, que irá circular por muitas salas e muitas escrivaninhas e muitos monitores de gente desconhecida (sem o autor do lado para tirar dúvidas) precisa dizer com clareza suficiente tudo a que se propõe. Claro que a estrutura narrativa tem que ser de filme, a visualização tem que ser de filme. Mas motivações, intenções, nuances, reações emocionais, têm que vir bem explicadas. O bom roteiro indica o efeito a ser obtido, e o modo de obtê-lo.

E se um ator ou atriz geralmente não gosta de receber instruções do roteirista sobre como reagir em tal ou tal momento, ele ou ela gosta de saber o que se pede de seu personagem, que motivação íntima, que subtexto, que amálgama de influências e pressões, para que possam criar a cena do personagem, com seus próprios recursos.











segunda-feira, 28 de agosto de 2017

4264) Coincidências de leitura (28.8.2017)




(ilustração: Ben Shahn)

De vez em quando comento aqui algumas coincidências que testemunho, ou que acontecem diretamente comigo.

Ao viajar para São Paulo, dias atrás, peguei dois livros, pequenos e leves pra não pesar na mochila. Um era o Portrait of the Artist as a Young Man de James Joyce, que comecei a ler tempos atrás, estava gostando, mas tive que largar por alguma razão. O outro foi A Hipótese Humana, romance policial de Alberto Mussa, lançado recentemente, presente do meu parceiro musical Alfredo Del-Penho, da “Barca dos Corações Partidos”.

O livro de Joyce descreve em seus primeiros capítulos a vida escolar do garoto Stephen Dedalus num colégio de jesuítas irlandeses: os estudos, os castigos, as peraltices. A certa altura, Stephen está comentando os rabiscos feitos pelos estudantes nas portas e nas paredes do banheiro do colégio, e diz:

And on the wall of another closet there was written in backhand in beautiful writing:
Julius Caesar wrote The Calico Belly.

Joyce tem um cacoete pelo trocadilho que chega a ser auto-punitivo, de modo que cada alusão desse tipo faz a gente parar para saber qual é o jogo de palavras que ele está fazendo.

“Calico” é um tecido barato como chita ou morim.  Uma coisa bem paraibana, aliás. É muito frequente a gente ler num livro a expressão “calico dress”, “vestido de chita”. Bob Dylan (“Sarah”, no álbum Desire) descreve sua musa como “esfinge escorpiana em vestido de chita”.

“Belly” é barriga. Barriga de chita? Talvez não, porque o dicionário me dá “calico” como sendo também algo “malhado, rajado, mosqueado”. Barriga rajada, listrada? Será alguma patifaria irlandesa?

Enfim – o que saltava aos olhos era que havia uma menção a Júlio César, e logo me lembrei que César era autor de um livro onde descrevia uma das suas guerras, e guerra em latim é naquela faixa de “bellus, belli, etc”.

Dito e feito: o livro de César é Commentarii de Bello Gallico, “Comentários sobre a Guerra na Gália”. E ao checar a tradução de Caetano W. Galindo para o livro de Joyce (valeu, Google Books), vi que ele recria assim o calembur joyciano:

E na parede do outro cubículo tinha uma coisa escrita com uma letra inclinada: Julio César escreveu Que Belo Fálico.

Muito bem. Na volta da viagem estou adentrando o romance de Alberto Mussa e chego à página 33. Seu detetive, Tito Gualberto, está em casa dando aulas quando recebe um recado urgente para ir à casa de alguém. O livro é narrado no presente do indicativo, e ele conta:

É quando a portuguesa grita, embaixo, dizendo estar na porta um moleque, mensageiro do coronel Francisco Eugênio.
Separa, então, um trecho do De bello gallico, para que o aluno traduza; e desce.

Sim, nosso detetive ganha vida (o ano é 1854) dando aulas particulares de latim, e o livro de Júlio César me cai ao colo pela segunda vez em dois dias, citado num romance irlandês de 1916 e num romance brasileiro de 2017.

Veja-se que em ambos os casos o livro é citado em contexto e não destoa. Na Wikipedia, aliás, sou informado de que a obra de César, pela limpidez e elegância do estilo, é um dos primeiros livros utilizados por quem começa a estudar latim.

Bem; isso é outra questão. O importante aqui é o que pensar diante de uma coincidência como essa. Tenho certeza de que não ouço falar nesse livro de Júlio César, pelo qual não tenho o menor interesse, há muitos anos, não é pouco não. E agora ele vem duas vezes num mesmo fim de semana.

Tenho amigos e amigas que me diriam: “O Destino está querendo lhe comunicar alguma coisa!”. (Ah, que saudade do Encontro da Nova Consciência.)

Pra mim, mais interessante do que pensar no Destino é pensar no modo como a memória humana funciona. Temos níveis de “salvamento” de informações, no sentido que usamos ao dizer que salvamos dados no computador. Salvar é impedir que uma informação se desvaneça. E um critério para isso parece ser a repetição. O que a gente ouve (ou lê) uma vez apenas, se dissipa dentro de algum tempo. Mas se nesse intervalo aparece uma segunda menção, a gente lembra que ouviu aquilo pouco tempo atrás. E se aparecer uma terceira, uma quarta, a lembrança vai se prolongando.

Minha memória, pelo menos, funciona assim. Sou o rei da gafe ao não reconhecer pessoas com quem conversei um dia inteiro poucos anos atrás. Por que as esqueci? Porque não vi nenhuma referência a elas nesse intervalo. A memória se dissipa. Se de vez em quando, contudo, a gente vir uma foto, ler o nome, ouvir uma referência, aquilo continua existindo, sendo lembrado. Brasa assoprada não volta a carvão.

Baseando-se nisso, a comunicação de massa requer o martelamento constante de uma certa informação “para que o público não esqueça”, mesmo quando aquilo não é notícia, quando não tem nenhum motivo claro para estar aparecendo no noticiário. (Pensem nos exemplos.)

Deve ser por isso que os atarefados divulgadores-de-artistas-pop dão o seu sangue para que pelo menos uma vez por semana surjam no “Portal KM De Vantagens” ou coisa parecida manchetes como “Fulana janta com fãs”, “Sicrano corta o cabelo” ou “Beltrano pensa em tirar férias”. Porque se um desses personagens ficar uma semana sem ser citado ali, todo mundo esquece dele, inclusive o divulgador.

Erasmo Carlos dizia: “falem bem ou mal, mas falem de mim”, com a intuição nativa de quem nasceu pro palco. Um artista pop é alguém que não pode passar um mês sem ser fotografado por um papparazzo, ou dar um autógrafo no shopping, ou ser citado numa coluna de gossips. Se isto acontecer, ele se dissipa no ar, como orvalho ao sol.